por Beatriz Masson

Há exatamente vinte anos, Harry Potter e a Pedra Filosofal chegava às livrarias brasileiras, três anos depois de sua estreia no mercado literário inglês e norte-americano. Por aqui, quem comprou os direitos da obra foi a Editora Rocco, que contou com Lia Wyler na construção de uma tradução primorosa. Sempre que possível, gosto de exaltar o excelente trabalho de Lia, que incorporou ao vocabulário de nosso português brasileiro palavras como “quadribol”, “trouxas”, “testrálios” e “pomo de ouro”, em uma tradução que já recebeu o reconhecimento de Jo Rowling em pessoa.
Penso que o grande sucesso de Harry Potter não foi apenas por conta de um bom trabalho de tradução. Existem vários outros fatores envolvidos, como a própria construção da narrativa, o grande trabalho de marketing, o lançamento de filmes em consonância com o lançamento de livros, os volumes que mostram a expansão do universo que engloba os sete primeiros livros, como o bestiário Animais Fantásticos e Onde Habitam, o manual Quadribol Através dos Séculos e o livro de histórias Os Contos de Beedle, o Bardo.
O saldo mais interessante disso tudo, a meu ver, é que os leitores e fãs de Harry Potter sempre têm uma história com a série. São histórias que envolvem relatos sobre formação do leitor, sobre identificação com personagens, sobre o desenvolvimento da escrita como atividade profissional, sobre a própria escolha de carreiras, sobre amadurecimento literário. Aqui no Brasil, a história de Harry Potter nunca termina no limite das narrativas dos sete livros. Ela sempre transpõe esse limite e ganha um significado subjetivo, muito caro a cada leitor.

Uma das partes do meu mestrado envolvia fazer uma pesquisa de campo com leitores empíricos de Harry Potter, para mapear suas interpretações sobre o texto literário e para entender a importância da série em sua construção enquanto leitor e enquanto indivíduo. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética (IP/USP) e foi respondida por adultos maiores de idade que assinaram um termo de consentimento, o que me permite divulgar os resultados recolhidos com o grande público. Por isso, gostaria de compartilhar aqui algumas das considerações que esses leitores fizeram sobre sua própria vida e Harry Potter:
“‘Harry Potter’ foi o primeiro livro sem gravuras que eu li. Ele abriu as portas para a literatura juvenil e me fez ir atrás de outros livros que me fizessem sentir a mesma alegria que eu tinha com a obra de J.K. Rowling. Com isso, conheci ‘Desventuras em Série’, ‘O Senhor dos Anéis’, ‘As Crônicas de Nárnia’ […]. ‘Harry Potter’ também foi o primeiro livro que eu reli e com isso passei a entender novas nuances da história a cada revisitação. O universo de Hogwarts era meu porto seguro quando eu estava triste e comemorava comigo quando eu estava feliz.” (Depoimento de B.S.T., 28 anos)
“Foi a primeira vez que virei uma noite lendo e adorei a sensação. Foi também a primeira vez que eu li uma série mais de uma vez e descobri que é possível redescobrir o mesmo universo a cada leitura. ‘Harry Potter’ é a história que eu quero ler para os meus filhos.” (Depoimento de C.A.T., 26 anos)
“‘Harry Potter’ me ensinou os valores de lealdade e amizade e a não temer a morte. Também foram os livros da saga que me conectaram às pessoas no mundo real, por meio de RPG e encontro de fãs.” (Depoimento de D.R.C., 23 anos)
“Ao tratar da amizade do trio protagonista, (a série) me ensinou a perceber que há amigos e colegas, o valor daqueles que ficam do seu lado apesar dos desafios, a lealdade, a manter seus ideais mesmo que o ambiente não contribua. Estudei a vida toda em escola pública de periferia, então o ambiente não era dócil e escolher bons amigos era crucial.” (Depoimento de F.L.F., 30 anos)
“Embora minha mãe tenha falecido quando eu já tinha 30 anos e eu já fosse independente, a dor da perda fez com que eu compreendesse melhor algumas atitudes que o Harry teve. Mesmo sendo adulta, sofri e amadureci junto com ele.” (Depoimento de F.O.G., 43 anos)
“‘Harry Potter’ é o responsável pela existência da minha vida de leitor.” (Depoimento de G.G.S.J., 24 anos)
“Apesar de ter lido os livros já na minha fase adulta, eu acho que a série me ajudou a reforçar alguns valores que eu já tinha sobre ética, sobre escolhas, sobre lealdade, sobre amizade, sobre aceitação, sobre diversidade etc.” (Depoimento de L.M.T., 43 anos)
“‘Harry Potter’ foi o marco de passagem no meu amadurecimento como leitor. Os primeiros livros da saga me consolidaram na leitura de livros em si, pois minha base fixa anterior eram histórias em quadrinhos e mangás.” (Depoimento de P.E.F., 24 anos)
“Ler sete livros que nos mostram uma grande e intrincada história, mostra que a leitura é muito mais que uma atividade corriqueira, ela nos leva para dentro da história/universo e ler se torna uma fonte de sabedoria e engrandecimento.” (Depoimento de R.V., 28 anos)
Como não poderia deixar de ser, também tenho minha história com Harry Potter. Comecei a ler os livros com 12 anos, em 2005. Primeiro assisti aos filmes, e me interessei tanto pela narrativa que procurei os livros, que peguei emprestado da biblioteca de minha antiga escola. Li a série fora de ordem, porque não era sempre que ela estava inteiramente disponível para empréstimo. Vi que Harry Potter era uma série traduzida e, com 12 anos, decidi que faria faculdade de Letras para poder traduzir livros tão legais quanto aqueles. Seis anos depois, entrei na faculdade de Letras e desisti de ser tradutora, mas não desisti de estudar Harry Potter. Depois de algum tempo, consegui acumular experiências incríveis e conhecer pessoas fantásticas graças ao trabalho acadêmico que venho desenvolvendo com a série.
Disso tudo, concluí algumas coisas. A primeira delas é que a leitura de Harry Potter é, quase sempre, uma atividade coletiva, já que o público da série é extenso e parece aumentar com o passar dos anos. A segunda conclusão a que cheguei é a de que todos esses leitores, que acumulam histórias pessoais com a série, conseguem refletir a respeito do texto literário e de suas próprias trajetórias enquanto leitores justamente por terem uma relação de afeto com o texto. Essa relação de afeto é sugerida por Antonio Candido em “Crítica e Memória”, quando salienta a importância dos críticos não se esquecerem dos livros que os formaram como sujeitos:
Por isso, vale a pena fazer a história das nossas leituras, não só a fim de avaliarmos o papel que tiveram em nossa formação e em nossa concepção de mundo, mas também para verificar que obras reconhecidamente maiores nem sempre são as que marcam mais fundo. (2004, p. 33)

