“Angst” de Rammstein e o sentimento mais antigo da humanidade: o medo

Emanuelle Gomes

“(…) a emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido” (H. P. Lovecraft).

No dia 29 de abril, a banda alemã de metal industrial, Rammstein, lançou o seu oitavo álbum de estúdio, intitulado Zeit. As músicas desse álbum versam sobre o tempo e temas recorrentes à sua passagem: o envelhecer, a chegada da morte e o medo que a aproximação dela, nos causa, são alguns deles.

Com o lançamento, o sexteto alemão aproveitou a deixa e divulgou um videoclipe para uma das faixas do álbum, Angst – em alemão, “angústia”. Acompanhando a letra, especificamente no refrão, na qual o vocalista pergunta: Wer hat Angst vorm schwarzen Mann? – literalmente “Quem tem medo do homem negro?” – nos atentamos para o significado de “medo” para a palavra que dá título à música. Instantaneamente, nos lembramos de Lovecraft.

Com uma fotografia majoritariamente em preto, branco e vermelho, o enredo de Angst faz uso de muitas imagens um tanto perturbadoras, que despertaram a curiosidade em relação aos possíveis simbolismos presentes. Procuramos na ocasião, pistas sobre o conteúdo.

As imagens de Angst podem parecer um misto de diversas coisas sem sentido: cheerleaders dançando aos riffs das guitarras pesadas, o percussionista inicia o som com capacete que tem cabos ligados à uma fonte, o vocalista Till Lindemann aparece preso em uma camisa de força como um louco e, sendo transportado numa maca pelas líderes de torcida. Em um outro take, ele e os demais membros da banda estão vestindo roupas conservadoras como homens que vivem nos subúrbios americanos. Neste mesmo momento, monitores individuais estão estrategicamente posicionados atrás deles, e os mesmos estão ligadas aos mesmos cabos que ligam o percursionista e o “louco” Till, logo na sequência.

A função primária dos monitores é mostrar o vocalista discursando nas TVs, enquanto os demais parecem viver em tranquilidade, até que, mais adiante, algumas mudanças expressivas se dão. A partir do momento em que eles são “sugados” pelo computador, eles compram materiais de construção, fazem muros entre si, cercam seus espaços com arames farpados. São as cheerleaders que vendem os materiais, e mais adiante, também as armas semiautomáticas que eles usam para “defender” seus espaços.

Em se tratando de Rammstein, a resposta é sempre sim no que diz respeito aos sentidos semióticos dos vídeos combinados com as letras de suas músicas. Muitas vezes, eles optam por temáticas chocantes, porém com um toque de arte e de poesia. Como pontes também fazem críticas sociais apuradas em boa parte das músicas.

Boa parte dos vídeos acabam por completar a ferramenta audiovisual, sendo costumeiramente possível fazer uma análise das mensagens que querem passar em praticamente todo lançamento de sua discografia, mesmo que não se entenda uma palavra sequer em alemão.

Uma matéria da Louder Sound deu um vislumbre do que possa ser a mensagem lírica combinado com o vídeo de Angst. Em uma conversa com uma professora de literatura alemã moderna de Oxford, Karen Leeder, é possível compreender melhor algumas cenas, já que não entendo alemão a ponto de poder fazer uma interpretação mais detida. A contribuição da professora acabou sendo fundamental para montar uma reflexão em relação à semiótica apresentada no vídeo. A seguir, a tradução do que ela disse na matéria:

“O ponto de partida é a família, o pai ameaçando a criança malvada com o ‘homem negro’, ou bicho-papão. Mas logo vemos países e povos se armando contra o que não entendem e, assim, temem. Um poderoso coro desafia ociosos bodes expiatórios: ‘Quem tem medo do bicho-papão?’.
A canção tem suas raízes em um jogo de recreio alemão do século XVIII, Black Man, um jogo ligado ao folclore e à história da peste, e há mais indícios do famoso poema ‘Erlkönig’ (‘Rei dos Elfos’) de Goethe, no qual um goblin vem para roubar uma criança como a encarnação do medo. Mas com os moradores se trancando, certamente aqui alertamos sobre o Covid e o Fortress Europe”.

No início do período pandêmico da Covid-19, foi pelos noticiários que tivemos as primeiras informações a respeito das medidas de proteção relatadas pela OMS e as autoridades em outros países. Isso não aprece claramente no vídeo, mas é uma possível interpretação se observarmos a mudança de comportamento dos músicos em seus espaços – após saberem de algo pela internet, decidem construir proteções de uma ameaça exterior.

