Lá e de volta outras vezes: Tolkien entre memória e história

Este texto é fruto do curso “Tolkien e a formação do imaginário”, ministrado por Cristina Casagrande, no Lugar de Ler, em São Paulo, de janeiro a março de 2019.

Como projeto final, os alunos foram convidados a postar aqui no site, se assim tivessem interesse. Dois alunos toparam, e segue o primeiro texto, por Vinícius de Oliveira, 23 anos.


Por Vinícius Veneziani
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Cartaz do curso ocorrido de janeiro a março de 2019

Não me lembro exatamente quando e como conheci a obra de J.R.R. Tolkien. E isso é bom, para não dizer até apropriado, pois significa que faz muito tempo. Provavelmente tomei conhecimento da Terra-média pelos ouvidos, escutando o que falavam sobre ela, e arrisco dizer que a primeira vez que vi algo com meus próprios olhos foi em 2003, num alvo cartaz de cinema, no qual se lia: O Retorno do Rei. Interessante como a memória do ator Ian McKellen naquele pôster nunca me deixou. De certa forma, meu relato será sobre isso: Tolkien fixando raízes na minha história, assim como certamente fez em muitas outras durante anos. Ora, o leitor pode se perguntar então por que ler isso? Um desconhecido falando o que aparentemente muitos já sabem e ainda por cima exprimindo seu apreço por uma literatura mundialmente admirada? O que há de novo? Bom, creio que até o final dessa breve jornada a resposta poderá ser descoberta.

Coloquei minhas mãos nos livros, pela primeira vez, graças a uma fantástica promoção online. Lembro-me de abrir animado um grande e pesado pacote contendo os três volumes de O Senhor dos Anéis, além de O Hobbit e O Silmarillion em suas edições da época. A verdade, porém, é que quando os adquiri, por volta dos 14 anos ou antes, não sabia por onde começar a ler e, é claro, não sabia realmente o que estava fazendo. Meu conhecimento prévio era mínimo e o resultado, como se pode presumir, foi desastroso.

Por mais que me divertisse o dia inteiro jogando o game d’O Retorno do Rei com meu primo durante os finais de semana ou mesmo me encantasse com os bonecos nazgûl ou Barbárvore (hoje raridades inestimáveis) nas lojas de brinquedos que ia com minha família, eu não sabia de muita coisa. Nem mesmo a primorosa trilogia de filmes havia conferido por completo, pois quando finalmente sentei para ver A Sociedade do Anel na TV, fiquei terrivelmente apavorado com a tentativa de Bilbo de reaver o Anel em Valfenda. Mesmo resistindo bravamente e permanecendo no sofá sozinho, assustado e tarde da noite, com aula na manhã seguinte, fui tomado pelo sono quando a comitiva alcançou Lothlórien. Nem sequer me recordo quando assisti a As Duas Torres pela primeira vez e tenho lembranças vagas de O Retorno do Rei, mas jamais esquecerei minha frustração quando tentei (por duas vezes) assistir à animação O Senhor dos Anéis de 1978.

Além disso, meus hábitos de leitura incluíam J.K. Rowling, Dan Brown e os livros escolares, de forma que nunca havia explorado um universo como o de Tolkien. Admito que aproveitei aquela promoção online por impulso. Mas, em minha defesa, não se tratou de um impulso puramente consumista, pois sabia tanto por ouvir-dizer quanto por minhas precárias tentativas que havia algo naquelas histórias e livros (além das capas legais e dos dragões). Algo que sempre vislumbrava e que me fazia querer voltar à Terra-média.

Comecei pelo O Senhor dos Anéis (não havia quem me aconselhasse a seguir por uma trilha menos íngreme) e minha leitura foi duramente impactada (se não nocauteada) por Tom Bombadil. Se cheguei ao Conselho de Elrond, já me consideraria um prodígio, mas não me lembro nem sequer da chegada em Valfenda. Como disse, não sabia no que realmente estava me metendo nem com quem falar.

Os livros acabaram indo para a prateleira e, sinto dizer, por alguns anos, tornaram-se belas aquisições empoeiradas. Porém, o tempo passou. Em 2012 sentia-se uma excitação pulsante com a promessa de retornar à Terra-média nos cinemas, novamente pelas mãos do célebre Peter Jackson, com a adaptação de O Hobbit. Para mim, a estreia do filme foi um marco, pois não só fiquei maravilhado com Uma Jornada Inesperada como também topei limpar a incômoda poeira de pelo menos um daqueles antigos livros.

