Papai Noel é real

Cássio Selaimen Dalpiaz

Mês de Dezembro. Tempo de reconciliação. As casas se enfeitam com árvores e luzes. Pessoas atônitas com listas de compras e presentes. Banquetes e comidas especiais. Crianças se recreando com bonecos que acabaram de ganhar. Mais um ano se foi. Nós estamos tratando da época de… Saturno! Pois sim, essas eram as práticas no Império Romano pelos anos do nascimento de Cristo, nas festas da Saturnália a partir de 17 de dezembro. Ademais, celebrava-se o Solstício de inverno, a Brumália e, partir de 286 d.C., a Festa do Sol Indômito (patriotismo sobre o imperador), e as Calendas de Janeiro, o Ano Novo (Bowler, 2002, p. 15-16).

Qualquer semelhança, já sabemos, definitivamente não é mera coincidência: como pensar nos festejos de final de ano sem visualizar casas, shoppings e lojas em decorados em tons de vermelho e verde, além da figura do Papai Noel? Ademais, a partir de dia 17 de dezembro, os católicos iniciam a preparação imediata do Natal com a chamada Novena de Natal dentro do tempo do Advento. As aproximações e semelhanças, assim como a confusão possível, estava entre as motivações de Orígenes, século III, quando se manifestou contrário à celebração do Natal em uma das suas Homilias sobre o Levítico, por evocar o nascimento do Imperador. São Máximo de Turim é quem o dissuade sobre esta opinião: “Se, portanto, irmãos, os deste mundo celebram […] um rei terreno em nome da glória da honra presente, devemos com mais solicitude celebrar o aniversário do nosso rei eterno, Jesus Cristo […]. Ele nos concederá […] a glória eterna” (MÁXIMO In: BOWLER, 2007, p.17).

Comercialmente falando, excelente momento de vendas com um mais excelente ainda garoto propaganda. Estamos tratando, agora sim, desse festejo que lembra um acontecimento do início do milênio passado: o nascimento de Jesus Nazaré, Deus-conosco. Mas carro-chefe do marketing é a figura do bom velhinho. Um estudo etnográfico bastante complexo seria necessário para precisar as origens precisas desse personagem, uma vez que ele foi adotando elementos diversos em locais diversos. O fenômeno migratório em diferentes épocas contribuiu para sua popularização, mas igualmente para sua diversificação. Fato é que ele está presente no imaginário do Ocidente e do Oriente.

Entre contos e dúvidas, quem é o tal Papai Noel?

Partimos da antiga tradição da troca de presentes e outras benesses por ocasião das festas do final do ano por ocasião do aniversário do Imperador, tanto quanto ao equinócio do sol, e outras tradições pagãs. Por ocasião do nascimento de Jesus Cristo, e a influência do Cristianismo no Império Romano, especialmente a partir do Edito de Milão, em 313, com a tolerância de outras práticas religiosas que não a do Império, as festas pagãs foram ressignificadas.

Assim, não temos o dia do Natal, mas a época, com sua preparação, o Advento e sua Novena, o dia de Natal, o Ano Novo, a Epifania com a visita dos reis magos que trazem presentes para o Menino-Deus. Essa prática se estende pela Idade Média, com a troca de presentes como sustentação das relações sociais, sendo por vezes, uma forma de extorsão. Já se dava prendas para os que se encarregavam do lixo naquela época, ou todos aqueles que se encarregavam de serviços mais duros, como forma de retribuição pelos préstimos. Há quem afirme, outrossim, que o dom desses presentes no Natal seria uma forma de compensação, diante dos maus tratos que sofriam na vida ordinária, em especial as crianças. Herdara-se também a prática de mudança de status social. Patrões e servos, Nobres e Plebeus, Crianças e adultos. Assim, por grupos, iam às casas pedir guloseimas, fantasiados de Reis Magos, guardas do Rei Herodes, demônios, loucos… Aos que não correspondiam os pedidos, pragas proferidas recebiam, se não castigos e diabruras (BOWLER, 2007, p. 21-22).

