Titívilo e os ‘erros’ de tradução

Por Eduardo Boheme

Em seu clássico manual de caligrafia, Marc Drogin (1989: 17–8) tornou mais conhecida a figura de um pequeno demônio chamado Titivillus, aqui chamado de Titívilo, cuja ingrata tarefa era prestar atenção nos monges durante os ofícios, coletar as palavras mal pronunciadas ou erradas e metê-las num saco, para que fossem usadas contra os monges no Juízo Final. No século XV, segundo Drogin, às atribuições de Titívilo somou-se a coleta de erros cometidos por monges copistas. Para que não levasse uma bela sova de seu inominável mestre, tinha de atingir a meta diária de mil sacos repletos de erros.1

Querendo expandir seu negócio (afinal, mosteiros já não são tão abundantes) e ganhar visibilidade, Titívilo resolveu abrir uma sucursal no Brasil — justo no Brasil! — e incluir em seu catálogo de serviços a coleta dos “erros de tradução na obra de Tolkien”. Para auxiliá-lo, reuniu um formidável esquadrão de diabretes que partilhasse de seu objetivo: encher o saco (com erros) e garantir punição exemplar para os tradutores.

Titívilo e um monge. Heures à l’usage de Rome.
Tours, Bibliothèque Municipale, MS 2104, f.149.

Até onde a vista alcança, porém, o contingente de diabretes se mostra mais numeroso do que a quantidade de erros de fato encontrados. Resta, então, perguntar: que tipo de “erro” de tradução Titívilo coloca em sua saca tolkieniana? Acesso exclusivo ao material apreendido nos permite dividir o conteúdo das sacas em três categorias: “erros estéreis”, “erros férteis” e “falsos erros”.

O “erro estéril” é o erro simples, comum, identificado e corrigido sem necessidade de escândalo, comoção e lágrimas. Ele não dá grande impulso aos estudos tolkienianos, pois não frutifica. Depois de localizado, é sanado e talvez vire estatística. Titívilo costuma despachá-lo com grande e dispensável alarde.

Já o “erro fértil” é o erro interessante, que origina estudos, artigos, dissertações… É erro legítimo, mas raro e valioso à pesquisa em Tolkien, e por isso precisamos protegê-lo de Titívilo.

Por fim, o “falso erro” é aquele que pode enganar olhos desatentos, mas que, em última instância, não é um erro. Titívilo usará muitos argumentos tentando provar que a palavra traduzida está errada, e ele talvez convença alguns, mas, no fim, a palavra não será expedida em seu malote infernal, nem usada contra o tradutor no Dia do Juízo.

Segundo Estella (2006: 23), representação de Titívilo na Igreja de Linde, Suécia. Foto de Bernt Enderborg.

Não há muito a se falar do “erro estéril” senão apontar um deles. No capítulo V de A Sociedade do Anel (2000: 103), lemos ‘janelas redondas, verdes e amarelas’, enquanto o original traz ‘round windows, yellow and red’ (grifos nossos). Depois de identificado e corrigido, Titívilo pode despachar o erro sem delongas.

Já sobre o “erro fértil” e o “falso erro” há mais para se falar. Como exemplo, pego uma única palavra do poema The Man in the Moon came down too soon, encontrado em The Adventures of Tom Bombadil. No Brasil, o poema ganhou duas traduções, uma assinada por William Lagos e outra por Ronald Kyrmse. Vejamos a seguinte estrofe do poema, que conta como o Homem da Lua acidentalmente caiu na Baía de Belfalas:

He twinkled his feet, as he thought of the meat,
of pepper, and punch galore;
And he tripped unaware on his slanting stair,
and like a meteor,
A star in flight, ere Yule one night
flickering down he fell
From his laddery path to a foaming bath
in the windy Bay of Bel.

(Tolkien, 2014: 72, grifo nosso)

A complexidade formal desse poema seria um estudo em si, mas chamo a atenção para a palavra Yule, no quinto verso. Ela existe tanto no Mundo Primário quanto no Secundário, mas com significados distintos. No Mundo Primário, o Oxford English Dictionary atesta Yule como “o Natal e as festividades ligadas a ele”. Já no Mundo Secundário, eis o que Tolkien diz no guia de nomes que escreveu para auxiliar — e não agrilhoar — os tradutores:

[… Yule] deve ser tratada como uma palavra alienígena, embora com grafia adequada à [língua da tradução] […]. Yule é encontrada em inglês moderno […] mas isso é acidental, e não deve ser subentendido que palavra similar ou relacionada também fosse encontrada na Língua Comum […]. A Sociedade, contudo, partiu em 25 de dezembro, o que não tinha nenhum significado na época, já que o Yule, ou seu equivalente, era então o último dia de um ano e o primeiro do ano seguinte.

