Sombra e Ossos | Livro é fantasia pop que promete mais do que entrega

Lorena S. Ávila

A fantasia no século XXI é quase um Santo Graal que todos nós, escritores, tentamos desesperadamente encontrar. O Senhor dos Anéis, Harry Potter, As Crônicas de Gelo e Fogo, As Brumas de Avalon e Sandman parecem muito mais lendas antigas do que histórias imaginadas e concebidas por pessoas comuns.

Herdamos universos inacreditáveis, magníficos para dizer o mínimo, mas junto com eles nos tornamos leitores ainda mais exigentes. O conto de fadas deixou de ser uma simples história de camponês e tornou-se um dos gêneros literários mais complexos; difícil de escrever, mais difícil ainda de agradar. E não importa quantos selos do New York Times já tenha recebido, no capitalismo tudo se vende, quase nada realmente cativa. 

A ânsia por algo novo que nos torna ávidos a comprar qualquer livro que pareça interessante a primeira vista explica, em parte, o sucesso de obras como Sombra e Ossos, da escritora Leigh Bardugo. A outra parte fica a cargo da nova geração de leitores, que eram bebês quando os millennials sonhavam em receber a carta de Hogwarts, e ninguém imaginava que veria a Terra-média se tornar série produzida por loja de departamento online. 

Fato é que, seja por essas razões ou por outras mais subjetivas, talvez o sucesso de Sombra e Ossos tenha alcançado seu ápice ao se tornar a mais nova aposta da Netflix. O livro, que é o primeiro de uma trilogia, recém publicada no Brasil pelo selo Minotauro da editora Planeta, tornou-se uma das séries mais assistidas do streaming em abril. Mas infelizmente sua fama não a precede. 

A história é centrada em Alina Starkov, uma simples cartógrafa que precisa atravessar com sua equipe um lugar chamado “Não Mar” ou Dobra das Sombras; trata-se de um enorme paredão profundamente escuro que divide Ravka, seu país. O problema é que essa travessia conta com um obstáculo a mais além do breu: monstros terríveis. 

Durante o trajeto, ao ver seu melhor amigo de infância ser atacado por um dos volcras, Alina acidentalmente libera um poder capaz de destruir as criaturas. É a partir daí que tudo muda para a garota, que se descobre ser uma Grisha, classe de homens e mulheres poderosos que controlam os elementos da natureza, sendo Alina o tipo mais raro: domadora da luz. 

Se a premissa parece interessante, à medida que lemos o livro vamos nos frustrando com o potencial desperdiçado da história. O romance principal entre Alina e Maly, seu amigo, em vez de ser pano de fundo para uma história política potente, é o foco principal. No entanto, Maly é uma personagem chata e Alina tampouco segura a narrativa com seu excesso de humildade, insegurança e afeto. 

O protagonismo fraco dos dois desestabiliza a trama. O espaço fica livre para um vilão muito mais atraente emergir; o que acontece apenas por um breve momento, que vemos desaparecer gradativamente. O antagonista, apesar de conquistar, é óbvio, e as pessoa que poderiam ser potenciais vilãs são retratadas como boas num total maniqueísmo. Não há surpresas, e o principal plot twist é preguiçoso. Nada preenche o vazio da obra; existe algo que o leitor vai sempre perseguir pelas páginas e nunca irá encontrar. 

São muitas descrições e pouco desenvolvimento; quando chegamos no ponto de virada, há uma quebra de clímax e percebemos uma personagem dessintonizada com o resto da história. Ela permanece inalterada, apesar do mundo todo ao seu redor ter se transformado. A impressão que fica é que algumas situações poderiam ser melhor trabalhadas, enquanto outras são completamente dispensáveis. Por mais que existam partes 2 e 3, o primeiro livro deveria ser mais coeso.  