Foi quando conheci e me apaixonei pela história de Bilbo – ouso afirmar onde estava e quais eram as condições meteorológicas do dia em que li a conversa com Smaug, até hoje minha parte favorita. De O Hobbit segui para O Senhor dos Anéis, depois para O Silmarillion e continuei com livros encontrados depois, como Contos Inacabados, Filhos de Húrin e por aí vai, num fluxo de leitura quase ininterrupto, digno de um adolescente. A obra tornou-se tão querida por mim que até me recusava a deixá-la em mãos menos cuidadosas — certa vez, cheguei a inventar uma história esdrúxula só para não emprestar O Hobbit para um amigo. Hoje, é claro, me arrependo de ter feito aquilo, mas me consola saber que ele visitou a Terra-média do mesmo jeito não muito tempo depois e que ainda somos grandes amigos. Dou risada dizendo a mim mesmo que na época havia contraído a Doença do Dragão, sido influenciado pelo Anel ou coisa parecida; certamente riremos juntos quando ele descobrir a verdade sobre aquela lorota.

Aí está um detalhe importante. Durante a adolescência, considerei meu relacionamento com Tolkien algo especialmente privado. Algumas amizades até faziam piadas sobre o calor de Mordor ou aquelas infames sobre a relação de Frodo e Sam e até pouco tempo tínhamos um debate acalorado sobre as asas dos balrogs. Mas não encontrava em mais ninguém a mesma paixão. E por um tempo foi assim, guardando dentro de mim, sem perceber cada vez mais fundo, talvez até sufocando, meu prazer pela Terra-média. Cheguei até a negligenciá-la: “só uma fantasia, não é sério”. Voltava para lá cada vez menos, mas nunca me esquecia dela. Algo continuava me chamando de volta.

Para essa história, preciso dizer que o começo da faculdade foi difícil. A pressão que colocava em mim mesmo cobrava seu preço desmatando meu cabelo e desestabilizando minha vida emocional. Felizmente, além do apoio familiar que sempre tive, fui iluminado pela chegada de alguém que me ajudou especialmente a detectar o que havia de errado comigo: estudava muito, mas não me divertia enquanto isso. Numa das muitas vezes em que desabafei, inconscientemente comecei a chorar e sem querer deixei escapar “sinto falta da Terra-média, sabe?” Ela então me disse para ir para casa e fazer o que fosse preciso. Naquela noite, bem tarde deitado na cama, coloquei os fones de ouvido e escutei a música inesquecível de Howard Shore, “Concerning Hobbits”. Chorei de novo, mas dessa vez com o coração aquecido. Aquele som foi uma acolhida perfeita, um cálido convite para finalmente voltar para casa. Foi quando as coisas começaram a mudar.

Pouco a pouco, redescobri o que sabia e desbravei novos horizontes envolvendo a literatura tolkieniana. As antigas conversas que tinha com os amigos ficaram ainda melhores. Acabei lendo livros até então desconhecidos — o que provavelmente deu origem a minha mania “colecionista” de exemplares raros e alternativos, mal que acredito muitos dos fãs de Tolkien também sofrerem. E assim como 2012, 2017 também foi um ano de virada, pois celebramos na ocasião os 80 anos da primeira publicação de O Hobbit.

Para não os aborrecer por muito mais tempo, serei breve para chegar logo a meu ponto, se é que já não o fiz. Decidi, de última hora, comparecer a uma palestra sobre o aniversário da obra na universidade e lá ouvi pela primeira vez a poderosa voz de Ronald Kyrmse, cuja importância para os estudos brasileiros sobre Tolkien é quase indescritível, além de descobrir a existência dos estudiosos tolkienistas. A partir de então, comecei a me enfiar em quase todos os lugares onde Tolkien era assunto, me familiarizando com aqueles que apareciam para animar a cena, e percebi que havia encontrado uma oportunidade. Devo dizer que aproveitá-la fez toda a diferença.

Palestra Tolkien_USP4
Cartaz de palestra ocorrida em fevereiro de 2017

“Por que não explorar a obra de Tolkien como estudioso, a exemplo dessas pessoas?” Essa foi uma questão decisiva e pode-se dizer até natural. Após leituras e releituras, papos amigáveis e risonhos, maratonas (de sucesso ou não) dos filmes, tantas horas de games, eventos e cursos e por aí vai, por que não? Sim, é isso o que eu quero.

Meu percurso como graduando havia sido ótimo, mas claramente faltava algo (já estou abusando da boa vontade dessa palavra). Na minha carreira, faltava personalidade. Faltava um toque pessoal, um envolvimento humano, vibrante e quem sabe apaixonado, visível no caso dos tolkienistas, que sempre transmitiram uma inspiradora mensagem àqueles que quisessem trilhar um caminho semelhante. Hoje, sinto-me leve e encorajado, pronto para dizer: quero estudar Tolkien. E por quê? Porque finalmente descobri que nessa literatura estava aquele algo que me faltava, parte de mim mesmo que parece sempre ter estado lá.