(Tolkien, 2008b: 781)

Ora, olhando as soluções de ambos os tradutores, vemos que as duas traduções brasileiras estão fincadas em Mundos diversos. William Lagos traduziu o verso assim (Tolkien, 2008a: 36):

Como uma estrela em fuga, uma noite, antes do Natal,

‘O Homem da Lua’, por J.R.R. Tolkien.

Em nosso Mundo estaria tudo muito bem, pois Yule de fato pode significar “Natal”. Mas como haveria Natal na Terra-média se o Aniversariante nem existia ali? A tradução, portanto, introduz um anacronismo, e nos brinda com um exemplo de “erro fértil”.

O que o estudioso de tradução deve fazer? Castigar o tradutor? Acionar Titívilo? Alegrar-se por ter encontrado material de trabalho? A terceira opção parece a mais sensata, e é o que Allan Turner faz ao escrever um instigante artigo justamente sobre anacronismos em traduções da obra de Tolkien. Ele conclui:

A intenção, com todos os meus exemplos, não é sugerir que os tradutores foram de algum modo incompetentes, mas sim mostrar quão ubíqua é a influência da tradição cristã e de conceitos científicos pós-Iluminismo em nosso vocabulário.

(Turner, 2006: 176)

O foco, já se vê, não é o tradutor, mas o texto e o idioma: Turner não escreve para expor colegas ou para causar sensação, mas para entender melhor este complexo artefato a que chamamos de “tradução” e o idioma em que existe.

Em relação ao “falso erro”, a mesma palavra nos serve de exemplo. Em sua versão do poema, Ronald Kyrmse traduziu o tal verso da seguinte maneira (Tolkien, 2008a: 99):

Antes do Ano-Novo, à vista do povo,

“Absurdo!”, exclamou Titívilo assim que soube da notícia, brandindo com certa violência sua edição do ‘Nomenclature in The Lord of the Rings’. Afinal, em sua cabeça a ordem é muito clara: o tradutor deve acomodar a palavra à grafia portuguesa, como fora feito n’O Senhor dos Anéis, em que Yule tornou-se Iule. Qualquer coisa além disso seria um “erro”. Esse é o ponto de Titívilo ao escrever um relatório — chato para diabo e ele mesmo abarrotado de erros — tentando despachar Ano-Novo em sua saca.

La Virgen de la Misericordia con los Reyes Católicos y su família (detalhe), atribuído a Diego de La Cruz. Luaces (1994: 109) supõe que a figura com os livros seja Titívilo.

Mas as evidências não sustentam seu requerimento: Ano-Novo é uma palavra semanticamente adequada (seria ela um kenning hobbitesco?!), pois o Iule de fato marcava a virada do ano hobbit, e não há nada nela que seja anacrônico ou exótico — não estamos falando de Réveillon, por exemplo. Ademais, ela é necessária para a rima e ajuda a manter o verso mais longo, uma característica das linhas ímpares no poema.

Conforme demonstrou em seus escritos sobre tradução — dos quais o mais eletrizante ainda nem foi publicado na íntegra —, Tolkien sabia que a poesia exige do tradutor ampla envergadura lexical para satisfazer um sem-número de exigências de forma e conteúdo. É razoável crer que ele aceitaria Ano-Novo como alternativa para Iule, assim como aceitou variações na palavra Hobbit, que indiscutivelmente tem maior peso em sua obra e foi alvo de brigas homéricas.

Mas Titívilo só conhece o guia de nomes — e não muito bem, é verdade —, e seu raciocínio inflexível não consegue (ou não quer) compreender explicações que o contrariem: para olhos tortos, já dizia um sábio Istar, a verdade pode ter um rosto desvirtuado. Mas, para a fiscalização, o tal “erro” apontado por Titívilo não passa de um “falso erro”. A palavra, portanto, não poderá ser despachada ou computada.

Os erros legítimos de tradução, estéreis ou férteis, existirão nos livros enquanto os livros existirem, e é certo que esbarraremos neles às vezes. Quando isso acontecer, que seja esta a nossa pergunta: “o que fazer com este erro?”. A maioria não vê necessidade de fazer coisa alguma. Outros preferem comunicá-los aos responsáveis discretamente, para que Titívilo não ouça. O estudioso faz pouco caso dos “erros estéreis” (o que há para falar deles senão que existem?), mas se debruça curioso sobre os raros “erros férteis”, não para reunir provas que levem o tradutor ao apedrejamento público, mas para compreender melhor língua e tradução. Por fim, Titívilo junta tudo para acusar pecador por pecador no Juízo Final. Como prioriza quantidade e não qualidade, há pouco critério, erudição ou elegância na maneira como recolhe e separa o material.