Essa situação está muito mais clara, quando nos voltamos para o que a professora indica ser uma crítica à Fortress Europe. O termo era usual na Segunda Guerra Mundial, usado como propaganda militar tanto pelos Aliados quanto pelos países do Eixo, e se referia às áreas da Europa Continental ocupadas pela Alemanha Nazista em oposição ao Reino Unido através do Canal da Mancha.

Nesse sentido, acabamos por entender melhor a figura do louco encarnado pelo vocalista Till Lindemann, que assim que é posto de pé em frente à uma bancada com um microfone. Percebemos se tratar de uma representação de um político discursando. Till está amparado por um encosto, que é ligado por cabos coordenados por monitores de televisão ou de computadores – justamente por onde seu discurso será acessado pelos outros “homens comuns”.

A associação é imediata e o seu sentido não parece arbitrário: as cores usadas ali, são as mesmas usadas pelo Partido Nazista encabeçado por Adolf Hitler. O preto, branco e vermelho aparecem fortemente na fotografia do vídeo, desde o início  (com exceção dos segundos finais, quando, após o vocalista destruir uma TV, toda a imagem do enquadro, ganha cores, a cada frame, mais vivas).

Nos últimos tempos, temos visto ascender ao poder líderes políticos, ideólogos de uma extrema-direita, em alguns países do mundo. Estes causaram espanto por suas atitudes desmedidas e discursos inflamados, na mesma medida em que conseguiram ser ouvidos, principalmente pela grande quantidade de apoiadores. Essas figuras se aproximam do padrão de personalidade do líder do Terceiro Reich alemão: são pessoas de caráter duvidoso, gritalhonas e destemperadas, que fazem uso da mídia para proliferarem seus discursos com mais facilidade através da propaganda baseada no ódio, com o artifício das fake news.  

Atualmente, a Fortress Europe se refere tanto em relação à imigração e políticas de fortificação de fronteiras europeias, quanto a sistemas de patrulhas da fronteira e de centros de detenção com o intuito de prevenir que pessoas de outros países solicitem asilo ou mesmo imigrantes entrem na União Europeia. Essa também é uma forma incômoda que o sexteto alemão faz irromper no vídeo, sobretudo no final, quando música acaba e reaparecem a criança e possivelmente sua mãe, posicionadas fora daqueles espaços fortificados que os homens urbanos possuem. As duas parecem miseráveis e assistem da tela de um celular, o comportamento destes “povos livres” como em um efeito boneca russa de imagens: eles estão despreocupadamente comendo, enquanto observam as duas pessoas sem móveis, sem comida, sem amparo e o conforto que eles possuem.

É possível que esses recortes de cenas sejam uma crítica ao que prega no Sonho Americano, ou seja, uma sociedade com ideais de liberdade, bem sucedida e próspera, com vastas possibilidades de ascensão social por meio de um trabalho duro. É também uma sociedade consumista, subserviente à manipulação das massas com distrações, como as mídias audiovisuais.

O que saltaram aos olhos na fala da professora Karen na matéria da Louder Sound é que a música remete à questões não tão bem conhecidas, postas com duas referências culturais: um jogo de playground muito corriqueiro no século XVIII, chamado Black Man, e um poema de Johann Wolfgang von Goethe do mesmo período.

Em algumas rápidas pesquisas, é possível encontrar como funciona o jogo. Parecido com o nosso “pega-pega”, trata-se da escolha de uma pessoa, que será o black man – uma espécie de caçador – que ficará atrás de uma linha traçada em um campo aberto, enquanto os demais ficarão atrás de outra linha, oposta. O black man deve perguntar “quem tem medo do homem negro?” e com a negativa dos demais, passam a correr entre as linhas limítrofes, fugindo do black man que deve tentar pegá-los. Quem é pego torna-se uma espécie de assistente, ajudando a pegar remanescentes, até restar apenas um, que será dado como vencedor. A única regra é não correr de volta para a linha de partida – caso contrário, também se torna assistente do “homem negro”.

Como foi dito pela professora, esse jogo era associado à Peste Negra ou Black Plague, The Black Death, nomes comuns da pandemia da Peste Bubônica que assolou a Europa na Idade Média entre os anos de 1347 e 1351. Como podemos também sugerir, o nome do jogo não estava relacionado à raça ou cor de pele: é possível associar o nome de “morte negra” com o aspecto que os doentes ficavam, com as feridas enegrecidas no corpo do infectado, e daí o nome pela qual ficou conhecida.

