Este artigo contém spoilers dos episódios 1 a 4 da 2ª temporada de Os Anéis de Poder
Cristina Casagrande
Com estreia pelo Prime Video no último dia 29 de agosto, ao redor do mundo, a segunda temporada de O Senhor dos Anéis: os Anéis de Poder apareceu como uma resposta aos pontos em aberto da temporada anterior e às reinvindicações da crítica e do público geral. Para que essa segunda fase da série fosse bem-sucedida, os produtores apostaram na figura de Sauron (Charlie Vickers) e na forja dos anéis em Eregion, tendo como principal alvo o elfo ferreiro Celebrimbor (Charles Edwards). Num plano adjacente, mas crucial para essa temporada, deu-se continuidade à demanda de Galadriel (Morfydd Clark).
Vamos começar por esse último ponto. A primeira temporada de cinco, lançada em 2022, focou em três pontos: na apresentação dos núcleos dramáticos (Elfos de Lindon e de Eregion, Anãos de Khazad-dûm, Homens do Sul, Pés-Peludos/Estranho (Daniel Weyman) e Homens de Númenor); no mistério até a revelação da identidade de Sauron; e, sobretudo, na jornada da heroína. Quanto a esse último, contaram-se os desafios de Galadriel em sua busca incessante por Sauron, com a ilusão de que poderia combatê-lo sozinha.
Para além do sentido da clássica jornada do herói, estipulada por Joseph Campbell, a representação audiovisual da filha de Finarfin transparece alguns pontos do conceito de “a jornada da heroína”, proposta pela escritora e outrora aluna de Campbell Maureen Murdock. Nesse sentido, buscamos no próprio nome da personagem elementos que revelam a complexidade de sua personalidade.
Como tantos no legendarium de Tolkien, Galadriel tem muitos nomes. É chamada assim — numa tradução do telerin, Alatáriel, para o sindarin — como um epíteto ou apelido (em élfico epessë) recebido por seu marido Celeborn, por ora, apenas mencionado na série. Seu significado, “donzela coroada com cabelos brilhantes”, ganha um valor especial quando observamos que está associado à visão de seu amado sobre ela. De seu pai, recebeu a alcunha de Artanis, “Mulher Nobre” em alto élfico (quenya). Mas por sua mãe, Eärwen, foi chamada de Nerwen, que significa Donzela-Homem.
Não por acaso, a Galadriel que estamos acostumados, tanto nas telas quanto nos escritos que se passam durante a Guerra do Anel, está ausente na adaptação do Prime Video. Afinal, ela é Artanis, mas também Nerwen. No lugar da sábia dama da Floresta Dourada, está uma elfa nos primeiros anos de sua fase adulta, impetuosa, revoltada e, muitas vezes, agressiva. Tal faceta da elfa assustou e até mesmo repeliu boa parte do público, enquanto recebeu a condescendência de outros mais pacientes com o processo de seu desenvolvimento.
Embora A Jornada da Heroína tenha sido escrita em 1990, muitos anos após a morte do autor de O Senhor dos Anéis, é possível encontrar alguns pontos na história de Galadriel que se identificam com as etapas da jornada proposta por Murdock. Afinal, a autora era uma psicoterapeuta com um vasto estudo sobre mitologia em geral, e Tolkien era um autor notável por sua visão além de seu tempo.
Nesse sentido, podemos considerar na adaptação televisiva uma leitura de “separação do feminino” de Galadriel, primeira etapa típica da jornada da heroína, e que, de certa forma, foi visionada por sua própria mãe. Essa questão se confirma nos próprios escritos de Tolkien sobre a composição da personagem:
O nome recebido de sua mãe era Nerwen, “donzela-homem”, e ela cresceu e ficou alta além da medida até mesmo entre as mulheres dos Noldor; ela era forte de corpo, mente e vontade, e páreo tanto para os mestres da tradição quanto para os atletas dos Eldar nos dias de sua juventude. Mesmo entre os Eldar ela era considerada bonita, e seu cabelo era considerado uma maravilha inigualável. Era dourado como o cabelo de seu pai e de sua antepassada Indis, mas mais opulento e radiante, pois seu ouro era tocado por alguma memória da prata estelar de sua mãe; e os Eldar diziam que a luz das Duas Árvores, Laurelin e Telperion, havia sido enredada em suas tranças. (The Peoples of Middle-earth, J.R.R. Tolkien, grifo e tradução nossos)
O trecho destacado concorda com o excerto de uma carta escrita por Tolkien em seu último ano de vida, dissertando justamente sobre o nome da personagem:
Galadriel, como todos os outros nomes de pessoas élficas em O Senhor dos Anéis, é uma invenção minha. Está em forma sindarin […] e significa “Donzela coroada com cabelos brilhantes”. É um nome secundário dado a ela em sua juventude no passado distante porque tinha longos cabelos que brilhavam como ouro, mas também eram raiados de prata. Na época ela era de disposição amazônica e prendia seu cabelo como uma coroa quando tomava parte em feitos atléticos. (Carta 348, grifo nosso)
Apesar de ela ter a beleza típica de um ser feminino, destacando-se os seus cabelos, percebe-se que de corpo e de mente tinha potências associadas ao masculino acentuadas (lembrando que não estamos falando de gênero tampouco sexualidade e sim de equilíbrios de forças interiores que todos carregamos, tanto o feminino quanto o masculino).
