Cristina Casagrande
Este artigo é a parte 3 de 3, numa versão reduzida e adaptada de um artigo presente no ebook “As Obras Póstumas de J.R.R. Tolkien: uma homenagem a Christopher”.
Leia a primeira parte reduzida aqui. Leia a segunda aqui.
Sabe-se que Tolkien chama o conto de Beren e Lúthien de a “principal das histórias do Silmarillion” (2010, p. 145–146). Tendo em conta que a opinião do autor é de grande relevância e que, ainda assim, é necessário comprová-la na obra, buscamos elementos para ratificar a afirmação daquele que concebeu as histórias de O Silmarillion.
Para tanto, começamos nos apoiando em uma explicação mais elucidativa de Tolkien na mesma carta, um pouco antes de mencionar o conto, baseada nos elementos da narrativa:
O contato entre Homens e Elfos já prenuncia a história das Eras posteriores, e um tema recorrente é a ideia de que nos Homens (como o são agora) há um traço de “sangue” e hereditariedade derivado dos Elfos, e de que a arte e poesia dos Homens são em grande medida dependentes dele ou modificadas por ele*. Ocorrem, assim, dois casamentos entre mortal e elfo — ambos posteriormente unindo-se na linhagem de Earendil, representada por Elrond, o Meio-Elfo, que aparece em todas as histórias, inclusive em O Hobbit. […]
*E claro que na realidade isso significa apenas que meus “elfos” são simplesmente uma representação ou apreensão de uma parte da natureza humana, mas esse não é o modo lendário de se falar. (Tolkien, 2010, p. 145)
Tolkien revela em sua afirmativa que o contato entre elfos e homens, enfatizando aqui a união esponsal, a qual deixa descendentes, é um modo lendário de dizer que há, na natureza humana, uma parcela de arte e poesia marcada por nosso imaginário, representada pelos elfos em seu legendário. Elrond, bem como seu irmão gêmeo Elros, seria um epítome desse efeito, pois sendo filho de Eärendil e Elwing, traz mais de uma união entre elfos e homens em sua ascendência. Sua mãe é neta de Beren e Lúthien, e Eärendil, seu pai, é filho da elfa Idril Celebrindal e do mortal Tuor.
Aos gêmeos foi dada a opção de escolher o destino dos elfos ou dos homens. Elrond escolheu o dos elfos, e Elros, o dos homens; assim, ambos simbolizam a natureza dos seres humanos na mitologia tolkieniana, que abrange o Mundo Secundário (imaginário) e o Primário (não imaginário). A lenda de Beren e Lúthien marca o início dessa união, sendo a sua última versão apresentada em O Silmarillion, quando Beren é um mortal, e Lúthien é, inicialmente, uma elfa dotada de imortalidade. Não por acaso, Arwen, filha de Elrond, e Aragorn, descendente de várias gerações de Elros fecham o ciclo, havendo mais uma união entre homens e elfos, misturando, do ponto de vista mitológico, as duas características da natureza humana, a prática e a artística, a natural e a sobrenatural.
A união de Beren e Lúthien traz a simbologia da parte mítica e da mística da humanidade. Ele tem um destino mortal, portanto sobrenatural, dentro de uma concepção cristã, como o próprio autor afirma em suas cartas. Essa fatalidade do homem é uma dádiva de Eru Ilúvatar, o único Deus na mitologia tolkieniana, e assim tem uma ligação com o mundo místico, sobrenatural, por toda a eternidade. Já a imortalidade élfica de Lúthien está ligada à natureza, e os elfos não morrem até que o mundo material se extinga. Assim, a parte mítica é associada a eles, que correspondem aos mistérios do mundo criado, entendido por meio do imaginário. Vale lembrar que, segundo o autor, na carta 186 (Tolkien, 2010, p. 236), a morte e a imortalidade configuram o tema central de O Senhor dos Anéis, obra conclusiva do legendário tolkieniano.