Entendemos o sentido de representar a infecção, que se dava pela picada da pulga de ratos contaminados com a doença, em humanos. Como na Idade Média o saneamento básico era inexistente e a higiene não era uma preocupação, o simples contato com uma pessoa infectada ou viver em locais imundos, já colocava qualquer pessoa em estado de potencial vítima da doença. A falta de tratamento eficaz, a falta de estrutura para isolar os doentes e o lento avanço da medicina, em proporção à evolução da infecção, diminuía muito as possibilidades de cura e não salvava nem mesmo os mais ricos do possível contágio.

O black man como jogo, não é necessariamente racista, mas sim, uma forma corpórea da Peste Negra. O medo de uma pandemia horrenda como essa, no século XVIII ainda amedrontava a população. E nesse sentido, um senso de autopreservação irrompe desse medo, como algo inerente à cultura humana desde seus primórdios: observar os sinais para podermos nos afastar dos males, tais como ser infectado por uma doença fatal.

No entanto, no vídeo de Rammstein, essa possibilidade se torna sólida, não só com o vírus da Covid (que também é transmitido pelo contato entre humanos), mas também é um vislumbre de como a Europa (e os Estados Unidos) tratam imigrantes em seus territórios. Nesse sentido, as duas pontes – a doença e cor de pele, isto é, o outro – se unem como uma só crítica sobre o comportamento da sociedade diante deles.   

O medo provoca em nós diversos sentimentos – o de autopreservação é um dos considerados positivos, para uma questão de sobrevivência e instinto. Já os sentimentos negativos são mais desproporcionados: geram sofrimento em relação à incerteza do que pode vir a acontecer, no futuro, ou desespero por sentirmos que nos aproximamos de uma ameaça, ou ainda a fraqueza da impotência em relação à escolha de não poder evitar uma fatalidade.

Der Erlkönig, Albert Sterner

Segundo a professora Karen Leeder, um poema de Johann Wolfgang von Goethe chamado “Der Erlkönig” ou “Rei dos Elfos”, é esse lado negativo do medo de algo fatal possa acontecer. Essa referência da cultura germânica conta a história de uma figura, um goblin, que rouba crianças, e é, como ela mesma diz, a encarnação do medo. Nesse sentido, temos uma melhor explicação quando ela menciona “bicho papão” logo em seguida.  

Em um pequeno artigo, uma pesquisadora Maisa dos Santos Trevesoli fez um comparativo entre a obra do escritor alemão de 1792 e uma releitura realizada por Angela Carter, em forma de conto, e publicada em um volume de 1979. No artigo, ela comenta a inspiração da balada de Goethe, buscada em The Erl-King’s Daughter que foi:

“(…) traduzida e transcrita por Johann Gottfried von Herder a partir de uma variante dinamarquesa da balada escandinava, Elveskud, sobre a vingança planejada pelas filhas do rei dos elfos contra Olav, um homem prestes a se casar com a mulher de sua vida, que recusa as investidas amorosas feitas pelas filhas do nobre por ser apaixonado pela sua noiva.” (2016, p. 2)

Esse poema narra a história de um pai cavalgando com o filho nos braços numa floresta escura, em uma noite de muito vento. A criança sente a presença na floresta de uma figura que se apresenta como Erlkönig ou “The Erl-king”. Ele oferece roupas luxuosas e um reino para o menino que fica cada vez mais atormentado, suplicando que o pai afaste o goblin.  O pai tenta acalmar o garoto, lhe dando explicações lógicas como o que ele está ouvindo é apenas o som da brisa entre as folhas e que não existe um Elkönig. O garoto continua sendo ameaçado, suplica ajuda. O pai sente a sua aflição e cavalga mais depressa até a corte, mas em vão. O menino é atacado violentamente pelo rei dos elfos, que insiste que o levará à força, e morre.

Segundo Trevisoli, Goethe traz no poema, “um cenário sombrio típico da literatura gótica em que seus personagens, pai, filho e o Erlkönig representam a batalha entre emoção e razão” (2016, p. 2). Tudo indica que a criança estava doente, febril, e o pai estava indo atrás, possivelmente, de um médico. Salta aos olhos também uma ideia comum no século XVIII, quando Goethe escreveu a balada, de que a natureza não é tomada por aspectos religiosos ou estéticos, mas sim a representação da floresta é de um local de desconhecimento, de penumbra e fantasticamente mortal. Além disso, (e é mencionado também no artigo de Trevisoli) uma criança inocente consegue perceber as forças mágicas da natureza, enquanto o pai, representando o Iluminismo, desconhece ou ignora essa perspectiva.