Se é possível destacar alguns pontos positivos, a tensão sexual entre um par romântico improvável nos alivia com doses de euforia. Se a autora optasse por seguir essa esfera do romance, provavelmente tudo seria mais interessante. Além disso, a jornada de treinamento da Alina, que precisa aprender a usar e controlar seu poder é bem divertida, por alguns capítulos encontramos verdadeiro prazer em vê-la se adaptar a esse novo mundo glamouroso dos Grishas. 

Aliás, essa ordem de “bruxos” que nomeia toda saga de Bardugo, com sete livros no total, o Grishaverso, é a melhor fatia do todo. A força e as habilidades de cada um são curiosas, embora o princípio da magia seja o mais inautêntico possível: alquimia. Na tentativa de encontrar um ponto de convergência plausível entre a realidade e o fantástico, muitos autores recorrem à alquimia, mesmo que esta esteja disfarçada com outras nomenclaturas como “Pequena Ciência”. 

Curioso, Tolkien mesmo nunca se importou em justificar a magia excessivamente, Martin nem perdeu seu tempo inserindo-a em seu livro, Bradley recorreu sabiamente a religião e Rowling usou o bom e velho abracadabra das varinhas de condão. O que nos leva à reflexão do quão necessário é justificar o injustificável. 

Bardugo se utiliza bastante da cultura russa para compor sua narrativa. A inspiração direta é rapidamente observada nos nomes de personagens, cidades, descrição de trajes, difícil é identificar a perspectiva histórica. Quem tem um conhecimento básico de Rússia, sobretudo do século XIX e XX vai encontrar alguns paralelos na organização política e principalmente em duas personagens cruciais para a história: o Darkling e o Apparat, ambos representam facetas do famoso Rasputin, um conselheiro real que virou lenda no nosso mundo após sobreviver a inúmeros assassinatos. 

A escritora foi inteligente em fazer o que boa parte dos autores de fantasia tem optado: escolheu um período real como base para sua obra. Mesmo que tenha sido um momento já exaustivamente abordado por outros escritores, Bardugo conseguiu se livrar dos clichês explorados por quem insiste nos últimos anos de dinastia Romanov. Isso garantiu ao seu trabalho uma estrutura sólida indispensável a qualquer obra literária. 

Gostando ou não, o Grishaverso é bem famoso e expansivo, possuindo dois spin-offs, dentre eles uma duologia que os fãs da escritora defendem ser seu melhor projeto; o Six of Crows (ainda sem tradução no Brasil) e uma nova duologia, King of Scars (também sem tradução). Tudo indica que esses livros podem ser publicados pela Planeta em breve, que como sempre entrega uma edição linda, um design gráfico bem feito que nada se compara com o trabalho de outros países. 

Por fim, Sombra e Ossos não é nem um romance ardente daqueles que nos envolve, nem uma fantasia potente daquelas que nos arrebata. Fica superficialmente no limiar entre uma coisa e outra, sem entregar as emoções que todo leitor busca numa obra. Acaba atendendo melhor o público juvenil e raramente vai conquistar o leitor aficionado por fantasia, que já conhece os principais clássicos e aprecia muito o gênero.

LIVRO VS SÉRIE 

Em uma decisão acertada, as novas empreitadas da Netflix no gênero fantástico estão rendendo bons frutos. A começar por The Witcher, que chegou com a promessa de se tornar o próximo fenômeno a ocupar o vácuo deixado por Game of Thrones. E agora Sombra e Ossos, que acaba de ser renovada para a sua segunda temporada, notícia que agradou aos fãs e, confesso, até a mim… Um pouco. 

Não que a série seja muito diferente do livro, afinal, ainda é a mesma história. Mas a série definitivamente é melhor, principalmente porque recorta partes da saga e mescla a história. O trabalho dos roteiristas foi impecável ao criar toda uma nova dinâmica para a narrativa, e mesmo que esse seja um movimento óbvio inerente a qualquer adaptação, o livro facilmente poderia seguir a mesma linha se fosse narrado em terceira pessoa, dando uma dimensão muito maior e mais completa do universo e dos acontecimentos. 