Lúthien Tinúviel traz uma carga simbólica muito grande do imaginário humano, mais especificamente no que diz respeito ao ser feminino, dialogando com figuras presentes nos contos de fadas, como Rapunzel, Branca de Neve e Bela Adormecida, ou personagens da mitologia como Penélope, Eurídice e Alceste. No âmbito da narrativa, Lúthien traz traços característicos das Valier, ou seja, os espíritos puros que assumiram formas femininas ao adentrarem o mundo material como poderes do mundo, quando este foi criado.
A amada de Beren tem a beleza do despertar da primavera, remetendo à Valië Vána, a Sempre-jovem; um dos seus encantos é a dança, atributo marcante de Nessa. Ela também está associada aos pássaros: seu canto lembra o da cotovia e seu destino remete à figura do rouxinol (significado de seu segundo nome, Tinúvel), sendo os animais (sub)criações de Yavanna. Seu destino está atrelado à conquista de uma Silmaril, pedra preciosa formada a partir de um fruto de Yavanna com a ação iluminadora de Varda, a Valië da Luz e das Estrelas, e, ademais, “seus olhos eram cinzentos como o anoitecer estrelado” (Tolkien, 2019c, p. 227). Lúthien também remete a Estë, ao conquistar a cura para Beren ferido, e a Nienna, ao comover o inexorável Mandos a mudar o rumo de sua história de amor, trazendo Beren de volta à vida, e, assim, decidindo tornar-se uma mortal com ele. Como Vairë, a esposa de Mandos, Tinúviel exerce o ofício de tecelã, ao fazer de seus cabelos um manto. Assim, a donzela do conto entrelaça em si mesma importantes fios condutores que formam a trama do legendário

Outro aspecto muito importante da união de Beren e Lúthien é destacado em mais um excerto da referida carta do autor:
Aqui encontramos, entre outras coisas, o primeiro exemplo do motivo (que se tornará dominante nos Hobbits) de que as grandes políticas da história mundial, “as rodas do mundo”, são frequente- mente giradas não pelos Senhores e Governantes, ou mesmo os deuses, mas pelos aparentemente desconhecidos e fracos — devido à vida secreta que há na criação, e à parte incompreensível a toda sabedoria, exceto a do Um, que reside nas intrusões dos Filhos de Deus no Drama. (Tolkien, 2010, p. 145, grifo nosso)
Na carta, ele continua dizendo que um mortal proscrito, Beren, e uma simples donzela, apesar de elfa pertencente à realeza, realizam feitos que nenhum exército jamais conseguiu: penetrar as moradas de Melkor e arrancar-lhe uma das Silmarils. Essa façanha é precursora de outro pilar importante de O Senhor dos Anéis: a edificação dos humildes. Ainda que de modo menos contrastante, à semelhança dos hobbits, os heróis dos grandes feitos da Terceira Era, esse espírito de valorização dos marginalizados aparece desde a Primeira Era, especialmente na história de Beren e Lúthien.
Se, em A Queda de Gondolin, os heróis se encaixam em um modo mimético superior, em Beren e Lúthien, paradoxalmente, os poderes de ação dos heróis se enquadram, em parte, mesmo tangencialmente, em diferentes modos na classificação do Frye. Por ser filha de Melian, uma Aini, Lúthien tem em seu sangue um ser “divino”, encaixando-se, portanto, no modo mítico, tendo até mesmo a capacidade de derrotar Sauron, um Ainu, em parte como seu “igual”. Por outro lado, ela é uma elfa, não propriamente um ser angelical, mas alguém cuja natureza é espiritual e corporal, próxima portanto de uma heroína romântica “cujas ações são maravilhosas, mas que é identificado[a] como um ser humano” (Frye, 2013, p. 146).
Sendo um homem da casa de Bëor, amiga dos elfos, e, por sua nobreza e coragem, dotado de qualidades de um herói superior aos demais homens, Beren poderia se encaixar no modo mimético elevado. No entanto, na narra- tiva, ele se encontra como um proscrito, separado dos seus e subjugado por Thingol, pai de Lúthien. A princesa élfica, por sua vez, “uma simples donzela, mesmo que uma elfa pertencente à realeza” (Tolkien, 2010, p. 146), também se vê tolhida frente aos grandes por sua condição de mulher (ainda que imortal).