Essa questão de um “rei dos elfos” sequestrando crianças nos lembrou algo mais recente. Torna-se quase impossível, ao lermos um pouco sobre o poema de oito estrofes escrito por Goethe e não associarmos ao filme musical estrelado por David Bowie chamado Labirinto – A Magia do Tempo de 1986.

O enredo do longa conta com uma adolescente que gosta de peças teatrais e livros de fantasia. Ela não tem nenhum afeto pelo seu irmãozinho ainda bebê, e numa noite, precisará cuidar dele para que seu pai e madrasta possam sair juntos. Na dita noite, o bebê chora assustado com uma tempestade, e a protagonista começa a recitar trechos do livro Labyrinth, na qual evoca os poderes do Rei dos Goblins – interpretado por Bowie.  Contando uma história para o irmão dormir, querendo deixar o quarto, ela diz “eu quero que os goblins o levem” e como um feitiço, o irmão para de chorar, e ela percebe que ele realmente foi levado. A irmã, fica arrependida, e sai em uma jornada fabulosa de encontro com o Rei dos Goblins, para resgatar o bebê.

Isso também me fez lembrar de duas passagens de J.R.R. Tolkien em seu ensaio Sobre Estória de Fadas. A primeira delas está inserida justamente aqui, nessa questão – das forças fantásticas. Ao fazer uma crítica sobre a incapacidade do Drama captar ou realizar a fantasia, ao mesmo nível da literatura, ele diz que somente em Feéria é possível ir além da razão, mas não negando-a. Somente o “engenho élfico” é capaz de munir — se assim podemos dizer — o subcriador dessa capacidade de produzir fantasia ou estórias de fadas:

“Ora, o ‘Drama Féerico’ — aquelas peças que, de acordo com registros abundantes, os elfos frequentemente apresentam aos homens — pode produzir Fantasia com um realismo e uma imediatez além do alcance de qualquer mecanismo humano. Como resultado, o seu efeito usual (sobre um homem) é ir além da Crença Secundária.” (TOLKIEN, 2020, p. 61)

Se presenciarmos um drama no Belo Reino, estaremos (ou pensaremos que estamos) dentro de seu Mundo Secundário. A experiência, diz Tolkien, pode ser muito parecida com o Sonho, e, frequentemente é confundida, pelos homens, com ele. Mas, no caso, o drama de Feéria é um sonho que outra mente está concebendo, e o conhecimento desse fato estarrecedor pode escapar de nossa compreensão. Dito de outra forma: não existe, em Féeria, suspensão da credulidade, e, portanto, não pode haver o “faz de conta”. Contempla-se esse Outro-mundo que surge com certa estranheza e assombro, ao passo que é estimado.

Ao experimentar, de forma direta, um Mundo Secundário, “a poção é forte demais” e atribuímos à Crença Secundária, não importando o quão maravilhoso sejam os acontecimentos. Somos, de alguma forma, “iludidos” pelos elfos (e se essa é a intenção deles, é outra questão); no entanto, eles mesmos não se iludem. Para os elfos, essa é uma forma de arte diferente da Mágica ou da Magia propriamente dita. Eles não vivem nela, mas talvez sejam capazes de gastarem mais tempo com ela do que os artistas humanos. “O Mundo Primário, a Realidade de elfos e homens, é o mesmo, ainda que diferentemente valorizado e percebido.” (TOLKIEN, 2020, p. 61)

Isso é bastante poderoso para entender a visão de Tolkien a respeito de uma das “funções” das estórias de fadas que ele discute no ensaio. O Mundo Primário não é, em nenhum momento, desprezado seja por elfos ou homens. A Realidade também não é suplantada pela Fantasia ou a Imaginação. O mundo apenas ganha um outro olhar, através da Linguagem e esse outro sentido, é a Crença Secundária.

Nesse sentido o garoto que sentia a presença de Erlkönig no poema de Goethe não estava simplesmente delirante: ele tinha uma perspectiva diferente da realidade, que o pai, “esclarecido”, ignorava. Não era um medo irracional, cujas as explicações lógicas deveriam aplacar. É um medo que conseguimos entender por ser expressivamente uma emoção humana – e de acordo com Lovecraft, a mais antiga das emoções.