Na série não vemos somente a perspectiva de Alina, o que nos leva a conhecer novas personagens até mesmo mais fascinantes do que a protagonista. É o caso do trio de mercenários, ou ‘Corvos’, Inej, Kaz e Jesper, três figuras peculiares e marcantes por quem nos apaixonamos logo de cara. O mesmo ocorre com Nina Zenek, uma Grisha desertora e o Matthias, um caçador de Grishas, nem precisa dizer que o encontro dos dois é explosivo em vários sentidos. Ambos os núcleos foram retirados das outras obras que compõem o Grishaverso. 

A produção está de alto nível; cenografia, maquiagem, figurino e efeitos não deixam nada a desejar. Com grande destaque para os monstros e a evocação do poder, que por sinal também foi muito bem coreografado; os atores mexem suas mãos e fazem o movimento tão naturalmente quanto a maravilhosa Elizabeth Olsen, a Feiticeira Escarlate da Marvel. 

Por falar em atuação, o trabalho de casting é mais um ponto positivo que merece elogios. O elenco é composto por atores que, apesar de serem nomes relativamente novos na área, possuem muito talento e transmitem bem a essência de seus papéis. Escalar o veterano Ben Barnes (o Príncipe Caspian de As Crônicas de Nárnia) como Darkling foi uma excelente escolha.

O mais importante é que a Netflix se mostra inclusiva e diversificada, inserindo na obra profissionais de todas as etnias. A sábia ideia de se posicionar como a nova face do audiovisual, trazendo representatividade para todos os seus produtos, fica também perceptível no enredo que, via de regra, trouxe pautas atuais. Fazendo isso, a Netflix não apenas educa sua audiência, mas propõe uma transformação potente num mercado dominado por privilegiados. 

Soma-se esse desempenho às inúmeras soluções bem mais inteligentes para situações que, no livro, ficavam sem sentido. O final é um ótimo exemplo disso e por todos os episódios é fácil identificar momentos corrigidos com apenas uma inversão cronológica, detalhe extra que felizmente não deixaram escapar.

Claro que, em contrapartida, os míseros oito episódios são muito pouco para captar detalhes que seriam fundamentais. Então, por mais que a série tenha apresentado uma estrutura bem amarrada, muitos momentos ficam de fora. A adaptação praticamente não mostra os dias de treino e dedicação da personagem, o que deixa um espaço em branco na sua trajetória, cortando aquele elemento emocionante da jornada do herói. 

O famoso encontro com o mestre é um dos pontos que forjam a grande transformação e transcendência da personagem, sem isso, fica difícil gerar conexão. A ausência de Baghra, que aparece pouquíssimas vezes numa sucessão de cortes, é realmente decepcionante. Ela é essencial, poderia ter um papel melhor tanto no livro quanto na série, mas no livro ao menos temos mais convívio com ela. 

Genya, a amiga controversa de Alina, também é deixada de lado. Se no livro as duas criam uma relação sólida, na série isso é bem menos evidente. Explorar mais Marie e Nadia foi desnecessário, haja vista que elas são completamente irrelevantes na história inteira, desprezadas por Alina.

Inevitável é transportar para o formato problemáticas como a total falta de carisma de Maly, bem como a angustiante ausência de química entre ele e Alina. É um casal que não desejamos ver juntos e isso nem a série foi capaz de corrigir. Eles parecem muito mais irmãos do que amantes e não vemos essa relação evoluir de nenhuma forma.

Ao final, os sentimentos ficam divididos, fato é que o protagonismo conturbado tanto de Alina quanto de Maly atrapalha muito o desenrolar da história e todo o resto, não fosse isso talvez o conjunto da obra ficasse mais cativante.


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Lorena S. Ávila é jornalista, formada pela Universidade Metodista de São Paulo. Tolkienista de coração, ama a arte de contar histórias e acredita no poder das narrativas.

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