Sendo críticos literários ou não, afirmo com muita convicção que os leitores de Harry Potter, ao falarem de suas experiências pessoais junto da história do menino bruxo, falam também sobre a tão debatida “função da literatura”. Falam sobre conexões textuais, sobre criação de personagens, tempo e espaço. Refletem sobre a relação do texto com sua própria vida. Argumentam sobre eixos temáticos e entendem que a arte do texto escrito é, justamente, a de falar sobre a vida.
É por isso que eu digo: feliz aniversário de vinte anos no Brasil, Harry! Sem a sua história, não haveria milhares de outras histórias que contam como a literatura é capaz de transformar. Sem a sua história, muitas pessoas poderiam não ter descoberto o prazer de se ler um livro. De todo coração, e com muita humildade, agradeço. Agradeço e torço para que você continue fazendo diferença na vida de tantas crianças, adolescentes e adultos como tem feito há vinte anos em nosso país.
“Nenhuma história sobrevive a não ser que exista alguém que queira escutá-la. As histórias que mais amamos vivem com a gente para sempre”.
Este texto retoma alguns pontos trabalhados na dissertação de mestrado “Leitores e Leituras de Harry Potter”, apresentada ao Programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo em 2019.
Obra citada
CANDIDO, Antonio. O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.

Beatriz Masson é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, com a dissertação “Leitores e leituras de Harry Potter”.
Comecei a ler Harry Potter ainda em 2000, aos 13, 14 anos. Quando do lançamento do primeiro filme, havia lido os quatro primeiros livros, de modo que – assim como com O Senhor dos Anéis – tive minha própria criação imaginária daquele mundo, o que foi importantíssimo pra mim. Foi ainda, seguida de perto pela obra de Tolkien, o primeiro universo literário no qual de fato me aprofundei, me dediquei, no qual “vivi”, ainda que já lesse bastante a época. Posteriormente acompanhei cada lançamento até concluir os sete livros, na medida em que eram lançados por aqui (livros esses que acabavam depois rodando por 5, 6 pessoas da minha familia, sem muitas vezes voltar pra casa…). Inegavelmente a saga do bruxo de Hogwarts ocupou e ocupa um papel central na minha formação!
Que incrível saber que essas duas obras tão fenomenais ocupam um enorme espaço em sua formação, Viccenzo!
Beatriz, vim agradecer por esse texto e dizer que já fui atrás da sua dissertação para ler. Sou aluna de um curso de extensão de mitologia greco-romana do departamento de Letras da UFC – o curso Paideia – e felizmente temos uma aula toda sobre mitologias nos livros de Harry Potter. É um momento maravilhoso,cheio de relatos como os que vc colheu. Eu lembro de pegar os livros da série tb na biblioteca da minha escola. E lembro que O cálice de fogo foi o primeiro “livrão” (em páginas) que li na minha vida, como tb foi o primeiro livro que me fez ir até de madrugada lendo, lutando contra o sono. Obrigada por esse reconhecimento de um universo tão caro e realmente um divisor de águas na vida de tanta gente.
Eu é quem agradeço pelo comentário afetuoso, Nara! Se puder, compartilhe comigo a bibliografia dessa aula no meu Instagram! O endereço é @bialendoharry 🤗