Assim, embora dotados de muita nobreza, poderíamos dizer que os heróis da mais elaborada história de amor criada por Tolkien, por tais circunstâncias, remetem, em parte, também ao modo irônico:
Se inferior em força ou inteligência a nós mesmos, de modo que tenhamos a impressão de olhar de cima para baixo, para uma cena de sujeição, frustração ou absurdo, o herói pertence ao modo irônico. Isso ainda se aplica quando o leitor sente que está ou poderia estar na mesma situação, já que a situação está sendo julgada pelas normas de uma liberdade mais ampla. (Frye, 2013, p. 147, grifo do autor, negrito nosso)
Em um primeiro momento, tal classificação soa absurda em relação a Beren, mas especialmente em relação a Lúthien. Eles certamente não são inferiores a nós em força ou inteligência. No entanto, a despeito dessa diferença, se levarmos em conta a segunda sentença “quando o leitor sente que está ou poderia estar na mesma situação”, poderíamos encontrar alguma identificação. Isto é, enquanto leitores, nos sentimos tão intimidados quanto Beren e Lúthien na presença de Morgoth, e não vemos, a priori, que nenhum dos dois têm chance de vencer o Inimigo. Desse modo, podemos dizer que o conto de Beren e Lúthien flerta com o modo irônico proposto por Frye, o qual se apresenta de forma mais contundente no romance moderno, tais como O Hobbit e O Senhor dos Anéis, e não em narrativas mitológicas como as presentes em O Silmarillion.
É um pouco diferente da situação de Tuor que, embora também tenha de superar os malefícios de Morgoth diante da queda do reino de Turgon, não tem de enfrentá-lo diretamente como fizeram Beren e Lúthien. Além disso, Tuor é visto como um escolhido, ocupando um patamar acima dos seus. Beren e Lúthien, por sua vez, são subjugados e não têm direito de escolher ficarem juntos, precisando enfrentar perigo de morte para que isso aconteça.
A condição dos protagonistas traz tamanha relação com o modo irônico que Lúthien abandona a sua condição de elfa e dispensa a possibilidade de viver feliz entre os Ainur na alegre cidade de Valimar para ficar com seu amado novamente — pois essa era a condição de Mandos para que ela pudesse reencontrar vivo na Terra-média aquele que amava. Assim, a princesa de Doriath, filha de Maia e elfo, se torna mais uma mortal como nós.
Em um primeiro momento, tal classificação soa absurda em relação a Beren, mas especialmente em relação a Lúthien. Eles certamente não são inferiores a nós em força ou inteligência. No entanto, a despeito dessa diferença, se levarmos em conta a segunda sentença “quando o leitor sente que está ou poderia estar na mesma situação”, poderíamos encontrar alguma identificação. Isto é, enquanto leitores, nos sentimos tão intimidados quanto Beren e Lúthien na presença de Morgoth, e não vemos, a priori, que nenhum dos dois têm chance de vencer o Inimigo. Desse modo, podemos dizer que o conto de Beren e Lúthien flerta com o modo irônico proposto por Frye, o qual se apresenta de forma mais contundente no romance moderno, tais como O Hobbit e O Senhor dos Anéis, e não em narrativas mitológicas como as presentes em O Silmarillion.
É um pouco diferente da situação de Tuor que, embora também tenha de superar os malefícios de Morgoth diante da queda do reino de Turgon, não tem de enfrentá-lo diretamente como fizeram Beren e Lúthien. Além disso, Tuor é visto como um escolhido, ocupando um patamar acima dos seus. Beren e Lúthien, por sua vez, são subjugados e não têm direito de escolher ficarem juntos, precisando enfrentar perigo de morte para que isso aconteça.
