Prof. Dr. Diego Klautau
O ensaio On Fairy-Stories de J.R.R. Tolkien é uma das principais fontes da perspectiva teórica do autor de O Senhor dos Anéis. Embora reconhecido mundialmente por suas obras ficcionais, o professor de Oxford possui trabalhos de investigação científica nas áreas de filologia e de teoria literária. Publicado em 1947, On Fairy-Stories é resultado de uma conferência feita em 1939, na Universidade de St. Andrews, sendo revisto e ampliado até assumir seu formato final em 1943 (FLIEGER; ANDERSON, 2014, p. 23).
Dentre as inúmeras possibilidades de aproximação do texto, conforme já expus em outro momento (KLAUTAU, 2021, p. 105-182), escolhi para esta nossa Jornada Literária Inesperada um recorte fundamental para a compreensão das interfaces entre literatura e filosofia segundo o próprio Tolkien: a apresentação do conceito de Feéria, o Reino Perigoso. Vejamos a identificação filológica que nos é apesentada como origem deste termo.
Fada, como um substantivo mais ou menos equivalente a elfo, é uma palavra relativamente moderna, que mal chega a ser usada até o período Tudor. A primeira citação no Oxford Dictionary (a única antes de 1450) é significativa. É tirada do poeta Gower: “as he were a faierie” [como se ele fosse uma fada]. Mas isso Gower não disse. Ele escreveu “as he were of faierie” [como se ele tivesse vindo de Feéria]. Gower estava descrevendo um jovem galante que busca enfeitiçar os corações das donzelas na igreja. (TOLKIEN, 2020, p. 21, grifos meus).
O primeiro aspecto a ser ressaltado é a palavra fada colocada como equivalente a elfo, citada no século XIV. Em seguida, é importante notarmos que ela não faz referência a uma pessoa, mas a um lugar. Esse é o ponto de partida de Tolkien para investigar esse Reino, cuja definição, propositalmente imprecisa, é posta como metáfora de lugar.
Segundo a Poética de Aristóteles, “a metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra” (ARISTÓTELES, 1457b), sendo que Tolkien identifica Feéria com o nome “reino”, isto é, um lugar, como um espaço físico delimitado por fronteiras ou ponto geográfico. Contudo, esse transporte do nome “lugar” para referir-se a essa realidade não é próprio ou literal, pois é o autor de O Hobbit que nos afirma que esta não pode ser definida, sendo o seu objetivo apenas escrever “alguns vislumbres imperfeitos” sobre o tema. Assim, é possível perceber novamente essa metáfora em outro momento do ensaio, no qual Feéria é reapresentada no contexto das estórias de fadas conforme encontradas nas tradições populares e orais da Europa.
“… estórias de fadas não são, no uso normal em inglês, estórias sobre fadas ou elfos, mas estórias sobre Feéria, o reino ou estado no qual as fadas têm seu ser. Feéria contém muitas coisas além de elfos e fadas e além de anões, bruxas, trols, gigantes ou dragões. Ela abriga os mares, o sol, a lua, o céu, a terra e todas as coisas que estão nela: arvores e pássaros, água e pedra, vinho e pão e nós mesmos, homens mortais, quando estamos encantados.” (TOLKIEN, 2020, p. 23, grifos meus).
Assim, as narrativas coletadas pela antropologia, pela filologia comparada ou pela literatura não tratam, enquanto objeto próprio de pesquisa, de relatos sobre personagens fadas ou elfos, mas sobre um lugar, entendido nesta perspectiva metafórica, que, em termos mais conceituais, Tolkien apresenta como o “reino ou estado nas quais as fadas têm o seu ser”.
Ora, aqui encontramos a primeira referência à essa interface com a filosofia e que nos serve como ponto de partida para minha proposta de interpretação. Tolkien está transportando o nome “reino” para se referir ao quê? Feéria é uma metáfora do quê? O que significa, afinal, “ter o ser”?Essa é uma expressão muito comum na filosofia realista, entendida grosso modo como a tradição platônica e aristotélica que se estende até às formulações cristãs medievais como em Agostinho e Tomás de Aquino. É o que denominamos Ontologia, o estudo do Ser, que, trocando em miúdos, refere-se às investigações sobre a essência, natureza ou princípios das coisas, e se alinha com o ramo desta tradição conhecido como metafísica, o estudo dos princípios e leis mais fundamentais, que regem toda a realidade.
