Por Eduardo Boheme
É curioso que a fama (não a importância) do Tolkien tradutor tenha vindo do Tolkien pseudotradutor: se hoje suas traduções de poemas medievais são lidas e ansiosamente aguardadas por um público bem amplo, isso deve muito à pseudotradução de O Hobbit e O Senhor dos Anéis.
Em 1975, duas décadas após a publicação de sua obra-prima, Christopher Tolkien trouxe à luz as versões modernas que seu pai produzira dos poemas em inglês médio Sir Gawain and the Green Knight, Pearl e Sir Orfeo. Apesar do peso e das associações que o nome “Tolkien” carrega, essas traduções gozam de autonomia acadêmica, isto é, os entendidos conseguem separá-las saudavelmente da obra ficcional do autor e avaliá-las de forma independente.
Quando se pôs a traduzi-los, Tolkien tinha plena consciência do desafio imposto pela complexidade formal desses poemas, particularmente Pearl. Uma tarefa formidável, sem dúvidas: “[…] um tradutor não é livre, e [Pearl] é por si só muito complexo, frequentemente obscuro […]”, afirmou ele em carta (Carpenter, 2006: 317). Ainda que preso pelos grilhões da forma, Tolkien não se intimidou e completou as traduções a contento, embora não as tenha visto sair do prelo.
Quando publicada, uma obra traduzida pode tanto iniciar uma tradição ou inserir-se em um corpo já existente de traduções de um mesmo texto-fonte. Em qualquer um dos casos, ela passa a ser um potencial objeto de estudo para tradutólogos, tradutores, críticos, resenhistas… não foi diferente com esses trabalhos de Tolkien, é claro.
Parece evidente, mas nunca é demais enfatizar que a crítica de tradução só tem credibilidade quando seu autor possui excelente comando de ambas as línguas envolvidas no processo, afinal, como diz Gandalf a Gríma, o sábio só fala daquilo que conhece. Se alguém com domínio limitado de português, por exemplo, apontasse defeitos em traduções brasileiras, essas críticas soariam como perversidade gratuita. Igualmente, seria afrontoso se alguém com conhecimento tétrico e tacanho de inglês médio criticasse as traduções de Tolkien.
Não é o caso de Michael D. C. Drout, ele mesmo competente medievalista e estudioso da obra tolkieniana. Voltando-se para a tradução que Tolkien fez de Sir Gawain and the Green Knight, Drout diz que, para ele,
[A] tradução de [Marie] Borroff é melhor do que a de Tolkien, cuja atenção rigorosa à métrica e à aliteração é alcançada […] em detrimento do sentido e da clareza. Em inglês médio, Sir Gawain and the Green Knight é um poema animado, rápido. A tradução de Tolkien é um tanto pesada e lenta, e algumas palavras não dão apenas uma sensação de arcaísmo, mas são completamente desconhecidas até dos melhores alunos contemporâneos […](Drout, 2007: 126).
Sobre Pearl, porém, o autor (2007: 130) diz que há quase um consenso entre medievalistas de que a versão feita por Tolkien é “a mais bem-sucedida tradução em inglês moderno desse poema” e que, pessoalmente, ele acredita ser a melhor tradução já feita de qualquer texto em inglês médio.
O artigo de Drout não era especificamente sobre tradução, e sim uma avaliação sobre o alcance e relevância das publicações acadêmicas de Tolkien. Contudo, temos aí um argumento confiável, porque vem de uma autoridade no assunto. O que não significa que o argumento seja cabal, apenas que tem credibilidade. De fato, outro tradutor de Pearl, Simon Armitage, avalia a tradução de Tolkien com outros olhos. Diz ele que
o maior dilema [da tradução de Pearl] diz respeito à principal técnica que opera o poema, isto é, a rima, com cada estrofe aderindo ao rigoroso esquema rimático ababababbcbc. Alguns tradutores mantiveram-se colados ao esquema de rimas […] Alguns, como Marie Borroff, usaram termos obsoletos […] e então remanejaram a estrutura da frase ao redor para posicionar as palavras da rima no fim do verso. Outros introduziram material novo ao poema para completar os pares acústicos. Por exemplo, Tolkien diz ‘I vow that from over orient seas’, no terceiro verso, para ecoar ‘please’, ao fim do primeiro verso. Por mais elegante que sua solução pareça, o terceiro verso diz, na verdade, ‘Oute of Oryent, I hardyly saye’ (algo como: ‘in all the Orient, I confidently say’), sem qualquer menção ao mar [‘sea’]. (Armitage, 2016: xiv).

