O Senhor dos Anéis: A Guerra dos Rohirrim entra na Max e prova que vale a pena ser assistido muitas vezes

Cristina Casagrande

Dizem os estudiosos que os clássicos são aqueles que pede novas leituras (ou “assistidas” no caso de filmes) e, a cada vez, revela coisas novas. Ainda não deu tempo de o anime A Guerra dos Rohirrim se provar um clássico, mas sua obra de partida, O Senhor do Anéis, J.R.R. Tolkien já se consagrou com tal na literatura mundial.

Mas nem sempre as adaptações refletem a grandeza das obras originais — embora possam eventualmente até superá-las, embora seja mais raro —, contudo, o anime dirigido por Kenji Kamiyama não é um exemplo disso. Ao contrário, A Guerra dos Rohirrim se provou uma boa adaptação a ponto de merecer novas assistidas, revelando sempre coisas novas.

Agora que foi para a Max, plataforma de streaming da HBO, eu assisti ao anime pela terceira vez e permaneci captando diferentes mensagens em relações às vezes anteriores. Além disso, pude fazer mais correlações com a obra de Tolkien.

Mas, antes que o desavisado leitor pense que estou enaltecendo em demasia a produção da Warner, já aviso que, embora seja uma leitura válida dos escritos de Tolkien, há falhas na produção, e suas virtudes são majoritariamente modestas. Em outras palavras: salvo as subjetividade de cada um, não espere uma masterpiece do cinema. Não há nada de extraordinário. É uma boa adaptação. Ponto.  

Mas “boa” não é pouca coisa, ainda mais pela especificidade aliada à originalidade da coisa. Explico. A Guerra dos Rohirrim é adaptação de menos de quatro páginas dos Apêndices de O Senhor dos Anéis. Normalmente, o leitor mais dedicado está cansado demais para memorizar detalhes dessa história. Ainda assim, os produtores do anime julgaram que essa — e não tantas outras que aparecem na obra do autor — era digna de ser contatada.

Apesar de ser um conto muito específico sobre a Casa de Eorl, a adaptação mencionou quase tudo o que estava escrito ali, e isso é um dos seus méritos. O enfoque em Héra, filha do rei Helm não nomeada no livro, não contradisse os escritos de Tolkien e trouxe um ponto de vista muito válido, ao tomar aquela que foi o pivô da guerra como foco da narrativa. Além disso, tendo em vista que Éowyn é uma das personagens mais icônicas dos Rohirrim, Héra, sua antepassada, conversa de um modo coerente com ela, assim com Olwyn, a dama de companhia da princesa e remanescente das donzelas-do-escudo.

Aliás, o desenvolvimento dessa possível “casa” do povo de Rohan é um dos ganhos do anime. De forma sutil, a história de Éowyn abre espaço para a possibilidade da existência de tais donzelas, e o pano de fundo que deram para a gênese dessas guerreiras é bastante coerente com a narrativa tolkieniana.

Se Héra tem um eco com Éowyn, Helm tem com Théoden, embora o primeiro seja bem mais irascível e indomável (sem contar sua força física descomunal a ponto de matar seu inimigo com um único soco). Aliás, Helm se destaca em termos de adaptação direta com a obra de partida. Sua caracterização não se distancia da obra original nem destoa com a descrição do povo de Rohan. O mesmo podemos dizer de seu oponente Freca, de linhagem terrapardense.

 Há outras correlações não tão diretas no anime que denotam a familiaridade com a obra de Tolkien dos roteiristas e produtores — dentre os últimos, Philippa Boyens, que participou da  composições dos roteiros das adaptações de Peter Jackson nos cinemas. Lief, por exemplo, o escudeiro de Héra, é um jovem inocente e gorducho, que facilmente remete à figura do hobbits. Vale lembrar a relação de amizade e companheirismo de Éowyn e o hobbit Merry na Guerra do Anel. Assim, sua semelhança com Héra e Lief no anime não é gratuita.