A escolha dessa hermenêutica se justifica pelo contexto histórico do autor. Nascido em fins do século XIX e tendo sua formação católica no ambiente inglês marcado pela renovação filosófica da tradição realista. Essa recuperação filosófica é expressa pela Igreja Católica Apostólica Romana em geral pela exortação do tomismo feita a partir de Leão XIII, e nesta mesma Igreja Católica na Inglaterra em particular por meio do resgate da patrística realizada pelo apostolado do Cardeal John Henry Newman.
Nesse sentido, podemos encontrar, em uma alusão ao método filológico de arqueologia das palavras, o uso da metáfora de lugar na discussão sobre Ontologia e Metafísica em um dos textos fundantes da tradição realista, A República de Platão.
“- Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que o bem gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à visão e ao visível.” (PLATÃO, 508b-c, grifos meus).
Esse breve excerto, extraído do Livro VI, faz referência à célebre divisão da realidade feita por Platão, entre o mundo dos sentidos e mundo das ideias.De maneira resumida, aquilo que captamos por nossos cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar e olfato) é apenas uma parcela do Real (do Ser), inclusive sendo a mais frágil porque mutável e inconstante. A realidade mais perene e substancial estaria em uma outra dimensão da existência, aludida como mundo inteligível, cujo acesso a nós se daria apenas por nossa inteligência, que captaria, por meio do exercício dialético, as essências, formas ou ideias que fundariam o ser das imagens que teríamos no mundo dos sentidos.
Ao retomarmos Feéria, como identificar esse “reino ou estado no qual as fadas têm o seu ser”? As fadas e elfos são parte do mundo dos sentidos ou do mundo das ideias? Para avançar nesta investigação, voltemos ao ensaio.“A definição de uma estória de fadas — o que é, ou o que deveria ser — não depende, então, de qualquer definição ou relato histórico sobre elfos ou fadas, mas da natureza de Feéria: o próprio Reino Perigoso e o ar que sopra naquele país… Para o momento direi apenas isto: uma “estória de fadas” é aquela que aborda ou usa Feéria, qualquer que possa ser seu próprio propósito central: sátira, aventura, moralidade, fantasia.” (TOLKIEN, 2020, p. 24, grifos meus)
Aqui nos parece que Feéria é um reino do mundo das ideias, pois Tolkien afirma que o que importa é sua natureza, e não apenas os registros históricos detectados no mundo dos sentidos. Contudo, a última palavra desta citação, “fantasia”, nos encaminha para um rumo que pode aprofundar essa compreensão. Assim, recorramos a outro grande expoente da tradição realista, Aristóteles, em seu estudo sobre a alma humana, De Anima.
“Pois a imaginação (phantasia) é algo diverso tanto da percepção sensível como do raciocínio; mas a imaginação não ocorre sem percepção sensível e tampouco sem a imaginação ocorrem suposições. É evidente que a imaginação não é pensamento e suposição. Pois essa afecção depende de nós e do nosso querer (pois é possível que produzamos algo diante dos nossos olhos, tal como aqueles que, apoiando-se na memória, produzem imagens), e ter opinião não depende somente de nós, pois há necessidade de que ela seja falsa ou verdadeira.” (ARISTÓTELES, 427b16-b23).
Primeiro, Aristóteles nos lembra que a palavra fantasia é oriunda do grego, que pode ser traduzida literalmente como imaginação. Segundo, que a imaginação (phantasia) é relacionada com a memória, ou seja, nossa capacidade de produzir imagens em nossa alma, seja para nos recordar de algo que não está mais sob os nossos sentidos, seja para elaborarmos nossos raciocínios e pensamentos, a partir dos dados que captamos no mundo dos sentidos. Terceiro, notem que a expressão aristotélica faz referência à produção, ou seja, algo feito pela nossa alma, que não está naturalmente presente nem no mundo dos sentidos e nem no mundo das ideias, ou seja, é algo novo, produzido pelo homem.
Não cabe aqui entrar nas diferenças filosóficas entre Platão e Aristóteles. É importante notar que tais divergências são cruciais tanto para a teoria do conhecimento quanto para a ontologia e a metafísica. Contudo, nosso objetivo é interpretar a realidade de Feéria em Tolkien, que assumidamente está trabalhando em chave metafórica – um vislumbre imperfeito – e, por isso, muitas vezes passeia sem maiores dificuldades e rigores filosóficos entre os dois autores gregos.