 Odin on Sleipnir/Ólafur Brynjúlfsson

Temos agora um personagem importante na compreensão da gênese desse garoto propaganda. Com a queda do Império Romano, a migração dos nórdicos ao sul acrescentou às crenças outros elementos. Dentre os escandinavos, encontramos a figura de Odin, deus da guerra e dos mortos. A lenda conta que vagava entre os povoados como andarilho pedinte durante o inverno, com sua vara na mão. Aos generosos dava um inverno ameno, aos avarentos e desobedientes, uma punição. Dele se aproxima a figura do Fouetard, o acompanhante do Papai-Noel que se encarregava de punir com a vara aqueles que mereciam. (TARNAUD, 2006, p. 21-22). Uma figura semelhante seria o Krampus ou Prechta, que significa garras, ou ainda Rüpelz (ou Ruprecht) e Hans Trapp, personagens muito próprios das regiões Alpinas. Com aparência demoníaca, está relacionado ao deus grego Pã e ao celta Cernunnos. Vemos ainda em outras partes, Belsnickel ou Nick, o peludo, e Olentzero (que distribuiria presentes na sua jornada para quem se comportasse e carvão, para os que não). O Papa Gregório inclusive permite sua celebração, trocando-lhe o nome e rebatizando-o por “sujo” ou “servo Ruperto” na Alemanha.

Saint Nicholas, Stoyanka Ivanova

Além do mais, na Idade Média um outro personagem se apresenta. A fama de prodígios milagres de São Nicolau (nome que ser traduzido por vitória do povo) é grande. Possivelmente um dos primeiros santos “não mártires”. Também chamado de “Santa Claus”, corruptela de São Nicolau, nos países de língua anglo-saxônica. Tão grande que chega a ser duvidosa. Diz a angiografia que nasceu na Grécia pouco antes do ano 300, de família abastada e piedosa. Teria sido bispo de Mira (hoje cidade na Turquia). Dedicou a herança recebida para fazer o bem às outras pessoas, em especial, às crianças, promovendo o bem-estar delas e também de suas mães pela educação. Homem pede exímia penitência, também reencaminhava os que estavam no erro. Faleceu em 6 de dezembro de 343, dia em que se celebra sua memória na Igreja Católica. Sua representação? Um senhor idoso de longa braba branca, com mitra, báculo e uma capa vermelha. (CONTI, 2006, 653-656). À sua intercessão, muitos milagres foram atribuídos, em especial, às crianças, sendo também padroeiro dos estudantes. Conta-se que ele, em vida, ajudara um vizinho que perdera seus bens e que iria prostituir suas três filhas a fim de sustentar-se. Porém, para cada uma delas, ele jogou um saco de moedas para pagar o dote de casamento, salvando-as, o que o associou à figura do Papai Noel. Ademais, teria ressuscitado três estudantes que, tendo ir comer num açougue, foram ali esquartejados. Mas não só, perdoou o açougueiro assassino e concedeu a sua mulher estéril engravidar. (VARAZZE, 2003, pp. 69-76). O translado de suas relíquias para Bari o torna ainda mais popular. Ao que parece, foi no século XII que freiras francesas institucionalizaram a entrega dos presentes nas casas de crianças pobres no dia do santo, dando a ele o mérito da prodigalidade. Contudo, ele também castigava os incréus e malfeitores: o sapato ou a meia deixada para receber o presente ficava vazio ou com uma vara dentro (BOWLER, 2007, p. 27).

A Reforma Protestante, com sua doutrina contra os santos, além do puritanismo, inutilmente tenta repelir a figura do senhor bondoso, com o antigo argumento de “roubar a cena” do Menino Jesus. Mesmo as comemorações natalinas se tornam proibidas e punidas em diversas regiões onde o protestantismo teve lugar. Contudo, nem sempre teve sucesso, uma vez que dentre o povo todas essas práticas e crenças se perpetuaram, mesmo que em segredo. Expulso o Papai Noel, surgem outras criaturas ainda mais estranhas: uma bruxa que na sua vassoura leva os presentes, uma acha de madeiras que os defeca…

Acerca do estatuto de Pai, vale uma consideração a mais a ser amadurecida. Dentre as tipologias dos Arquétipos encontramos a figura do Pai, com seu papel educador e disciplinador, mas também de provedor. Como o nome já afirma, o Papai Noel reúne igualmente todos esses atributos que podemos dizer estar no profundo inconsciente de cada pessoa (LISTA, 2020).

Já temos muitos elementos do DNA do Sr. Noel: Miscigenação de culturas, a prática da troca de presentes, prendas ou pragas como elemento de recompensa de boas ou más ações, elementos míticos populares, o velho Odin Andarilho, um Santo generoso… Como se tudo estivesse completo, mesmo que se negue, é indubitável que esse amálgama etnológico cruza o Atlântico no barco com os holandeses chegando ao norte do Novo Mundo. Muitas vezes combatido pelos puritanos, São Nicolau é mencionado por um jornal de Nova York no dia de sua celebração, com o acréscimo; “também chamado de Papai Noel” em dezembro de 1773. Seguem-se iguarias, pinturas, panfletos e poemas que a ele se referem. Em dezembro de 1810 sua gênese se completa em um poema de autor anônimo publicado no New York Spectator, fala do Papai Noel, um homem bom, que traz presentes, iguarias, ao qual se pede que não traga a punição por alguma malcriação. Ainda nesse período, as variações são imensas, de forma, tamanho e caráter, morando na Lapônia, na Islândia ou no Polo Norte (BOWLER, 2007, p. 43-63).