A condição dos protagonistas traz tamanha relação com o modo irônico que Lúthien abandona a sua condição de elfa e dispensa a possibilidade de viver feliz entre os Ainur na alegre cidade de Valimar para ficar com seu amado novamente — pois essa era a condição de Mandos para que ela pudesse reencontrar vivo na Terra-média aquele que amava. Assim, a princesa de Doriath, filha de Maia e elfo, se torna mais uma mortal como nós.
O romance de fadas heroico se aproxima, em certa medida, do amor cortês medieval, pela idealização de Beren quanto à sua amada. Quando encontra Lúthien pela primeira vez, dançando pelas matas de Neldoreth, o filho de Barahir tem dela uma visão idealizada, pois “toda a memória de sua dor o deixou, e ele caiu num encantamento; pois Lúthien era a mais linda de todos os Filhos de Ilúvatar” (Tolkien, 2019c, p. 227).
Lúthien, chamada por Beren em O Silmarillion de Tinúviel, tal como ela é denominada nas versões antigas, é caracterizada como extremamente desejada a ponto de despertar o ciúme do elfo menestrel Daeron, o responsável por denunciar o casal a Thingol. Além disso, ela tem um pai superprotetor que, ao ficar ciente dos encontros de sua filha com Beren, “encheu-se de raiva, pois a Lúthien ele amava acima de todas as coisas, colocando-a acima de todos os príncipes dos Elfos; enquanto os Homens mortais ele nem mesmo punha a seu serviço” (Tolkien, 2019c, p. 228).
Outra característica importante no amor cortês medieval é a morte, pois, nas cantigas medievais, o amor da mulher desejada é impossível de se obter nesta vida. Além disso, “as cantigas de amor cortês são também o registro de sentimentos incontroláveis que alternam no mesmo espaço poético o sofrimento extremo e a felicidade intraduzível” (Barros, 2011, p. 198).
Beren enfrenta a própria morte, aceitando o desafio imposto por Thingol ao buscar sozinho uma Silmaril para poder ficar com sua amada Lúthien. Após muitas reviravoltas, o filho de Barahir, apesar de conseguir realizar o feito acaba, de fato, perecendo. Diferente das referidas cantigas medievais, no entanto, Lúthien também luta por seu amado, numa entrega equivalente. Além disso, o amor entre os dois supera a morte, depois de Lúthien receber a autorização de Mandos para voltar com Beren vivo à Terra-média, desta vez, com o destino de uma mortal.
Essa história de amor idealizado tem base na própria experiência de vida de Tolkien. O autor conheceu sua futura esposa Edith quando tinha 16 anos de idade, enquanto ela tinha 19. Ambos eram órfãos moradores no lar da família Faulkner e logo se apaixonaram, mas o então tutor de Tolkien, padre Francis Morgan, proibiu o romance até que o rapaz atingisse a maio- ridade, para que pudesse se dedicar mais a seus estudos. Tolkien esperou devotamente por sua amada até completar a idade necessária para tomar sozinho suas próprias decisões. Edith, por sua vez, acabou se mudando dali,
acreditando que não mais veria Ronald. Quando o jovem fez 21 anos e entrou em contato com ela para que retomassem o relacionamento, descobriu que ela já estava noiva. Inconformado, Tolkien convenceu a amada a romper o noivado e a voltar para ele. Ambos se casaram em março de 1916, e, em junho, Tolkien já estava lutando na batalha do Somme, na França, em plena Primeira Guerra Mundial. Foi para o hospital em novembro, com pirexia, e um ano depois, nasceu o primeiro filho do casal.