Isso posto, notemos que para Aristóteles a imaginação ocupa um lugar intermediário entre a percepção dos sentidos e a abstração das formas, essências ou ideias. Ora, seria possível transpor metaforicamente essa intermediação entre sentidos e ideias na alma humana para a terra média entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias. Essa interpretação possibilita entender o que Tolkien quer dizer com “o reino ou estado onde as fadas têm o seu ser”. Para reforçar minha tese, voltemos ao De Anima de Aristóteles.
“… a imaginação será o movimento que ocorre pela atividade da percepção sensível. Já que a visão é, por excelência, percepção sensível, também o nome “imaginação” (phantasia) deriva da palavra “luz” (phaos), porque sem luz não há o ato de ver. E porque perduram e são semelhantes às percepções sensíveis, os animais fazem muitas coisas de acordo com elas: alguns, como as bestas, por não terem intelecto; outros, como os homens, por terem o intelecto algumas vezes obscurecido pela doença ou pelo sono.” (ARISTÓTELES, 428b30-429, grifos meus).
A imaginação (phantasia) começa com a preservação das imagens captadas pelos sentidos na memória, que as reproduz na mente quando estas não estão mais presentes aos olhos. Tais imagens continuam na alma mesmo quando o que que foi percebido não está mais sob à vista, orientando ações e pensamentos. É por isso que Aristóteles liga etimologicamente fantasia com a luz (phaos), pois a imaginação ilumina a alma, resgatando as imagens na memória, quando os olhos não podem mais ver as coisas. É possível trazer a conexão entre o Sol de Platão como filho do Bem, pois ambos emitem a luz que permite ao homem ter acesso às coisas, seja para a visão no mundo dos sentidos, seja a inteligência no mundo das ideias.
Para finalizarmos, depois dessa identificação de Feéria como essa dimensão intermediária da realidade ligada à imaginação, que embora seja uma abstração e, por isso, próxima ao mundo das ideias, é derivada objetivamente do mundo dos sentidos, vejamos como essa especificidade da imaginação enquanto produtora de seres nos ajuda a entender melhor esse mundo dos elfos.
“A mente humana, agraciada com os poderes da generalização e da abstração, vê não apenas grama-verde, discriminando-a de outras coisas (e achando-a bela de contemplar), mas vê que é verde bem como é grama. Mas quão poderosa, quão estimulante para a própria faculdade que a produziu, foi a invenção do adjetivo; nenhum feitiço ou encantamento em Feéria é mais potente. E isso não é surpreendente: tais encantamentos poderiam, de fato, ser considerados apenas outra visão dos adjetivos, uma classe de palavras numa gramática mítica. A mente que pensou em leve, pesado, cinza, amarelo, parado, veloz também concebeu a magia que tornaria as coisas pesadas leves e capazes de voar, transformaria chumbo cinza em ouro amarelo, e a pedra parada, em água veloz. Se podia fazer uma coisa, podia fazer a outra: inevitavelmente fez ambas.” (TOLKIEN, 2020, p. 34-35, grifos meus, itálico do autor).
O processo produtivo da mente, segundo Tolkien, resgata a elaboração aristotélica da 1. generalização, 2. abstração, 3. discriminação e 4. contemplação, ou seja, 1. a etapa de observação dos seres individuais e sua consequente unificação em uma imagem genérica preservada na memória; 2. a extração (abstração) dessa imagem genérica da forma, essência ou ideia universal que identifica esse ser como unidade que unifica os indivíduos da mesma espécie; 3. a discriminação entre os elementos essenciais ou substanciais do ser e suas características variáveis ou acidentais e 4. a apreciação estética e intelectual da realidade, ou seja, a contemplação.
Essa dinâmica aristotélica do conhecimento aludida por Tolkien é seguida pela metáfora da magia, encantamento ou feitiço da linguagem, especificamente pela importância dos adjetivos das coisas, ou seja, de suas qualidades. De fato, Feéria tem como a característica mais poderosa a elaboração da linguagem em uma gramática mítica, ou seja, maravilhosa e fantástica.
“Quando conseguimos abstrair o verde da grama, o azul do céu e o vermelho do sangue, temos já um poder encantatório — em certo plano; e o desejo de empunhar esse poder no mundo externo às nossas mentes desperta. Não se segue daí que usaremos esse poder bem em qualquer plano. Podemos lançar um verde mortal sobre o rosto de um homem e produzir o horror; podemos fazer a rara e terrível lua azul brilhar; ou podemos fazer com que bosques vicejem com folhas prateadas ou que carneiros usem velos de ouro e colocar fogo quente na barriga da serpente fria. Mas em tal “fantasia”, como é chamada, nova forma é criada; Feéria começa; o Homem torna-se um subcriador.” (TOLKIEN, 2020, p. 35, grifos meus).