Nisto, uma questão associada à infância, ao medo infantil e ameaça fantástica aparece e se torna bem óbvio se retomamos as premissas de black man e “Erlkönig”, sobretudo quando estão associadas, na fala da professora à matéria da Louder Sound (em relação a Angst), com o bicho-papão – uma figura folclórica conhecida no mundo todo.

A aproximação que nós brasileiros temos com essa “criatura” advém da cultura ibérica. Seu aspecto não possui consenso; há lendas que o colocam como um grande monstro de olhos vermelhos. Nas histórias de J. K. Rowling sobre o menino bruxo, Harry Potter, o bicho-papão aparece como um “não ser”, indefinido. No terceiro livro da saga, ele aparece em O Prisioneiro de Azkaban (2000), numa aula de Defesa contra as artes das trevas, do Professor Lupin:

“Bichos-papões gostam de lugares escuros e fechados – informou o mestre. – Guarda-roupas, o vão embaixo das camas, os armários sob as pias… Eu já encontrei um alojado dentro de um relógio de parede antigo. Este aí se mudou para cá ontem à tarde […]
‘Então, a primeira pergunta que devemos fazer é, o que é um bicho-papão?’
Hermione levantou a mão.
– É um transformista – respondeu ela. – É capaz de assumir a forma do que achar que podemos nos assuntar mais.”
(ROWLING, 2000, p.112)

Nesse trecho, temos a dimensão da sua “não forma”, de forma bem esperta da autora, usando a falta de consenso para determinar a aparência da criatura, mas exemplificando bem a sua representação de medos individuais. No entanto, o entendimento sobre esse monstro (exceto a releitura de Rowling) tem a mesma finalidade em outras culturas: a de aterrorizar crianças desobedientes e comê-las como ato punitivo.

Cuca, Davi Sales

No Brasil, o bicho-papão se confunde com a Cuca – uma feiticeira com cabeça de jacaré do nosso folclore, e também o “Homem do Saco” – uma figura atribuída como lenda urbana. Ambas são igualmente ameaçadoras para as “crianças malcriadas”.

Não é muito claro isso no vídeo do Rammstein, mas é através da frase principal do refrão  “Wer hat Angst vorm schwarzen Mann?”, que tomamos um sentido mais amplificado.
Não é estritamente algo infantil, mas sim uma perspectiva que permanece (de outras formas) inclusive na maioridade: o medo daquilo que não se conhece.

A segunda referência de Tolkien está ligada ainda à questão da “crença secundária” que mencionamos a pouco,  só que desta vez, ele amplia algo sobre ela, em outra seção de Sobre Estórias de Fadas, quando discorre uma reflexão pontual sobre a atribuição dos contos de fadas como somente de interesse às crianças.

Analisando que essa relação entre estórias de fadas e o público infantil é um acidente da modernidade, ele diz que adultos podem e talvez até devam (não necessariamente com essas palavras) ler esse tipo de estória, sem brincar de “faz-de-conta” ou por mero saudosismo da infância. Considerando-os um tipo de narrativa potente, Tolkien diz também que não é por que contos de fadas contém magia que sejam meras ilusões. Tais narrativas são mais verdadeiras que muitas literaturas ditas realistas, justamente por serem mais difíceis de serem formuladas. Além disso, e enquanto lendas e mitos, são muito mais antigas do que imaginamos, sem uma precisão de data. Nesse sentido, os valores e emoções que sobressaem, acompanham a humanidade desde o princípio.

Homens e mulheres adultos podem ler estórias de fadas como podem se interessar por poesia ou romances. Nada impede que tenham igual apreço por elas, inclusive. Mas se as crianças são dadas mais às fadas, porque elas acreditariam em qualquer coisa – por ingenuidade ou falta de experiência – Tolkien monta uma imagem para explicar a falta de senso sobre esse argumento, que é (sem exageros) brilhante:

“Uma criança pode bem acreditar num relato dizendo que há ogros no condado vizinho; muitas pessoas crescidas acham isso fácil de acreditar sobre outro país; e, quanto a outro planeta, muito poucos adultos parecem capazes de imaginá-lo como habitado — se é que tem habitantes — por qualquer coisa que não monstros de iniquidade.” (TOLKIEN, 2020, p. 49-50)

Ou seja, a ideia inerente daquilo que não conhecemos, de que não temos a dimensão sensível ou de experiência, gera um sentimento de que é mau, é vil, é perigoso, e então até mesmo taxado como desumano.  Assim, não compreendendo simplesmente o outro, e até mesmo o vizinho, por ele ter algo que difere de nós; ele se torna, subitamente, uma ameaça.

