Principados no universo de Tolkien na perspectiva de Maquiavel

Patrick Queiros

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Nicolau Maquiavel (1469–1527) foi historiador, poeta e diplomata italiano. Um de seus tratados mais fundamentais foi O Príncipe, escrito em 1513. Nele, Maquiavel expõe uma série de conselhos ao príncipe, instruindo-o quanto a suas ações e manutenção do poder. Os conselhos de Maquiavel permanecem atuais e orientam estudantes e políticos.

O que são principados?

Um principado é um Estado ou território governado por um príncipe. Logo, para entendermos o conceito precisamos compreender o significado de ‘Estado’ para Maquiavel. O autor dá a seguinte explicação: Estado é o que os gregos haviam chamado de pólis. Todo Estado é, fundamentalmente, constituído por uma correlação de forças, fundada na dicotomia que se estabelece entre o desejo de domínio e opressão por parte dos grandes ou poderosos, e do desejo de liberdade, por parte do povo. Essa dicotomia, em síntese, compõe as relações sociais.

Para Maquiavel, a política é marcada não pelo ideal de unidade entre os homens, mas pela constante luta pelo poder. Dessa forma,

[…] a história é mestra de nossos atos e máximas dos príncipes; e o mundo sempre foi, de certa forma, habitado por homens que sempre têm paixões iguais; e sempre houve quem serve e quem ordena, e quem serve de má vontade e quem serve de boa vontade, e quem se rebela e se rende.
(Maquiavel 2000: 165)

É por este motivo que os homens mentem, matam e se julgam acima dos princípios morais. A obra O Príncipe é, nesse sentido, uma reflexão sobre o poder político que permeia o Estado.

Há Principados no universo de Tolkien?

Segundo Maquiavel (2007: 17),

Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre Repúblicas ou Principados. Os principados ou são hereditários quando por muitos anos os governantes pertencem à mesma linhagem, ou foram fundados recentemente.

Seguindo esses conceitos, podemos dizer que, na obra de Tolkien, os principados hereditários aparecem em ramificações familiares dos elfos, com três das quais trabalharemos aqui: Finwë, Rei dos Noldor em Tirion; Olwë, Rei dos Teleri em Alqualondë; e Elwë, Rei dos Sindar em Doriath.

Olwë, teve uma filha, a princesa Eärwen, e Elwë casou-se com a maia Melian. Dessa última união, nasceu a princesa élfica Lúthien. Por sua vez, o rei Finwë teve três filhos, Fëanor, do seu primeiro casamento com Míriel, e Fingolfin e Finarfin, do segundo casamento com Indis. O primogênito, Fëanor, teve sete filhos, conforme relata O Silmarillion (Tolkien 2011: 63):

[…] Maedhros, o alto; Maglor, o cantor maravilhoso, cuja voz podia ser ouvida ao longe, fosse na terra, fosse no mar; Celegorm, o louro, e Caranthir, o moreno; Curufin, o habilidoso, que herdou grande parte do talento do pai para os trabalhos manuais; e os mais novos, Amrod e Amras, que eram gêmeos, semelhantes de rosto e de temperamento.

Os filhos de Fingolfin eram Fingon e Turgon, e sua filha era Aredhel, a Branca. Finarfin casou-se com Eärwen, filha do rei Olwë, e juntos tiveram cinco filhos, de acordo com O Silmarillion: Finrod, Orodreth, Angrod, Aegnor e Galadriel, a mais bela de todos da casa Finwë.

A criação dos Estados, que Tolkien chama de Reinos, se deu após a saída dos elfos da estirpe dos Noldor de Aman para a Terra-média. A divisão em “principados” é descrita no capítulo XIV de O Silmarillion, e pode ser resumida da seguinte maneira: Fingolfin e seu filho Fingon ficaram com o território de Hithlum, sendo que ‘a maior parte do povo de Fingolfin, veio habitar em Mithrim, perto das margens do grande lago. A Fingon foi destinado Dor-lómin’ (Tolkien 2011: 144). Turgon, filho de Fingolfin, ficou com o território de Nevrast por muitos anos, ao passo que Angrod e Aegnor ‘eram vassalos de seu irmão Finrond, Senhor de Nargothrond’ (Tolkien 2011: 145). Já os filhos de Fëanor viviam nas fronteiras setentrionais de Beleriand. Ao Sul, ficava Doriath, morada de Elwë, também conhecido como Thingol, o Rei Oculto.