Com efeito, refinando a metáfora da magia, encantamento ou feitiço, podemos afirmar que Feéria é esse mundo da imaginação concretizado ou corporificado pela linguagem dos homens. Assim, o acesso que temos a Feéria é, por um lado, pelas estórias de fadas historicamente constituídas pelos homens, sejam por textos ou narrativas orais e, por outro lado, pela infinidade das possibilidades da gramática mítica da linguagem como matriz fecunda de novas combinações de qualidades, formas e adjetivos que permitam a feitura de novas obras literárias de fantasia, cuja finalidade e sentido é justamente a contemplação da realidade a partir de um olhar oriundo de um “poder encantatório” da língua. Por fim, retornemos à República para resgatarmos o propósito do Reino dos elfos.
“— Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie. Era a razão que a isso nos impelia. Acrescentemos ainda, para ela não nos acusar de uma tal ou qual dureza e rusticidade, que é antigo o diferendo a filosofia e a poesia…. Mesmo assim, diga-se que, se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gosto, pois temos consciência do encantamento que sobre nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro. Ou, não te sentes também seduzido pela poesia, meu amigo, sobretudo quando a contemplas através de Homero?” (PLATÃO, 607b-c, grifos meus)
“- Concederemos certamente aos seus defensores, que não foram poetas, mas forem amadores de poesia, que falem em prosa, em sua defesa, mostrando como é não é só agradável, como útil, para os Estados e a vida humana. E escutá-lo-emos favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela é não só agradável, como também útil.” (PLATÃO, 607c-d, grifos meus).
Para além do mesmo uso tolkieniano da metáfora do encantamento para se referir à linguagem poética e da ênfase da soberania da filosofia sobre a poesia, o filósofo oferece uma abertura em sua conhecida crítica aos poetas, convocando uma defesa da pertinência dos produtores de mitos em sua cidade. Em síntese, concebo de maneira geral o escopo da Feéria tolkieniana enquanto terra média entre o mundo dos sentidos e o mundo das ideias como uma resposta a Platão.
“O Homem redimido ainda é homem. Estória e fantasia ainda continuam e devem continuar. O Evangelium não aboliu as lendas; ele as abençoou, especialmente o “final feliz”. O cristão ainda tem de labutar, com mente e com corpo, para sofrer, esperar e morrer; mas ele pode agora perceber que todas as suas inclinações e faculdades têm um propósito que pode ser redimido. Tão grande é a mercê com a qual ele foi tratado que pode agora, talvez, com razão ousar achar que, na Fantasia, ele pode, na verdade, auxiliar a desfolha e o múltiplo enriquecimento da criação. Todas as estórias podem se tornar verdadeiras; e, contudo, no final, redimidas, elas podem ser tão semelhantes e dessemelhantes às formas que lhes demos quanto o Homem, finalmente redimido, será semelhante e dessemelhante à figura caída que conhecemos.” (TOLKIEN, 2020, p. 79, grifos meus).
Muito mais poderíamos desenvolver a partir da teoria tolkieniana, tanto em aspectos da ciência da religião, da filosofia ou da teologia. Contudo, esta breve pausa em nossa jornada já cumpriu seu objetivo. Espero que possamos prosseguir nossa peregrinação de forma mais atenta e contemplativa às maravilhas presentes na realidade sensorial, feérica ou ideal.

Este texto é fruto de uma conferência realizada pelo grupo de estudos Jornada Literária Inesperada na Jornada Mundial da Juventude – Lisboa/ 2023.
Referências
ARISTÓTELES. De Anima. Tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis. São Paulo: Editora 34, 2006.
ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas de Eudoro de Sousa. Lisboa: Imprensa Nacional /Casa da Moeda, 1994.
FLIEGER, Verlyn; ANDERSON, Douglas A. Tolkien On Fairy-stories. Expanded edition, with commentary and notes. London: HarperCollins, 2014.
KLAUTAU, Diego. Metafísica da Subcriação: A Filosofia do Mito em J.R.R. Tolkien. São Paulo: A Outra Via, 2021.
PLATÃO, A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2017.
TOLKIEN, J.R.R. Árvore e Folha. Tradução de Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020.
