“Um Conto Sombrio dos Grimm” mostra lado brutal das histórias de fadas com delicadeza

Lorena S. Ávila

Sofrer é essencial. Os contos de fadas foram um dos pioneiros a abraçarem essa sentença como uma substância tão necessária às histórias quanto o ar à vida. E apesar de toda a fantasia delicada que tecem as linhas do texto, um bom conto de fadas sabe evocar sublime crueldade. Essa característica peculiar, que funde a realidade brutal à pureza de um mundo místico foi, aos poucos, apagada do imaginário popular contemporâneo, que vê nos contos de fadas uma resolução simples de amor e felicidade eterna.

A apropriação de Walt Disney, por muito que importante para a difusão dessas histórias, é uma das maiores responsáveis por esse olhar fantasioso sobre o que elas, de fato, significam. Ainda que se aborde muito o amor, a amizade, os atos heroicos e o “felizes para sempre”, o grande sentido dessas narrativas é propor a transformação da angústia humana em combustível para o despertar da magia que, para nós, meros mortais, se materializa na capacidade de ver o lado bom das coisas, na esperança e na perseverança.

Para além disso, os contos de fadas trazem lições valiosas; ensinam obediência, paciência, respeito, reverência, comunhão com a natureza, resiliência, redenção e resignação. Alguns desses “erres” passam longe dos desenhos animados que marcam gerações. E é justamente por isso que a animação Um Conto Sombrio dos Grimm, disponível na Netflix, é tão impactante para assistir com as crianças (lembrando que a indicação é a partir de 12 anos).

É algo raro ter um conto de fadas representado no serviço de streamming tão popular sem suavizar as partes mais severas da narrativa. Adaptado do livro A Tale Dark and Grimm, de Adam Gidwitz (disponível em Português pela editora Galera), a minissérie acompanha João e Maria que, em vez de camponeses, nessa versão, são nobres e tem suas cabeças cortadas pelos seus pais, dando início a sua longa aventura pela floresta.

Gidwitz misturou diferentes contos clássicos, de modo que cada episódio perpassa por algumas histórias bem conhecidas, como o conto de tradição celta, Os Filhos de Lír, das crianças que são transformadas em cisnes; João Sortudo, do menino que barganha pela estrada e sempre consegue o que quer, além dos clássicos mundiais da literatura como O Inferno de Dante e o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

Tudo é narrado por três corvos amaldiçoados que, independente do que veem, não podem jamais interferir na jornada dos irmãos. Em cada episódio, João e Maria enfrentam provações diferentes e as coisas não ficam mais fáceis. Eles se sentem rejeitados pelos pais, violados, abandonados e tristes. Sozinhos eles enfrentam um mal perverso, um medo terrível, maldições e até mesmo a morte.

É a delicadeza da abordagem que cativa o espectador e faz de Um Conto Sombrio dos Grimm uma das melhores minisséries em animação produzidas pela Netflix, capaz de ensinar algo de valioso para as crianças e entreter os adultos. Viver é assumir riscos, mas afinal, como ensinar para os pequenos que a realidade pode ser tão desafiadora quanto divertida?

A história desenvolvida por Gidwitz tenta responder essa questão de um modo mais engraçado e irônico. Pode-se afirmar que, em determinado ponto, ela ajuda a criar adultos muito melhores e mais preparados para lidar com a vida, pois mostra de um jeito prático que nem tudo acontece por um motivo, às vezes precisamos enfrentar momentos muito ruins sem ter qualquer explicação. E, na maioria das vezes, nada é o que parece; ninguém é tão bom que não possa fazer maldades e nem tão ruim que não possa fazer o bem.

São muitas as metalinguagens usadas pela minissérie, além das alegorias e metáforas; Gidwitz sabiamente optou por beber de diversas fontes, incluindo aí a tradição cristã empregada nos contos de fadas a partir do século XVIII, presença marcante especialmente nos escritos dos Grimm e de Hans Christian Andersen. O desenho traz a figura caricata do diabo como o grande vilão responsável pelos infortúnios que assolam o reino.

A jornada de João pelo Inferno, bem como a forma que ele trama para enganar o Diabo, é uma tradição oral antiga entre as contações de história; onde vários camponeses em apuros, mulheres e crianças, pregavam peças no diabo. Muitas dessas histórias têm origem nas Terras Altas; Irlanda, Escócia e se relacionam também com o famoso conto de Halloween, já que Jack O’Lantern, o espírito da abóbora, humilhou o diabo e foi condenado a vagar pela eternidade.

Por trás da ideia de enganar o anjo da enganação, está a crença de que a fé tudo supera. Enquanto alguns pais interpretaram essa passagem equivocadamente, como se o desenho expusesse as crianças ao satanismo, a mensagem é clara: o diabo não pode triunfar sobre as pessoas de bem e coração puro, como é o caso de João e Maria. A natureza, por sua vez, evoca a figura temente de Deus; a lua, o sol e até o espírito da Floresta, ajudam os irmãos em apuros.

A travessia feita pelos irmãos nada mais é do que a travessia feita por todos nós quando nos deparamos com a vida adulta, esse rito de passagem de deixar o conforto de casa para enfrentar os perigos do mundo e conquistar a independência. A ideia é por si só desconfortável, enxergar o mundo sob uma ótica não tão mais ilusória é também desmistificar a figura de nossos pais.

Não seria muito mais fácil se aprendêssemos a crescer à medida que ficamos mais velhos? Em vez de deixar tudo isso para a segunda parte da vida? Um Conto Sombrio dos Grimm ensina muitas coisas, mas a mais valiosa é ser consciente e entusiasmado com a vida e com tudo o que ela tem para oferecer de bom e ruim, é estar preparado para as adversidades porque uma boa aventura está repleta delas.


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Lorena é jornalista, formada pela Universidade Metodista de São Paulo. Tolkienista de coração, ama a arte de contar histórias e acredita no poder das narrativas.

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