Existe em todos nós um pequeno Titívilo com prazeres igualmente mesquinhos: o meu, por exemplo, se diverte colando post-its em erros de digitação. Mas é nosso dever parar de dar comida e água ao demoniozinho interior quando ele se torna combatente em uma causa malograda, com objetivos pouco nobres e métodos questionáveis.


Notas

1. Uma famosa aparição de Titívilo é a seguinte, diante de um abade cisterciense (Blunt, 1873: 54):

[…] he sawe a fende that had a longe and a greate poke hangynge about hys necke, and wente aboute the quyer from one to an other, and wayted bysely after all letters, and syllables, and wordes, and faylynges, that eny made; and them he gathered dylygently and putte them in hys poke. And when he came before the Abbot, waytynge yf oughte had escaped hym, that he myghte haue gotten and put in hys bagge; the Abbot was astoned and aferde of the foulenes and mysshape of hym, and sayde vnto hym. What art thow; And he answered and sayd. I am a poure dyuel, and my name ys Tytyuyllus, & I do myne offyce that is commytted vnto me. And what is thyne offyce sayd the Abbot, he answeryd I muste eche day he sayde brynge my master a thousande pokes full of faylynges, & of neglygences in syllables and wordes, that ar done in youre order in redynge and in syngynge. & else I must be sore beten. […]

[…] ele viu um demônio que tinha, pendurada em seu pescoço, uma saca longa e grande, e andava pelo coro indo de um a outro, e espreitava atento todas as letras, e sílabas, e palavras, e erros que alguém cometesse. Esses ele juntava diligentemente e os metia em sua saca. E, quando se aproximou do Abade, observando se lhe havia escapado algum que pudesse ter pegado e colocado em sua bolsa, o Abade ficou estupefato e com medo de sua feiura e deformidade, e disse-lhe: “O que és tu?” E ele respondeu, dizendo: “Eu sou um pobre diabo, e meu nome é Titívilo, e eu faço o trabalho que me foi designado”. “E qual é o seu ofício?”, disse o Abade, e ele respondeu: “Todo dia eu devo levar ao meu mestre mil sacas cheias de falhas e negligências em sílabas e palavras cometidas pela sua ordem ao ler e ao cantar, do contrário, eu hei de levar uma surra dolorida.” […]

No estudo mais amplo sobre Titívilo, Margaret Jennings (1977: 37) diz que essa descrição consegue fazer com que nos apiedemos do demoniozinho, e ela muito impressionantemente afirma ser ele um verdadeiro precursor de Screwtape. Leitores de C.S. Lewis gostarão dessa referência.


Obras citadas

Blunt, John Henry (ed.). 1873. The Myroure of oure Ladye (London: Trübner & Co.).

Drogin, Marc. 1989. Medieval Calligraphy: its History and Technique (New York: Dover).

Estella, Esperanza Aragonés. 2006. ‘Visiones de tres diablos medievales’, De Arte, 5, 15-27.

Jennings, Margaret. 1977. ‘Tutivillus — The Literary Career of the Recording Demon’, Studies in Philology, 74.5, 1-96.

Luaces, Joaquín Yarza. 1994. ‘El diablo en los manuscritos monásticos medievales’, Codex Aqvilarensis, 11, 103-29.

Tolkien, J.R.R. 2000. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, trad. L.M.R. Esteves e A. Pisetta (São Paulo: Martins Fontes).

______2008a. As Aventuras de Tom Bombadil, trad. William Lagos e Ronald Kyrmse (São Paulo: Martins Fontes).

______2008b. ‘Nomenclature in The Lord of the Rings’, in Wayne G. Hammond e Christina Scull, The Lord of the Rings: a Reader’s Companion (London: HarperCollins).

______2014. The Adventures of Tom Bombadil and other verses from The Red Book, ed. Christina Scull e Wayne G. Hammond (London: HarperCollins). Turner, Allan. 2006. ‘Translation and Criticism: The Stylistic Mirror’, Yearbook of English Studies, 36.1, 168-76.


Eduardo Boheme é mestre em Tradução Literária na Universidade de Dublin e ultimamente tem se sentido fino e esticado, como manteiga espalhada num pedaço muito grande de pão.


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