Os sete ovinhos — Um conto de Páscoa

Cristina Casagrande

Era tarde de domingo, quando veio um coelho bege e branco, pulando em sua direção. Parou diante dela, com as patas dianteiras segurando um ovinho. Com toda naturalidade, o coelho falou: “você deve descobrir o que tem neste ovo, mas sem quebrá-lo”, e saiu saltitante pela sebe, a perder de vista.

Completamente confusa, ela pensou o que talvez você também esteja pensando: “como vou saber o que tem dentro sem quebrar?”. “Gema! Pintinho! Chocolate! Outro coelhinho! Acertei?”, gritou. Em seguida, mais calma, ela tentou fazer o que, na verdade, você deve ter pensado antes: chacoalhou o ovinho, espiou dentro, cheirou, colocou contra a luz. Nada. Quando percebeu que, na base, havia os escritos: “depois da meia-noite, acaba”.

Ela não estava gostando nada daquela brincadeira de Cinderela de Páscoa. Detestava suspense, enigmas, coisas assim. Atacava sua ansiedade. Nesse tempo, já havia ansiedade. “Brincadeira boba, vou quebrar logo, ou deixar aí”. Escolheu a segunda opção. E foi embora.

Mas, você sabe, ela voltou. Voltou e pensou: “Vou levar este ovo comigo, quando der meia-noite, vou acordar e então descobrir o que tem dentro”. Afinal, se havia coelhos que falavam, então deveria haver alguma magia para quele ovo se revelar, sem mais nem menos, à meia-noite. Simples assim.

Chegou em casa e, com todo cuidado, colocou o ovo em cima de sua escrivaninha, ajeitando com alguns paninhos macios para não quebrar. Jantou, leu um pouco, deu boa-noite a todos — e todo aquele ritual costumeiro de antes de dormir. Ajustou seu despertador para meia-noite e fechou os olhos. O ovo estava ainda ali, intacto, ninguém havia notado.

Estava num sono profundo, quando ouviu um barulho, acordou de sobressalto. Era o despertador. Que susto, espero que não tenha acordado os pais, nem os irmãos nos outros quartos. Foi ver o ovo, oh, não, ele havia sumido! Será que algum dos irmãos tinha pegado? Ou a mãe que levou para cozinha? Ah, não, como não havia pensado nisto antes? Deveria ter ficado acordada, de vigília. Ouviu o sino da igreja terminar seu ciclo das doze batidas. Agora, ele se fora, e ela jamais saberia o que havia ali dentro.

Chorou um pouco, mas resolveu dormir. Afinal, não faltava na escola por nada. Vai ver era tudo um sonho, como o de Alice. Bem que poderia ser isso, mas ela sabia que não era. Acordou com dor nas costas, ainda estava muito escuro, mas seu corpo não queria mais ficar na cama. Na janela, pousou uma coruja. Ela amava corujas! Mas àquela hora da noite, era muito estranho. Olhou para as garras: ela trazia um ovo! Era do mesmo tamanho do primeiro (o triplo de um ovo de galinha), mas parecia ter pinturas na casca. Não dava para ver direito, embora fosse lua cheia, mas era bonito, e ela quis pegá-lo. Foi o que fez, assim que a coruja alçou voo para o galho de um carvalho bem longe.

Ela foi logo ver se tinha algo escrito no ovo, e pôde ler em sua base: “ainda é meia-noite”. Ela sentiu que, apesar de ser do mesmo tamanho do anterior, aquele era um pouco mais pesado. Chacoalhou, cheirou, tentou ver contra a luz da lua. Nada. Pensou em quebrá-lo, mas lembrou que não podia. Quer dizer, isso era em relação ao primeiro, mas ninguém dissera nada do novo. Mas, e se este for o mesmo outro? Além disso, ainda era meia-noite, sua missão não havia acabado. Então, resolveu ficar de vigília.

Seu corpo começou a ficar mole, suas pálpebras, pesadas. Não! Ela não queria dormir! Sabia que se dormisse de novo, ia perder seu ovinho. Estava começando a se afeiçoar por ele. Pegou um paninho, cobriu suas mãos e colocou o ovo em cima, com toda delicadeza, envolvendo-o; e ficou sentada na cama, com medo de cair no sono outra vez.

Deu uma bela pescada, quase que o derrubou. Fosse o que fosse, não queria danificá-lo, tão querido que lhe era. Então, resolveu ir para o quintal. Talvez um pouco de ar fresco a ajudasse a ficar acordada. Pulou a janela, pegou-o de volta e foi para o meio do jardim. A lua estava resplandecente, o céu todo, todo estrelado! Não lhe parecia difícil ficar acordada ali. Lutou o quanto pôde, até que resolveu cochilar um pouco na grama, mas logo acordou. Era uma gralha gigante que se aproximava!