Foi em 1917 que Tolkien começou o Conto de Tinúviel, e, embora nunca tivesse declarado à esposa, a criação da elfa Lúthien foi inspirada nela. Conta o biógrafo:
Quando conseguia uma licença, Ronald e Edith passeavam no campo. Perto de Roos acharam um pequeno bosque com uma vegetação rasteira de cicuta e por lá perambulavam. Mais tarde, Ronald relembraria a imagem de Edith nessa época: “Seus cabelos eram negros, sua pele clara, seus olhos brilhantes, e ela sabia cantar — e dançar.” E ela cantou e dançou para ele no bosque, e daí veio a história que seria o centro do Silmarillion: a história do mortal Beren, apaixonado pela donzela élfica Lúthien Tinúviel, que ele vê pela primeira vez em um bosque, dançando entre a cicuta. (Carpenter, 2018, p. 137–138)
Cem anos mais tarde, Christopher Tolkien lançou o livro Beren e Lúthien (2017) unindo as diversas versões do conto. Anteriormente, em 1977, a narrativa já aparecera em O Silmarillion, onde encontramos uma mitologia independente da vida de Tolkien misturada a ecos de sua experiência pessoal. A primeira vez que Beren vê Lúthien é relatada assim em O Silmarillion:
Conta-se, na “Balada de Leithian”, que Beren chegou trôpego a Doriath, grisalho e curvado como quem viveu muitos anos de tristeza, tão grande tinha sido o tormento da estrada. Mas, vagando no verão pelas matas de Neldoreth, ele se deparou com Lúthien, filha de Thingol e Melian, na hora do anoitecer, sob a Lua que nascia, enquanto ela dançava sobre a relva sempre verde das clareiras à beira do Esgalduin. Então toda a memória de sua dor o deixou, e ele caiu num encantamento; pois Lúthien era a mais linda de todos os Filhos de Ilúvatar. (Tolkien, 2019c, p. 231, grifos nossos)
A primeira informação apresentada nesse trecho é que essa não é a primeira versão do conto, pois ela se baseou na Balada de Leithian, uma narrativa em verso da história de amor dos dois. Isso é um recurso muito comum nas obras de Tolkien e, de diversas formas, ele procura demonstrar que as narrativas são pontos de vista, não uma visão absoluta e onisciente. Na primeira versão de Beren e Lúthien, O Conto de Tinúviel, a história é narrada por Vëannë, uma elfa, a Ælfwine, um anglo-saxão que teria encontrado um acesso ao mundo dos elfos no século X.
Outro aspecto que nos chama atenção no excerto é o fato de Beren chegar trôpego às matas de Neldoreth. Por um lado, como já dissemos, isso reforça a idealização feita pelo personagem da mulher feérica amada, em parte, como no amor cortês medieval. Por outro, é clara a identificação de Tolkien com a narrativa. A relação era tão forte que foi o nome da per- sonagem que o autor escolheu para servir de epitáfio na lápide de sua amada. Escreve ele a Christopher:
Finalmente me ocupei com o túmulo de Mamãe……… A inscrição que eu gostaria é:
EDITH MARY TOLKIEN 1889 – 1971
Lúthien
: breve e seco, exceto por Lúthien, que me diz mais do que uma quantidade imensa de palavras: pois ela era (e sabia que era) minha Lúthien. (Tolkien, 2010, p. 397)
E, por esse motivo, seus filhos escolheram colocar “Beren” na lápide do autor, quando ele morreu dois anos mais tarde, em 1973. Na época em que Tolkien escreveu a primeira versão do conto, em 1917, ele ainda servia na guerra e oscilava entre o campo de batalha e os leitos de hospitais. Encontrar sua jovem esposa durante as licenças era um conforto em meio ao mar de terror experimentado nas trincheiras.
Logo no primeiro dia em que pisou na batalha do Somme, Tolkien perdeu um de seus melhores amigos, Robert Q. Gilson, membro do T.C.B.S. (Tea Club, Barrovian Society), um clube de estudos independente dos tempos do colégio. Meses mais tarde, morreu outro membro do grupo, Geoffrey Smith, também lutando na guerra. Dos “quatro imortais” que compunham o T.C.B.S., apenas Tolkien e Christopher Wiseman sobreviveram àquele tempo. Não é de se espantar que um jovem adulto, amante das letras e não das armas, órfão de pai e mãe, se apegasse tanto à sua bela esposa, idealizada e tão longamente aguardada por ele desde a adolescência.