Ora, Armitage, o mais novo Poeta Laureado do Reino Unido e tradutor premiado, fala com autoridade, e expõe um ponto de vista distinto, ainda que não diametralmente oposto, ao de Drout. E, como ele afirma, a intenção não é desmerecer a tradução alheia:
Chamo a atenção para as imperfeições dessas diferentes metodologias não por crítica, mas por solidariedade. Quando se trabalha com o poema, toda decisão parece ser um acordo entre som e sentido, entre autenticidade medieval e clareza moderna, e entre o que é preciso e o que é poético. (Armitage, 2016: xv).
Perceba que ele não diz “boicotem a tradução de Tolkien, porque ele colocou uma palavra que não consta no original, então presumivelmente os outros mil e duzentos versos estão defeituosos também”. Não. Como bom crítico e tradutor, Armitage estabelece uma conversa respeitosa com a longa tradição formada por todas as versões de Pearl em inglês moderno. Ao inserir sua própria tradução nesse grupo, ele dá continuidade ao diálogo e cria um espaço para o debate, não uma arena para o embate.
É verdade que nem todos são como Armitage. O próprio Tolkien frequentemente foi muito cruel em suas críticas de tradução. Mas ele tinha a prerrogativa de ser um dos maiores filólogos de seu tempo, e não preciso repetir que a credibilidade de um argumento tem a exata medida da competência de seu autor. Além disso, quem lê as críticas de Tolkien aprende muito. Não são textos longuíssimos, circulares e vazios que mais aborrecem do que ensinam, e que levam o leitor a pensar que fazer crítica de tradução é sair à cata de erros no trabalho do outro.
Pensemos nas traduções como pensamos nos códices medievais, e dispensemos aos tradutores a mesma tolerância que dispensamos aos escribas. Naqueles belos livros, erros aparecem com muita frequência. Às vezes, páginas inteiras eram copiadas por engano. Mas isso não lhes tira a beleza, nem torna menos árduo o trabalho do escriba. Como lembra um deles (citado em Rouche, 2009: 525), o ofício de um copista “embaralha a vista, causa corcunda, encurva o peito e o ventre, dá dor nos rins. É uma rude provação para todo o corpo. Assim, leitor, vira delicadamente as páginas e não ponhas os dedos sobre as letras”.

Obras citadas
Armitage, Simon (trad.). 2016. Pearl (London: Faber and Faber) Carpenter, Humphrey (ed.). 2006. The Letters of J. R. R. Tolkien (London: HarperCollins).
Drout, Michael. 2007. J.R.R. ‘Tolkien’s Medieval Scholarship and its Significance’, Tolkien Studies, 4, 113-176.
Rouche, Michel. 2009. ‘Alta Idade Média Ocidental’, in Paul Veyne (org.) História da Vida Privada I: Do Império Romano ao Ano Mil, trad. de Hildegard Feist (São Paulo: Companhia das Letras) pp. 403-532.
Eduardo, quero lhe agradecer por este texto. Não só ele é de leitura agradabilíssima – tanto mais que denota a sua erudição – mas representa um belo apoio a nós outros, tradutores por profissão ou deleite, que não só lutamos com palavras (“a luta mais vã”, diz Drummond), mas também contra os trols internéticos. Obrigado, portanto, por compreender nosso esforço e por expô-lo com tanta habilidade. Um abraço!
Eu que agradeço pelo comentário ilustre, Ronald. É a luta mais vã, sem dúvida, mas ainda vale a pena lutar!
Grande abraço!
Belíssimo texto.
Obrigado, Felipe!
Republicou isto em Clareira Fantástica and commented:
Eduardo Boheme, mestre em tradução literária pela Trinity College, discute no texto sobre a crítica literária e os aspectos de tradução de J. R. R. Tolkien. Texto muito esclarecedor sobre como as traduções devem ser analisadas.
Muito obrigado, Alberto!
Eduardo, parabéns pelo texto! Excelente e sutil abordagem do assunto! Pontos de vista e argumentos fatídicos. Usou luvas de pelica ao escrever o texto? rs
Hahahaha “usar luvas de pelica” é uma expressão que jamais deveria ter saído de moda!
Nunca tinha pensado por esse lado e faz muito sentido !
Obrigado, Leonardo!