Galadriel persegue Sauron até encontrá-lo. Nota-se que ela, ao cortar relações com seu eu feminino, buscando uma identificação com o masculino (Halbrand/Sauron), é levada à frustração e ao vazio interior. Focar exclusivamente em seu lado Nerwen em detrimento do Artanis acarretou nela uma desilusão pessoal, pois seu confronto com Sauron não foi suficiente para ela derrotá-lo. Ao contrário, ela foi tomada de culpa e, consequentemente, de necessidade de redenção. E é nesse ponto que a primeira temporada para em relação à jornada da personagem.
Agora, passemos para o foco da segunda temporada: a jornada do vilão, algo cada vez mais crescente na ficção contemporânea. Sauron é a bola da vez, e foi ele, ou melhor, a coroa de seu líder formador, Morgoth, a primeira tomada do episódio de estreia.
Vemos, logo de cara, uma espécie de prólogo da história de Sauron na segunda era, explicando sua rixa com Adar (nesta temporada encenado por Sam Hazeldine), sua metamorfose em Halbrand até se revelar como Annatar, o Senhor das Dádivas, emissário dos Valar que se revela a Celebrimbor. Nesta última transformação, a produção impressionou boa parte do público, prometendo deixar como legado uma das cenas mais icônicas da produção audiovisual.
Vale destacar as grandes interpretações dos dois Charles, Vickers (Sauron) e Edwards (Celebrimbor), que prometem um entrosamento maior durante toda a temporada. Para os leitores das obras de Tolkien, há grande expectativa em relação ao trágico desfecho do senhor de Eregion, cuja origem mais conhecida e também adotada pela série é como um Noldo, neto de Fëanor, o mais engenhoso de todos os elfos tolkienianos. Tal amargo paradeiro já pode ser vislumbrado pelos delírios de Galadriel no segundo episódio da série, quando já está usando Nenya, o Anel da Água, que promete potencializar suas capacidades visionárias.
Já nos três episódios de partida da segunda temporada, vemos o principal artifício de Annatar, que se reflete com a proposta dos escritos de Tolkien: perceber o ponto fraco de suas vítimas e, a partir disso, manipulá-los. É dito em O Silmarillion:
Foi em Eregion que os conselhos de Sauron foram recebidos com mais contentamento, pois naquela terra os Noldor desejavam sempre aumentar o engenho e a sutileza de suas obras. Ademais, não estavam em paz em seus corações, já que tinham recusado o retorno ao Oeste, e desejavam tanto ficar na Terra-média, a qual de fato amavam, quanto gozar da ventura daqueles que tinham partido. Portanto, deram ouvidos a Sauron e aprenderam dele muitas coisas, pois seu conhecimento era grande. Naqueles dias, os artífices de Ost-in-Edhil ultrapassaram tudo o que tinham criado antes; e planejaram, e fizeram Anéis de Poder. Mas Sauron guiava o labor deles e estava ciente de tudo o que faziam; pois o seu desejo era lançar um laço sobre os Elfos e mantê-los sob sua vigilância. (O Silmarillion, J.R.R. Tolkien, grifos nossos)
O enredo de Sauron nesta temporada parece ter sido mais bem amarrado. Os fatos ocorridos anteriormente com Halbrand, a forma humana e aparentemente despretensiosa adotada pelo grande vilão da história, passaram a fazer mais sentido. Quanto à Galadriel, passamos a entender mais sua indignação, à medida em que a malignidade de seu arqui-inimigo é revelada nas telas. Os Elfos de Lindon são retratados de forma mais próxima, aumentando, ainda que sutilmente, a esfericidade dos personagens retratados. Recebe aqui destaque Elrond, que agora, além de “tão gentil quanto o verão” como se apresenta na primeira temporada, agora aparece como “robusto como um guerreiro experiente na plenitude de sua força”.