A primeiríssima versão do maior conto romântico do autor, O Conto de Tinúviel, foi chamada por Christopher de “fantasmagórica”, pois sobreviveu como “um manuscrito a lápis que ele apagou quase por completo na maior parte de sua extensão” (Tolkien, 2018a, p. 28). Nela, Beren era um homem mortal, mas na primeira versão legível do Conto de Tinúviel ele é inicialmente um gnomo — lembrando que esse termo depois foi substituído por elfo da linhagem dos Noldor, caracterizados por grande conhecimento e habilidade. Na versão mais recente, publicada em O Silmarillion, Beren volta a ser um homem mortal, tornando mais assertiva a discussão entre morte e imortalidade no legendário.
Outras questões em O Conto de Tinúviel também aparecem diferente da versão presente em O Silmarillion: Melian, a mãe de Tinúviel (ainda não denominada Lúthien), é chamada Gwendelin, e ela é designada como “fata” (tradução para fay) e não Maia, como é referida posteriormente; Thingol, o pai, é chamado Tinwelint; e Dairon (e não Daeron como será chamado em outras versçoes) é irmão de Tinúviel. Sauron não aparece no conto; em vez disso, temos Tevildo, o Príncipe dos Gatos, seguidor de Melko (grafia antiga de Melkor) também designado como fata.
É nas moradas de Tevildo que Beren fica preso — como o será na Torre de Sauron, na versão última. Antes de o Príncipe dos Gatos ser substituído por Sauron, o Maia aparece com o nome de Thû, o Necromante, na Balada de Leithian, a versão do conto em forma de poesia.
Outra figura importante que aparece em todas as versões é Huan, o Mastim de Valinor. O cão de Oromë, o Vala Caçador, antes fazia a guarda do elfo Celegorm, mas com o tempo o animal feérico passa a proteger Lúthien e, consequentemente, Beren. Huan era, por assim dizer, um oponente dos lobos de Morgoth, uma espécie de entidade protetora, um sinal da divina providência.
Sobre o estilo de O Conto de Tinúviel, Christopher afirma:
Com nítida observação de detalhes (uma característica surpreendente), ele é contado em estilo extremamente individual, com alguns arcaísmos de palavras e construções bem diferentes dos estilos posteriores de meu pai, intenso, poético, às vezes profundamente “élfico-misterioso”. Há também uma corrente subjacente de humor sarcástico na expressão, aqui e ali. (Tolkien, 2018a, p. 29)
Já a versão poética da história, a Balada de Leithian, cujo significado do último termo é “Libertação do Cativeiro”, foi escrita entre os anos de 1925 e 1931. O poema, que contém mais de quatro mil versos distribuídos em catorze cantos, nunca foi acabado. Diferente dos versos aliterantes de Beowulf, cujo estilo aparece na versão poética de Os Filhos de Húrin, a Balada da Libertação do Cativeiro foi escrita em dísticos octossilábicos rimados, ou seja, versos de oito sílabas poéticas com rimas paralelas, destacadas abaixo:
‘Tis Lúthien of Doriath,’
the maiden spake. A wandering path
far from the Wood-elves’ sunny glades
she sadly winds, where courage fades
and hope grows faint.’ And as she spoke
down she let slip her shadowy cloak,
and there she stood in silver and white.
Her starry jewels twinkled bright
in the risen sun like morning dew;
the lilies gold on mantle blue
gleamed and glistened. Who could gaze
on that fair face without amaze? (Tolkien, 2018a, p. 169, negrito nosso)
Na tradução de Kyrmse: “De Doriath sou Lúthien’,/ diz a donzela. ‘A trilha vem/ longe dos Elfos, via escura/ percorro eu, já sem bravura/ e pouca fé.’ Dizendo tanto/ deixa cair sombroso manto,/ posta-se lá de branco e prata./ Cada sua joia luz refrata,/ orvalho ao sol que ruma só Sul;/ lírios de ouro em manto azul/ brilham, rebrilham. Mas quem fita/ sem pasmo a face tão bonita?” (Tolkien, 2018a, p. 168).