“Merry Old Santa Claus”, Thoams Nast

Nasce o Papai Noel como o conhecemos em 6 de janeiro de 1863. Thomas Nast, nos seus 22 anos, mas já experiente ilustrador concebe o desenho “Papai Noel no acampamento”. Cartunista alemão, colaborador do Haprper’s Weekly, ele se consagrou não por sua atuação política pró-União, mas pelo conjunto de desenhos intitulados “Papai Noel e suas obras” no ano de 1869. Deixando para trás tudo o que se referia ao Velho Mundo, o bom velhinho passou a habitar definitivamente o Polo Norte, tem um enorme telescópio para olhar as crianças. Nos anos seguintes, ele ganha estatura de um humano e não de duende, tem ajudantes duendes, ganha um trenó com renas e até uma esposa, que cuidaria do Natal durante seu alistamento na Primeira Guerra. Quando a Coca-Cola, após enfrentar uma crise de popularidade em 1921, toma-o por garoto propaganda a partir de 1931, mas já tendo ele as cores e formas definidas (roupa vermelha, barrigudo, gorro, etc.), logra dar a ele o ar de bom moço (BOWLER, 2007, p. 43-63.114-117).

Ora, assim o bom velhinho adquirira identidade e notoriedade. Para que ele soubesse o que as crianças queriam, essas eram motivadas a escrever cartas. A verossimilhança era garantida nas histórias que os pais contavam. Como resposta às missivas, seja pela chaminé, seja pela fechadura, os presentes eram “entregues”, ao menos assim os pais explicavam às crianças. E por que sustentar toda essa história? A fábula do Papai Noel disciplinava as crianças (BOWLER, 2007, p. 64-74). Mas não só. Através dela, os pais geravam a expectativa. Ele mesmo era um presente, recebido no lar, mesmo que só de passagem para deixar o presente, trazendo encantamento, alegria e bons sentimentos, alimentando outrossim o sentimento de benevolência e da graça imerecida (BOWLER, 2007, p. 77-78).

Papai Noel, J.R.R. Tolkien

O escritor e pai J.R.R. Tolkien não se difere de tantos pais de sua época. Seus filhos recebiam a cada ano resposta às cartas enviadas ao Papai Noel na Véspera de Natal. A primeira escrita em 1920, quando seu filho John tinha 3 anos. As cartas foram se desenvolvendo no conteúdo do mundo do Papai Noel e nas ilustrações, assim como a família do então professor da Universidade local. Para conferir realismo, Tolkien acrescentava selos, amassados, sobrescritos por parte do urso polar, entre outros elementos. Parece-nos tratar-se de um pai zeloso e empenhado em ajudar a família permanecer unida e capaz de sonhar (PEARCE, 2010, p. 37-54).

A Beleza, a Arte e a Verdade estão acessíveis ao coração do homem, que as deseja e, por vezes tateando e errando, as busca. Na história do catolicismo, vemos na arte e na liturgia boa parte da cultura Clássica e Nórdica, realizando essa assimilação destes elementos do paganismo. Assim exprime o Concílio Vaticano II, que se propõe um “aggiornamento” para ser capaz de dar uma resposta à sociedade: no número 17 da Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a natureza da Igreja, ao tratar da ação missionária, propõe o contato a assimilação e transformação do que for necessário, para propiciar o encontro com o Belo, o Bom e o Verdadeiro. Foi assim com a “festa mais pagã de todas as festas” (DANIELOU, 1995, p.30). Tolkien, em suas Cartas do Papai Noel, não fez diferente, conservando, entrementes, “Father Christmas” e não “Santa Claus” (TESTI, 214, p. 167).

Tenho visto um fenômeno “demonizador” da figura do Bom Velhinho, ressuscitando o espírito puritano da reforma. É fato que as origens dessa figura natalina mistura tradições pagãs e cristãs e, nessa época do ano, ela entra muito em cena, promovendo o comércio e colocando o verdadeiro sentido do Natal, o nascimento de Cristo, por vezes, em segundo plano. Entretanto, lembro-me da minha infância, de ver meu avô chegando de barba e vestido de vermelho apoiado numa bengala trazendo presentes, perguntando se tínhamos nos comportado naquele ano, passado de ano, e no final sempre desejando que deixássemos o menino Jesus nascer em nossos corações, brotando a paz e a harmonia na família. Engraçado, sabíamos que era o vovô, mas não conseguíamos, ou ainda, não queríamos ter certeza, e sempre restava aquele “quê” de curiosidade, misturada ao medo daquele senhor que vinha rindo “ho! ho! ho!” desde o taquaral por entre as árvores do pomar. Um pai que cuidava de nós, que fazia as nossas vontades, que inventava luzes por toda parte e o quibe para a noite, não deixando ninguém quieto! Sem dúvida, os bons velhinhos deixam saudades.