Por outro lado, algumas pontas ainda ficam soltas e sem explicação palpável. Por exemplo, não se sabe ao certo o motivo da escolha da aparência de Sauron em sua transição entre sua presença élfica (com interpretação de Jack Lowden no prólogo), destruída por Adar e os orques, e Halbrand. O vilão assume uma forma simbiótica, escura, gosmenta e rasteira, apelidada pelo público de “Venom”, em referência ao personagem da Marvel de mesmo nome, cuja forma inicial se assemelha com essa fase transitória de Halbrand-Sauron.
Quanto a mudanças de aparência física do vilão, independentemente de ser uma pessoa, animal ou coisa, há bastante respaldo no legendário de Tolkien. Como um Maia, um ser primordialmente espiritual à semelhança de um semi-deus pagão ou anjo/demônio cristão, Sauron podia assumir aparências, ainda que não ficasse preso a elas. De um modo mais versátil do que os demais Maiar conhecidos (como Gandalf, Melian ou Balrogs), o servo de Morgoth trocava sua forma física com relativa facilidade, de modo similar a Loki ou o outros deuses da mitologia nórdica, que como tais, eram metamorfos.
Falando no metal precioso, na temporada anterior, há uma provocação de que ele seja um elemento mágico, capaz de trazer a cura para tais malefícios no mundo natural. A lenda apócrifa da criação do mithril — uma completa distorção maniqueísta da obra de Tolkien — não foi confirmada nem desmentida, deixando o público sem resposta.
No entanto, há algumas pistas de que possa ser um engodo de Sauron, considerando que, na última cena do terceiro episódio, Annatar toma o metal da mão de Celebrimbor, e sua mente maligna, não o elemento precioso, é colocada como fonte de feitiçaria na fabricação dos anéis anânicos. Nessa possível leitura, o mithril em si não tem potência mágica, e tudo não passa de uma intriga do vilão para aumentar a desconfiança, vaidade e ganância dos povos livres. Todavia, essa questão ficou em aberto, e a produção não pareceu preocupar-se em esclarecê-la.
Os outros núcleos recebem um tom mais baixo nesta temporada. Falando em Tom, para alegria de alguns fãs e lamentos de outros, Bombadil (Rory Kinnear) aparece no quarto episódio desta temporada. Sua abordagem, assim como suas cores são mais suavizadas em relação à sua versão conhecida nos escritos de O Senhor dos Anéis. Ali ele aparece como uma espécie de mentor do Estranho — chamado pelos grados de Grand’elfo —, o qual está em busca de um cajado (auspiciosamente chamado de gand, no episódio 2) e, com ele, sua própria identidade.
De uma forma similar ao dos elfos, o núcleo de Khazad-dûm tem um crescimento significativo e impactante, afinal, assim como os anéis élficos, os sete artefatos anânicos são criados e distribuídos entre os líderes desse povo. Cabe assinalar que a ordem de fabricação dos anéis se difere em relação aos escritos do autor, em que a produção dos artefatos élficos são anteriores apenas à criação do Um. Na série, os produtores optaram por seguir a ordem do poema do Anel:
Sete para os Anãos em recinto rochoso,
Nove para os Homens, que a morte escolheu,
Um para o Senhor Sombrio no espaldar tenebroso
Na Terra de Mordor aonde a Sombra desceu.
Um Anel que a todos rege, Um Anel para achá-los,
Um Anel que a todos traz para na escuridão atá-los
Na Terra de Mordor aonde a Sombra desceu. (O Senhor dos Anéis, J.R.R. Tolkien)
Já em Númenor o foco é menor, mesmo assim, crescente. Já vemos a divisão Fiéis e Homens do Rei ser apresentada nas telas, com Míriel mais sábia e branda, e Elendil mais resoluto, como sugere O Silmarillion. Fica assim, a expectativa de um desenvolvimento maior da trama do reino dos Homens de Ociente nas temporadas vindouras.
Na metade da nova temporada, os novos passos dos núcleos já foram tracejados. A expectativa para seu desfecho é da conclusão de alguns fios da trama, ao passo que outros ficarão em aberto e mais ainda serão desmembrados. Há promessa de batalhas, mortes, torturas, duelos. Mas há também a expectativa do elemento eucatastrófico sempre presente nas histórias tolkienianas que se refletem em suas adaptações: a esperança do porvir e da prevalência da luz sobre as sombras.
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