O poema, embora nunca tenha sido terminado, costuma ser bastante admirado pelos leitores entusiastas do autor, ainda que possa apresentar algumas imperfeições técnicas. O mais empenhado de seus críticos foi C.S. Lewis, amigo de Tolkien, e que recebeu em mãos o poema ao final de 1929:
Sua reação foi entusiástica — já no dia seguinte, ele escreveu a Tolkien: “Posso dizer com toda a honestidade que faz muito tempo que não tive uma noite de tanto deleite: e o interesse pessoal de ler a obra de um amigo bem pouco teve a ver com isso […]. ‘As duas coisas que se destacaram claramente são o sentido de realidade em segundo plano e o valor mítico: sendo da essência do mito que ele não deve ter nenhuma mácula de alegoria para o autor e, ainda assim, sugerir alegorias incipientes ao leitor.” (Duriez, 2018, p. 77, grifos nossos)
sobre a questão da alegoria (especialmente a de cunho moral), o autor de As Crônicas de Nárnia está bastante alinhado com Tolkien sobre o assunto. Lewis afirma acima que a alegoria encontrada se dá na liberdade do leitor, não por uma imposição do autor — da mesma forma afirmará Tolkien, anos mais tarde, no prefácio da segunda edição de O Senhor dos Anéis.
Lewis destaca também a união, ainda que em planos diferentes, do sentido de realidade e do valor mítico, conjugados na mitologia. No ano seguinte, conta Colin Duriez, o autor de As Crônicas de Nárnia entregou ao amigo catorze páginas de crítica sobre o poema, apresentando comentários na persona de diversos pseudocríticos literários, com linhas de pensamentos distintas.
A principal história de amor dos Dias Antigos também aparece em O Senhor dos Anéis, na Canção de Beren e Lúthien, entoada por Passolargo no capítulo “Um Punhal no Escuro”. São nove estrofes de oito versos cada, com rimas ABAC/BABC, em tetrâmetro iâmbico, ou seja, quatro pés métricos por verso, sendo cada um desses pés composto por uma sílaba átona seguida de uma tônica, como no verso de abertura (as tônicas estão em negrito nosso): “The leaves were long, the grass was green” (Tolkien, 2019a, p. 582); “Longas as folhas, verde a grama” (TOLKIEN, 2019a, p. 286). Ao contar a história de Tinúviel, Passolargo evoca memórias do passado que se fazem presentes na Terceira Era: “Vou contar-lhes a história de Tinúviel” […]. É uma bela história, apesar de triste, como são todas as histórias da Terra-média, e mesmo assim pode lhes dar ânimo.” (Tolkien, 2019a, p. 285)
Tempos mais tarde, Aragorn se casaria com Arwen, à semelhança de seus antepassados Beren e Lúthien. Dessa nova união, nasceria a tristeza da morte enfrentada por Arwen e o ânimo da esperança de uma vida além do luto, na qual Aragorn se apoiava. Assim, passado e presente se misturavam, e os feitos das eras passadas não foram esquecidos, tampouco desperdiçados.
Confira o artigo completo “Os Grandes Contos: Batalhas, Tragédia e Eucatástrofe” no e-book “As Obras Póstumas de J.R.R. Tolkien: uma homenagem a Christopher”. Ou baixe ele de forma avulsa aqui.
Referências
BARROS, J.D.A. O Amor Cortês – Suas Origens e Significados. Raído, Dourados, MS, v. 5, n. 9, p. 195–216, jan./jun. 2011.
CARPENTER, H. J.R.R. Tolkien: Uma Biografia. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018.
DURIEZ, C. J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis: O Dom da Amizade. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018.
FRYE, N. Anatomia da Crítica: Quatro Ensaios. Tradução de Marcus de Martini. São Paulo: É Realizações, 2013.
TOLKIEN, J.R.R. Beren e Lúthien. Edição de C. Tolkien. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018a.
TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019a.
TOLKIEN, J.R.R; CARPENTER, Humphrey; TOLKIEN, Christopher (ed.). As Cartas de J.R.R. Tolkien. Tradução de Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte&Letra, 2010.

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