Já os irmãos da princesa, Háma e Haleth, remetem aos irmãos élficos da Primeira Era, Maglor e Maedhros, os filhos de Fëanor, sendo respectivamente um mais sensível e ligado à música, e o outro mais combativo. Ainda, é possível correlacionar a personalidade do primo de Héra, Fréaláf, futuro rei da segunda linhagem dos Rohirrim, ao gondorianos Faramir na Guerra do Anel.

Nessa última assistida, guardadas as (infinitas) proporções, pude traçar uma correspondência com Héra e Lúthien, no momento em que ela se veste de noiva para fixar a atenção de Wulf, o líder dos terrapardense e principal antagonista da narrativa. Foram os encantos de Lúthien que seduziram o luxurioso olhar de Morgoth na demanda pela Silmaril nos Dias Antigos. Héra também usa suas capacidades sedutoras femininas para ludibriar o oponente.

Mas se a animação tem virtudes, também apresenta suas falhas. Até mesmo uma pessoa nada especialista em animes como eu pode perceber que, do ponto de vista visual, o filme oscila entre lindas paisagens com detalhes de encher os olhos e outras com traços chapados, dando a sensação de inacabados. O mesmo vale para os movimentos nas cenas de ação. Às vezes, tais discrepâncias se apresentam num só quadro.

Em relação à trama, se Helm foi um personagem bem construído, Wulf deixa a desejar. Seu ressentimento para com os Rohirrim devido ao assassinato do pai (literalmente) pelas mãos de Helm e à rejeição de Héra ao seu amor não foram bem trabalhados a ponto de parecer um personagem complexo, esférico.  

Freáláf, por sua vez, foi um personagem um pouco ofuscado pela prima, tanto é que a morte de Wulf não se dá pelas mãos dele como no livro. Talvez se esperasse conhecer mais do primeiro rei da segunda linhagem dos Rohirrim.

Contudo, a falha mais gritante do roteiro se dá justamente por uma frase no início da trama, narrada pela voz de Miranda Otto no original, interpretando novamente a personagem Éowyn. Segundo ela, a história de Héra não aparece nas canções antigas cantadas em torno do fogo: “[…] não procure histórias sobre ela nas antigas canções. Não há nenhuma”.

A trama toda leva-nos a entender que a história da filha de Helm não aparece nos apêndices porque não foi registrada, mas sim cantada e passada de geração em geração em forma de música e não de textos escritos e colocados no Livro Vermelho do Marco Ocidental, que contém os registros da Guerra do Anel.

Lief carregou a lira de Háma, irmão de Héra, depois de morto. E com a permanência do instrumento musical, subentende-se a preservação da história. Contudo, a fala de Éowyn não confirma isso. Talvez devesse dizer: “Mas não procure histórias sobre ela nos registros do Livro Vermelho. Não há nenhuma”. Desse modo, parece ter faltado um pente fino nessa parte do roteiro.

Alguns “fanservices” geram divisões de opiniões entre os espectadores, como a presença das águias. A mim não incomoda tanto, principalmente porque, visualmente, é uma das coisas mais bonitas do anime. Além disso, elas sempre remetem ao tema da esperança, traço típico da eucatástrofe tolkieniana. Por outro lado, é compreensível o estranhamento de alguns expectadores, pois elas não costumam estar associadas àquele povo, ou seja, aparecem ali um tanto forçadas.

Apesar das limitações e falhas, o anime preserva o espírito dos Eorlingas segundo a proposta de Tolkien: um povo calcado na coragem, lealdade e honra — algo típico dos povos saxões, nos quais eles são inspirados. Embora pouco estudada, era uma gente sábia, com uma sabedoria adquirida pela prática.  

Mesmo retratando a tão recorrente disputa de poderes entre tronos — típico das histórias de inspiração épica medieval —, o roteiro não deixa de preservar a marca tolkieniana da misericórdia e da esperança. E isso não é pouca coisa para um tempo tão polarizado e competitivo como o nosso.


O Senhor dos Anéis: a Guerra dos Rohirrim (Warner Bros Pictures/Kenji Kamiyama)
★★★★☆


Cristina Casagrande é administradora do Tolkienista


Deixe um comentário