Não faz mais sentido separar as duas coisas, já que aquelas histórias também contam parte da minha história. Estudá-la em algum sentido trará um benefício não só intelectual, mas de certo autoconhecimento. Não se trata, porém, dum anseio autobiográfico, pois inúmeras outras histórias de leitores, escritores, editores, estudiosos, entusiastas e assim infinitamente só no Brasil estão entrelaçadas com a obra de Tolkien esperando para serem exploradas. Há muita coisa pela frente e creio que por hora o leitor poderá aceitar essa conversa.

Vale ressaltar que a considerável popularidade do autor está cada vez mais em alta hoje em dia, aqui e mundo afora, tendo em vista pelo menos o impactante e novo momento editorial de sua obra pelas mãos da editora HarperCollins Brasil, o lançamento de sua cinebiografia e a euforia com a nova série de TV da Amazon Prime ambientada na Terra-média, para falar apenas de alguns fatores.

Desde 2017, testemunho admirado a proliferação de espaços e encontros voltados para a literatura tolkieniana, sem esquecer o papel central que, para isso, tiveram as redes sociais e os grupos de discussão, com meu destaque para o formidável trabalho do Tolkien Talk. Além disso, há alguns meses foi realizada a maior exposição sobre Tolkien já vista, Tolkien — Maker of Middle-earth, primeiro no Reino Unido, agora nos EUA e quem sabe para onde depois? Não posso esquecer do próprio curso que é a razão de ser desse texto, ilustrativo da rede de boas companhias e pesquisas intrigantes que vem sendo tecida nos últimos anos. Em suma, não estou dizendo que o boom vem de hoje, mas que a hora é agora.

Se o leitor chegou até aqui, penso que se pode explicar isso de três maneiras: o assunto é de seu interesse, eu lhe despertei algum interesse ou os dois. Ficarei contente se a última alternativa for o caso de alguém, pois o plano desde o começo sempre foi oferecer algo diferente para se ler envolvendo Tolkien, autêntico e coerente ao mesmo tempo, capaz de se aproximar das pessoas em poucas páginas. Tive, para minha infelicidade, de me segurar para não escrever mais. Dessa forma, a exemplo dum contador de histórias, chego ao final convidando a todos para a leitura do próximo capítulo. Historiador em formação que sou, no entanto, preciso dizer que até aqui escrevi livre e conscientemente a partir de minhas recordações, deixando a pesquisa histórica concreta reservada para o futuro. Enquanto cozinho a ideia principal e adiciono outros ingredientes, basta saber que retornarei a essa história, tendo o leitor conhecido apenas seu começo inesperado.


Vinícus de Oliveirai

Vinícius Veneziani é historiador em formação na USP e expulsa outros livros da estante para dar mais espaço à obra de Tolkien.

7 thoughts on “Lá e de volta outras vezes: Tolkien entre memória e história

  1. O dono da “voz poderosa” está muito contente por ter ajudado a trazer mais um para os estudos da vida e obra de Tolkien. Siga a Estrada – você não se arrependerá, pois vai aprender muita coisa boa.
    Merin sa haryalye alasse – Desejo que você tenha felicidade

    1. Sou profundamente agradecido pela gentileza, presença e carinho – espero seguir nessa Estrada na companhia de todos vocês, bons mestres!

  2. Adorei o texto, confesso que li ele para ver como a magia da cultura literária se expande na vida da pessoa, já que sempre acho isso bonito, mas esta escrita conseguiu me cativar de verdade, principalmente ao falar do momento em que você está no começo da faculdade.
    A leitura foi apaixonante pelos tons de sinceridade e a escrita confortável, confesso estar curioso para o trabalho de história em Tolkien que você citou.

  3. Que comentário acolhedor! Agradeço muitíssimo pelas palavras amigáveis e faço também uma confissão: estou ansioso para em breve descobrir e conversar mais sobre Tolkien e História!

  4. Adorei o texto, sua história e sua escrita realmente me prendeu! Espero que dê certo essa sua missão de unir a História com Tolkien, precisamos disso na nossa academia (e fora dela, claro), tente nos manter informados quando suas publicações começarem!
    Boa sorte nessa sua jornada.

    1. Fiquei muito contente com sua resposta e sou imensamente agradecido pelo incentivo! Espero que possamos todos conversar sobre Tolkien e novas pesquisas o quanto antes!

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