Lorena S. Ávila
“Nada se cria, tudo se copia”, sugere o ditado, mas talvez essa não seja a forma mais justa de expressar os desígnios da inspiração. Ela é quase que um filho da arte, uma forma de perpetuar a espécie e de manter a humanidade viva geração após geração, é uma força sobrenatural que age dentro de nós e nos impulsiona a seguir nosso instinto mais primitivo: criar.
Ao redor do mundo, as pessoas encontraram jeitos diferentes de atender a esse chamado da inspiração tolkieniana e foi no rock, mais especificamente na vertente do heavy metal, que essa energia foi transformada num movimento musical intenso. O livro O Senhor dos Metais, escrito pelo acadêmico Stefano Giorgianni, publicado no Brasil pela editora Estética Torta, apresenta um dos estudos mais completos sobre as influências do épico do Professor num estilo de música que nasce com a contracultura.

Giorgianni é membro da Associação Italiana de Estudos Tolkienianos e prova que estudar Tolkien pode ser extremamente divertido e instigante. A julgar pelo nome é fácil concluir que essa é uma obra muito específica direcionada apenas para fãs. Mas a verdade é que esse livro está muito além das expectativas; perpassa a história da cultura mundial sob o olhar do rock metal, mostrando o quão a música é extremamente significativa para refletir os tempos.
O heavy metal não é tão popular, mas fez um sucesso estrondoso entre os anos 80 e 90, deixando um grande legado para os dias atuais. Tornou-se símbolo de uma geração que aos poucos se libertava de uma realidade limitada e pacata. Àquela época, os percursores desse som eram vistos como rebeldes, mas hoje sabemos que foram revolucionários, afinal, deram melodia para o caos. Os gritos expressivos combinados com a guitarra, a bateria e a poesia formaram um tipo de canção peculiar, mas curiosamente profunda. Com o solo alto e ressoante, vieram também filosofia, crítica e imaginação.
Por mais que Tolkien, já idoso, manifestasse sua oposição aos hippies e as ideias propagadas por uma nova geração mais “acalorada”, ele mesmo não soube identificar naqueles jovens um resquício do que ele havia sido um dia. E esse é o maior pivô entre as diferentes gerações; a negação do que já fomos pela pessoa que nos tornamos com o amadurecimento. No fim, todos nós sentimos as mesmas angústias e o mesmo desejo de expressá-las. Na história, os que souberam escutar sua voz interior tornaram-se heróis.
Não era o TCBS um grupo de jovens rebeldes, a seu modo, que desafiavam o status quo? O escritor, o poeta, o músico e o desenhista. Pressionados pelos pais a seguirem carreiras “sérias” e a desistirem de seus sonhos “tolos” de fazer a diferença no mundo. Sequestrados por uma guerra injusta que não tinham começado, tal qual a do Vietnã, tal qual a pandemia. Independente da época, é sempre possível traçar um paralelo muito claro entre aqueles que estão no auge de sua vintolescência, por assim dizer.

É inegável que o metal reverbera uma emoção quase sufocada nos indivíduos. É, na verdade, um gênero criado e difundido por pessoas cheias de sensibilidade. Não é loucura especular que daí se dá o simbiótico encontro com a fantasia, que, por sua vez, é uma autêntica manifestação de uma camada obscura da mente, evocando uma beleza sombria com histórias que mergulham fundo nos mistérios da psique e da humanidade.
Há inúmeros motivos que tornam O Senhor dos Metais um livro extremamente rico, mas o mais interessante deles é a jornada pela qual o autor nos guia, nos levando a explorar todo o grande mapa do rock e do heavy metal. Curiosamente, a própria trajetória do metal enquanto gênero artístico, espelha a jornada do herói de Frodo: as incertezas do chamado para a aventura, o encontro com o desconhecido, o confronto com o mal e a prevalência do bem no retorno para as origens fantásticas.
Nesse caminho, surgiram diversas ramificações e vertentes inimagináveis como o rock cristão, com bandas formadas por pastores e devotos. Além do black metal e do satânico, mesmo este encontra representatividade na figura de Sauron e Melkor. Por falar em ideologia, o campo é tão vasto que nem a política fica de fora e, infelizmente, nos deparamos com versões racistas e classicistas com o surgimento do black metal nacional-socialista, que exaltavam o nazismo, a supremacia branca e os pensamentos da extrema direita.

O trabalho minucioso de Giorgianni não apenas explica todas as camadas do gênero, como separa muito bem o que é inspiração indireta e direta, diferenciando meras menções, de analogias e proximidade. Há composições que são totalmente sobre a Terra-média, mas há outros que ficam à margem da interpretação de cada um. Sem mencionar que foram poucas as bandas que admitiram publicamente as fontes de suas melhores ideias. Mas claro que Giorgianni fez questão de veicular no material algumas entrevistas que complementam e dão dinâmica ao livro.
Mesmo que de modo breve, o autor não deixa de introduzir outros gêneros e músicos que, em algum momento, escolheram Tolkien como padrinho. Nesse contexto, a cultura pop testemunhou um peculiar encontro: Leonard Nimoy, o icônico ator que interpretou Spock na primeira versão de Star Trek, chegou a gravar uma faixa intitulada “The Ballad of Bilbo Baggins“. E não é que ficou legal?!
Por mais que demore, a experiência de leitura é elevada a outro patamar quando buscamos ouvir as canções, muitas estão disponíveis no Spotify, Deezer ou outras plataformas de música. Giorgianni nos presenteia com ótimas descrições, e tudo fica perfeito quando colocamos as músicas mencionadas e conseguimos compreender sua fala inteiramente. Ele explica as composições, disponibiliza letras e faz uma análise detalhada.
Sua pesquisa é de uma qualidade encontrada apenas entre os melhores estudiosos, aqueles que mergulham em seu trabalho pelo prazer de redescobrir as narrativas secretas escondidas nos detalhes que geralmente deixamos escapar quando nos relacionamos com quaisquer obras artísticas. A Terra-média moldada pela voz do soberano Eru Ilúvatar, a partir de uma música perfeita, é um desses fenômenos inexplicáveis capaz de unir o bem e o mal, impactando as pessoas de diferentes idades, diferentes crenças e pensamentos, em diferentes períodos e países. As histórias do Mundo Secundário tornou-se alimento primário para milhões de pessoas; nutri, fortifica, movimenta, transforma.
Graças a ousadia de Tolkien e as coisas que vieram muito antes dele e muito depois, tivemos o privilégio de ver a fantasia expandir suas fronteiras. Nesse círculo de trocas perene que certamente podemos chamar de mágico, pois não creio que há nome mais apropriado, cabe refletir: seríamos nós os Ainur?
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Lorena S. Ávila é jornalista, formada pela Universidade Metodista de São Paulo. Tolkienista de coração, ama a arte de contar histórias e acredita no poder das narrativas.