E foi assim, sem mais nem menos, que aquele bicho cruel lhe tomou o ovo das mãos. Ela não pôde dizer nada, somente ficou fitando a ave até que desaparecesse na escuridão da noite.

A temperatura começou a cair, e algumas nuvens começaram a cobrir o céu, escondendo parcialmente a lua e as estrelas. Ela não quis voltar para o quarto, então começou caminhar, sem saber muito aonde ia, tão atônita que estava.

Aquele ovo, que antes era completamente desprezível, passara a ser mais do que um objeto afetivo: era como se ela fosse responsável por ele. Caminhava com vigor, como se estivesse em uma caça ao tesouro, quando suspeitou estar sendo perseguida. Parou. Ouviu o farfalhar dos trigos que a rodeavam. Achou que fossem suas pernas trêmulas de frio, mas constatou o que mais temia: ela tinha companhia.

Olhou para o lado, desta vez, era uma raposa. Esse bicho, você sabe, é suspeito. Algumas podem nos cativar de forma responsável, outras podem simplesmente dissimular simpatia para atingirem seus objetivos vis. A menina parou e esperou a raposa falar alguma coisa, ou, quem sabe, trazer um outro ovo novo. Mas nenhuma coisa nem outra ocorreu. As duas ficaram ali, paradas no relento, por alguns minutos. Aos poucos, a menina percebeu que, mesmo em silêncio, ela e a raposa estavam em diálogo.

Como se ouvisse os pensamentos do animal, ela entendeu que deveria segui-lo até o lago. Foi o que fez. Pararam, lado a lado, defronte ao espelho d’água. “Para saber o que tem dentro do ovo, você precisa de profundidade”, ouviu em seu coração. Sem pensar, ela atirou-se ao lago e mergulhou o mais fundo que pôde. Fundo, tão fundo que já não via mais a luz da lua e das nebulosas estrelas.

Estava decidida que só pararia de mergulhar quando encontrasse o chão. De repente, a luz da lua voltou a refletir. Não, espera, não era a lua, era seu ovo! Ele agora era luminoso, com casca cintilante, parado sobre uma pedra negra e polida.

Assim que o pegou, começou a sentir que precisava voltar. Até então, era como se respirasse embaixo d’água, mas agora, ela precisava de ar o quanto antes. Nadou, nadou, nadou, o mais rápido que conseguiu, até finalmente chegar à superfície do lago, ofegante.

Conseguiu respirar, mas sentia que o ovo estava pesado demais, como uma âncora. Não podia ser o mesmo, o primeiro era tão leve! Leve e desprezível. Esse era pesado e encantador. Sentia como se um rodamoinho se formava no lago, era como que se uma força saísse do ovo e o puxasse de volta. Agora, ela tinha ódio dele! Queria simplesmente atirá-lo longe, mas não conseguia. Ele era belo, profundo, luminoso e pesado.

O rodamoinho ficava cada vez mais forte, e ela nadava contra ele, queria sair do lago, mas não sem seu ovo. “Socorro, preciso de ajuda!”, gritou. Nesse momento de desespero, sentiu uma força descomunal vinda de si mesma e conseguiu chegar à margem, sem perder nem quebrar o ovo.

Chegou ofegante e encontrou a raposa ali parada. “O que devo fazer? Eu desci até o lago, quase morri! Mas e agora? O que tem dentro?”. “Não há profundidade se não existe desprendimento”, ouviu a resposta em pensamento.

Estava ficando cada vez mais frio, então ela resolveu tirar a camisola e torcê-la, pois estava ensopada. Assim que se despiu, sentiu um solavanco: estava sendo levada para o alto nas garras de uma ave gigante. Era um falcão-peregrino em proporções enormes. Se ela já estava passando frio antes, imagine agora, só com a roupa de baixo, ensopada e voando no ar. Olhou para suas mãos, estava sem o ovo! Olhou para o bico do falcão: ele estava lá!

Parou no alto de uma montanha, seus lábios estavam roxos. “Preciso fazer fogo”, disse ela, tentando lembrar das explicações do livro de ciências, pegando uma pedrinha e friccionando na outra. “Como você chama?”. “Falco”. “Muito criativo”, disse a menina bastante irritada.

“Preciso de roupas secas, onde irei consegui-las, Falco?”. “A minha parte eu já cumpri”, disse ele, abrindo as asas. “Não, não vá! Estou com frio e não sei mais como voltar para casa!”. A ave sentiu pena, e ficou. A menina pegou o ovo e o apertou junto ao peito. Ele emanava um aconchegante calor, como se estivesse sendo coberta por um manto bem quentinho e seco. Ele era ainda mais iluminado. Ela nem percebeu que as nuvens cobriam todas as estrelas agora, ficando só a luz da lua. Encostou na ave e, exausta, caiu num profundo sono.