O enredo de um filme como Independence Day (1996) ou a história do livro A Guerra dos Mundos (1897) de H. G. Wells, dão dimensão desse sentimento que nós temos em relação aos possíveis habitantes de outro planeta. Mas, e quando pensamos sobre os nossos vizinhos de fronteira, povos de outros territórios, humanos como nós? Trazendo um exemplo (bobo, confesso, mas indevidamente real): podemos lembrar dos tempos de escola que, durante a Guerra fria, os povos da União Soviética eram ditos como “comedores de criancinhas”. Por mais que seja uma falácia sobre o comportamento dos comunistas russos – usado como propaganda (negativa) norte americana – há muita gente que acreditou e ainda acredita que partidários do comunismo são “monstros devoradores de bebês”.

Obviamente essa é uma interpretação atualizada do que Tolkien debate nesse trecho, mas que denota o quão verdadeira sua fala é, a ponto de ter me recordado disso, assim que terminei de rever o videoclipe do Rammstein para buscar o comparativo com a fala da professora Karen Leeder. Talvez essa seja a camada mais densa do vídeo Angst. Tudo se torna conclusivamente real, principalmente com a parte final do vídeo em que os músicos do Rammstein atiram nas próprias TVs, que se tornaram instrumentos (falsos) de ligação com “o exterior”. Eles estão tão paranoicos pelas “informações” de que precisam se proteger, que no ataque, eles destroem a si mesmos e acabam caindo numa espécie de limbo, engolidos pelo “sistema”.

A narrativa soa como se cada membro da banda fossem Estados-nações se protegendo de “inimigos” externos ou simples condenadores egoístas de povos que, por necessidade, incomodam e interferem em sua zona de conforto (como no caso, dos imigrantes e refugiados de guerra, procurando uma vida melhor em um país democrático). O senso de sobrevivência se posta de um lado, e o medo do outro revela sua insensatez: a necessidade de autopreservação é um tiro (com perdão do trocadilho) que sai pela culatra, pois atirando contra as telas de vídeo, eles se autodestroem.
 
Não é difícil entender por que o vídeo mostra cenas dos músicos tocando com capacetes presos em cabos que ligam à uma monitores de TV ou computador, como se fossem bonecos de ventríloquos, e cheerleaders dançam ao ritmo da música, com um tom de distração e fetiche. Elas também são as agentes do oferecimento de produtos que eles – enquanto personagens comuns dos subúrbios – acreditam que precisam possuir. E elas fazem tudo isso com macabros sorrisos no rosto. A mensagem é dada com um líder político lunático, como muitos, que incute a ideia da ameaça. É preciso que eles acreditem para que o sistema continue os controlando. 

O vídeo é de arrepiar, não só pelo som pesado, mas como os músicos jogam imagens que parecem simples ou desconexas, e que na verdade, trazem uma reflexão (dolorida) sobre o que a humanidade tem passado recentemente. Eles estão nos lembrando o quanto somos manipulados a acreditarmos em coisas absurdas, por simples medo de que sejam verdade e atentem à nossa liberdade.

Autoridades se aproveitam do nosso remoto desconhecimento e nosso primevo instinto de temer, para perpetuarem poderes. Isso nada mais é exatamente propício em tempos de conflitos entre nações que ferem os direitos humanos. Trazer isso à tona, torna o vídeo de Angst mais uma fonte de crítica sobre a sociedade pelos músicos do Rammstein, com referências folclóricas. Todas essas questões, desde o poema de Goethe, as relações político-sociais e os pontos de destacados por Tolkien,  são atemporais porque falam sobre a natureza humana.


Referências

Matéria online de Louder Sound: Watch Rammstein’s weird and disturbing video for new single Angst by Merlin Alderslade. Disponível em: https://www.loudersound.com/news/watch-rammsteins-weird-and-disturbing-video-for-new-single-angst.

LOVECRAFT, H.P. O horror sobrenatural em literatura. São Paulo: Iluminuras, 2008.

ROWLING, J. K. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Tradução Lia Wyler. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000.

TOLKIEN, J. R. R. Árvore e Folha. Tradução: Reinaldo José Lopes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.

TREVISOLI, Maisa dos Santos. A representação do medo em The Erlking de Johann Goethe e Erl-king de Angela Carter. In: Anais do CENA. Volume 2, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2016. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdocena/wp-content/uploads/2016/01/Maisa-dos-Santos-Trevisoli.pdf


Emanuelle Gomes é mestre e doutoranda em literatura tolkieniana pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU-MG).

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