Em tempos em que o Positivismo radical exclui todos os elementos imaginários, a fantasia foi colocada como elemento exclusivo do mundo infantil. Mas precisamos ter em conta que nas diferentes culturas e tradições sempre existiu o elemento fantástico como elemento pedagógico, como meio para transmitir um ensinamento, para a simples fruição, mas sobretudo como elemento agregador. Ora, o fictício não invalida a realidade que simboliza, pelo contrário, pode ajudar, e muito, as pessoas a trabalharem com elementos que no seu cotidiano, por ser tão “comum”, não conseguem sequer ver.

Chegamos ao Natal de 2020, acreditem. Estamos vivos e isso é bastante neste ano. O que fizemos, ou ainda, o que podemos fazer com este tempo que nos é dado viver? Já afirmara Gandalf não podermos escolher o tempo. Mas podemos, sim, bem fazer o aquele que nos é dado. Nasce uma esperança que vem do alto, e não falo do Pfizer. Carpe Diem, não para fazer qualquer coisa, mas somente aquelas que nos engradecem por fazer o bem gratuito àqueles que conosco convivem.

BIBLIOGRAFIA

BOWLER, Gerry. Papai Noel: Uma biografia. São Paulo: Planeta, 2007. DANIELOU, Jean. Miti Paganni e Mistero Cristiani. Roma: Arkeios, 1995.

CONTI, Servílio. O Santo do Dia. Petrópolis: Vozes, 2006. DE VARAZZE, Jacopo. Legenda Aurea: Vidas de Santos. São Paulo: Companhia Letras, 2006.

KRAMPUS (PERCHTA). Mitos+Grafos: Lendas, Mitos, crenças … histórias de personagens fantásticos pelo mundo, 2013. https://mitographos.blogspot.com/2013/12/krampus-perchta.html/. Acesso em: 9 de dez. de 2020.

LISTA dos Tipos de Arquétipos para Jung. Psicanálise Clínica, 2020. Disponível em: https://www.psicanaliseclinica.com/lista-de-arquetipos-2/. Acesso em: 9 de dez. de 2020.

MÁXIMO de Turim, São. Sermão 60. In: BOWLER, Gerry. Papai Noel: Uma biografia. São Paulo: Planeta, 2007. ORÍGENES. Homélies sur le Lévitique: Tomo I ( Homélies I-VII). Sources Chrétiennes, 286. Paris: Éditions du Cerf, 2008.

PAPAI NOEL. Mitos+Grafos: Lendas, Mitos, crenças … histórias de personagens fantásticos pelo mundo, 2010. Disponível em: https://mitographos.blogspot.com/2010/12/papai-noel.html/. Acesso em: 9 de dez. de 2020.

PEARCE, Joseph. De Padre Francis a Babbo Natale: il padre dietro del mito. In: _. Tolkien: L’Uomo e il Mito. Milano: Marietti, 2010. p.37-54.

SÃO NICOLAU. Mitos+Grafos: Lendas, Mitos, crenças… histórias de personagens fantásticos pelo mundo, 2012. https://mitographos.blogspot.com/2012/12/sao-nicolau.html/. Acesso em: 9 de dez. de 2020.

TARNAUD, Jocelyne. Si Noël m’était conté. Paris: Cariscript, 2006. TESTI, Claudio Antonio. Santi Pagani nella Terra di Mezzo di Tolkien.Bologna: Studio Dominicano, 2014.

TOLKIEN, Jonh Ronald Reuel R. As Cartas do Papai Noel. Rio de Janeiro: Harper Kids, 2020.

Imagem destacada: meadowpaint


Prof. Pe. Cássio Selaimen Dalpiaz, Vigário Paroquial da Paróquia Nossa Senhora da Esperança, Asa Norte, Brasília. Professor de Línguas e Literatura no Centro de Estudos Filosófico-Teológicos Redemptoris Mater de Brasília e do Seminário Arquidiocesano Propedêutico São José.


One thought on “Papai Noel é real

  1. Gostei do texto que tem um olhar misericordioso sobre as necessidades e sonhos humanos que só serão completamente compreendidos e atendidos pela Fé, pela Esperança e pela Caridade. Obrigado e parabéns ao autor!

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