Ela acordou abraçada ao ovinho, mas Falco não estava mais lá. Suas costas doíam, sua cabeça latejava. Mas ela não sentia frio, pois estava com seu ovo. Olhou onde estava. Não era ainda o topo da montanha, embora estivesse bem longe do solo seguro. Olhou para baixo, ficou com preguiça de descer. O ovo pesava ainda mais, e ela se perguntava por qual caminho seguir.

Já que voara tão alto, queria conhecer o topo. Sentia que se chegasse lá, encontraria a resposta. Queria que Falco estivesse consigo, mas ele se fora. Ela, então, decidiu subir sozinha, descalça, despida, levando o seu ovinho. De vez em quando, suspeitava que tinha companhia. Achava que era a raposa, mas não via ninguém e, quando fazia uma pergunta a ela, nunca vinha uma resposta em sua mente. As nuvens estavam densas e cobriam cada vez mais a lua, e ela sentia fome, sede, frio e cansaço.

Seu ovinho estava cada vez mais pesado, sua luz diminuía a cada instante. Ela já não o amava mais, e ele tampouco a aquecia. Parou e sentou um pouco para recuperar o fôlego, quando viu, ainda que distante, olhos flamejantes de lobos ferinos, desejando o ovo que carregava. Ela então levantou e correu o mais rápido que pôde, montanha acima. Nunca soube como os dispersou.

Chegou no topo, mais do que exausta, sentia que perdera grande parte de suas funções: já não se lembrava de casa e nem quem era. Cambaleante, num tropeço, deixou seu ovo cair e o ouviu rolar montanha abaixo. E então, sentiu uma fúria arrebatadora. Não queria ter ficado com ele, nem se livrado dele. Queria domá-lo. Ela era só uma menina, e ele a havia transformado num bicho. Olhou para o lado, viu, na penumbra, um machado. Olhou para o outro, e viu um ovo. De novo. Bateu na casca, ela era dura, parecia mármore.

Pegou o machado, era maciço, pesado, seu corte parecia muito afiado, assim ela sentia, tateando-o com cuidado naquele breu. Então, num átimo de cólera, ela o golpeou, duas, três, dez vezes até que o quebrou. Estilhaçou pelos ares. Agora que, finalmente, podia constatar o que havia ali dentro, ela não enxergava mais nada. Era só escuridão, e ela tombou.

(…)

Oco.

(…)

Depois que tudo era silêncio e sem luz, o sol nasceu. Os pássaros cantavam, e o riacho corria alegre e forte. Nas casas, os fornos exalavam cheiro de pão assado, o sino da igreja chamava para a missa. As flores desabrochavam, e as abelhas operárias não perdiam tempo, em busca do doce néctar.

A coruja finalmente recolheu-se para o merecido descanso. No meio da montanha, a gralha grasnava em lamento aos lobos que jaziam derrotados. No cume, Falco e a raposa contemplavam o ovo, que se mexia. Ele era muito maior do que os outros, quase do tamanho de Falco. Ouvia-se o “crec-crec” das bicadas de dentro da casca.  

Pouco a pouco, o som das bicadas internas ficava mais forte, e a casca ameaçava a se romper. De repente, uma pluma alva e cintilante surgiu em uma brecha. Numa bicada só, saiu a cabeça da linda ave branca, com o topo enfeitado de plumas. Seu bico era prateado, seu olhar era vivo.

Do lado esquerdo, uma asa, bela como de uma gaivota, em seguida, surgiu a outra. Falco estava comovido, a raposa, preocupada.  O silêncio daquele momento de êxtase foi quebrado pelo som de outro animal que subia a montanha. “Ela conseguiu?”, perguntou o coelho bege e branco, chegando de supetão. “Não”, disse a raposa pela primeira vez, “ela falhou”.

“Mas hoje é Páscoa, e neste dia, todos são perdoados! Ela poderá tentar depois mais uma vez”, disse Falco prestes a alçar voo com a menina nas costas, que dormia profundamente. “Espere! Trouxe isto”, era o coelho branco com a camisola dela. Vestiram-na, e então Falco a levou.

Era mais uma manhã de Páscoa, e como sempre, Ana acordou com o cheiro de pão assado. O sino já tocara oito vezes, e ela se levantou cansada e cheia de arranhões. Enquanto se perguntava por que sua camisola estava tão suja, um sentimento de gratidão invadiu seu coração. Ela não se lembrava de nada, mas estava feliz, porque era Páscoa.


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