“Raya e o Último Dragão”: ecos de um passado mítico e de um presente devastado

Giovanna Chinellato

Tolkien (1936, p. 3) escreveu que “dragões, dragões de verdade, essenciais para o mecanismo e ideias de um poema ou conto, são de fato raros”. Raro é uma boa definição para muitos aspectos de Raya e o Último Dragão: protagonista e antagonista mulheres, fortes, líderes e guerreiras; nenhuma menção a um interesse romântico; temática de confiança e união; foco na cultura do sudeste asiático; universo distópico para crianças; e, claro, uma dracena muito única.

Sisu é quase o oposto do imenso dragão alado, cuspidor de fogo, acumulador de tesouros e destruidor de civilizações que se popularizou no ocidente. Pequena, sem asas, associada à água, ela abre mão do único tesouro que tem, uma gema mágica, para salvar a humanidade. Mas embora traga uma imagem nova e diferenciada para a Disney, sua representação remonta a mitos e lendas tradicionais da Ásia, enquanto dialoga com tendências atuais nas narrativas de dragão.

A maior inspiração para Sisu foram as Nāga do Hinduísmo e Budismo, criaturas que se assemelham a serpentes e, como a dracena, têm chifres curvados na cabeça, vivem em corpos d’água, podem se transformar em seres humanos e controlam fenômenos naturais, como chuvas, trovoadas, neblina e névoa. As Nāga também são frequentemente associadas à fertilidade da terra e tesouros, especialmente gemas, outros dois aspectos abordados no filme.

Naga Sculpture/CC

Porém, as patas e a crina de Sisu remontam a aspectos do dragão chinês, “Long”, que também está ligado à água e em muitas regiões deu origem a representações e narrativas híbridas com as Nāga. É difícil precisar, como todo mito, uma origem para o dragão, mas os registros mais antigos que sobreviveram até os dias de hoje são justamente da Ásia: os dragões-porcos da cultura Hongsham (4.000–2.500 A.C.), possíveis antecessores do Long chinês, e as próprias Nāga, anteriores a 3.000 a.C.

Em outra semelhança interessante com narrativas antigas, tem-se o mapa da fictícia Kumandra formando a imagem de um dragão e as regiões como partes de seu corpo, o que, seja proposital ou não, pode lembrar ainda outra narrativa ancestral: a de Tiamat, que, segundo G. Elliot Smith, autor de The Evolution of the Dragon, é mãe do dragão ocidental. No Enuma Elish da antiga Babilônia, compilado provavelmente no primeiro milênio antes de Cristo, Tiamat é uma dracena que representa o mar e é destruída pelo deus Marduk, que usa seu as partes do seu corpo para formar o mundo para os humanos.

A Chaos Monster and a Sun God/Public Domain

Assim, embora Sisu e os dragões do longa da Disney possam parecer novidade para o espectador ocidental, eles trazem ecos de narrativas milenares que, ao que tudo indica, antecedem os dragões de fogo que se popularizam na Europa. Mas longe de se prender ao passado, o filme aborda também questões recentes como a distopia ambiental causada pela ação humana. A ideia da extinção de dragões também é bastante nova e vem sendo abordada em diversas narrativas desde o fortalecimento do movimento ambiental na década de 1970, como em A Saga da Herança (Christopher Paolini) e As Crônicas de Gelo e Fogo (George R. R. Martin).

Uma outra tendência atual é a de trocar o antigo matador de dragões pelo salvador de dragões, o que é especialmente popular entre as narrativas para crianças. No cinema, tem-se os sucessos Como Treinar o Seu Dragão (Dreamworks) e Pete’s Dragon (Disney). Na literatura, para citar alguns, My Father’s Dragon [O Dragão do Meu Pai](Ruth Stiles Gannett), The Reluctant Dragon [O Dragão Relutante](Kenneth Grahame), O Cavaleiro do Dragão (Cornelia Funke), A História sem Fim (Michael Ende). Essa inversão se dá em partes pelas transformações na relação entre homem e natureza, mas também pela forma como a sociedade lida com a infância: é esperado que as crianças (mas não necessariamente os adultos) demonstrem empatia e um bom relacionamento com animais — dragões inclusos.

Porém, embora dialogue com o antigo e o novo, Raya e o Último Dragão também consegue criar algo completamente inovador. Ao invés de dragões associados ao caos, antagonistas da civilização, ou até ao selvagem que deve viver livre, como em outras narrativas infantis, Sisu e seus irmãos representam a confiança e a união. O verdadeiro antagonista do filme, representado pelos devastadores Druun, é algo que vem de dentro de cada um e reflete no coletivo: a discórdia e desunião — e a dracena é o norte moralizador de toda narrativa.

Assim, a mensagem e o incrível visual de Raya e o Último Dragão prometem marcar pequenos e grandes, principalmente num momento de tantas incertezas e distanciamentos, pois Sisu é, de fato, um raro dragão de verdade.

Obras Citadas
G. Elliot Smith, autor de The Evolution of the Dragon
TOLKIEN, J. R. R. Beowulf: The Monsters and the Critics. Sir Israel Gollancz Lecture, 1936.



Giovanna Chinellato é tradutora e doutoranda em Letras Estrangeiras e Tradução pela Universidade de São Paulo (USP). No mestrado, estudou as transformações na representação de dragões ao longo do tempo, associando-as com as mudanças na relação homem-natureza. Atualmente pesquisa fantasia, ficção científica, literatura infantil, ecocrítica e tradução.


Apoie o Tolkienista ao comprar na Amazon pelos links sugeridos: https://tolkienista.com/apoie-o-site-tolkienista/



Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s