Tipos de Governo do Principado

Segundo Maquiavel (2007: 31), no curso da História, os reinos têm sido governados de duas formas:

por um príncipe e seus assistentes, que, na qualidade de ministros o ajudam a administrar o país, agindo por sua graça e licença; ou por um príncipe e vários barões, cuja posição não se explica por uma mercê do soberano, mas pela antiguidade da própria linhagem. Esses barões têm súditos e territórios próprios, onde são reconhecidos como senhores.

Pode-se perceber, no livro Os Filhos de Húrin, uma semelhança com o primeiro tipo de governo citado, quando ‘graças a suas destrezas e habilidades no combate Túrin caiu nas graças de Orodreth e foi admitido em seu Conselho’ (Tolkien 2009: 173). Orodreth, com se disse, era príncipe, filho de Finarfin. Túrin, filho de Húrin, Senhor de Dor-lómin, frequentemente discordava do modo de combate dos elfos de Nargothond por meio de emboscadas. Desse modo, Túrin é escolhido como assistente do príncipe, pela tipologia de Maquiavel.

O segundo modelo pode ser visto no livro A Queda de Gondolin. O Governo de Gondolin tinha Turgon como Rei, que tinha um Conselho de onze casas. Tuor, o enviado de Ulmo, passou a viver com o povo de Gondolin, e por esses foi amado e reconhecido. Com o tempo, apaixonou-se pela filha do rei e, com sua permissão, casaram-se. Tuor passou a ser então membro da família real e líder da 12ª casa, o Povo da Asa. Durante a invasão do exército de Melko,

[…] o Rei Turgon convocou um conselho e para lá foram Tuor e Maeglin, como príncipes reais, e Duilin veio com Egalmoth e Penlod, o alto, e Rog chegou com Galdor da Árvore e o dourado Glorfindel e Ecthelion, o de voz musical. Para lá também foi Salgant, tremendo com as novas, e outros nobres além dele, de sangue mais humilde, mas de coração melhor.
(Tolkien 2018: 76)

Arte: Rodrigo Catini Flaibam

Esses são os representantes no Conselho que, se formos seguir a teoria de Maquiavel, corresponderiam aos barões com súditos e territórios próprios, onde são reconhecidos como senhores. Esses súditos aparecem no livro A Queda de Gondolin como “povos”, a saber:

  • Povo da Andorinha, liderado por Duilin;
  • Povo do Arco Celestial, liderado por Egalmoth;
  • Povo do Pilar e o Povo da Torre de Neve, liderados por Penlod;
  • Povo da Flor Dourada, liderado por Glorfindel;
  • Povo da Fonte, liderado por Ecthelion;
  • Povo do Martelo da Ira, liderado por Rog;
  • Povo da Toupeira, liderado por Maeglin;
  • Povo da Harpa, liderado por Salgant;
  • Povo da Árvore, liderado por Galdor.

Governo Civil no Principado

O Governo Civil surge quando um cidadão se torna soberano não por meio de crime ou de violência. Segundo Maquiavel (2007: 58) ‘chega-se a ele com o apoio da opinião popular ou da aristocrática’. Esse tipo de governo se apresenta na obra de Tolkien, por exemplo, pela figura do meio-elfo Eärendil e da princesa de Gondolin, Idril. Ao se casarem, Eärendil tornou-se um príncipe herdeiro, que não chegou a assumir o trono, porque o Estado de Gondolin caiu durante a invasão do exército de Morgoth.  Eärendil fugiu então para as fozes do Sirion, e tornou-se senhor daqueles que ali habitavam (Tolkien 2011: 313). As fozes do Sirion eram habitadas pelos exilados de Gondolin e os remanescentes de Doriath e, por mais que Eärendil fosse príncipe de Gondolin, ele não era representante monárquico de Doriath, deduzindo-se, desta forma, que ele fora escolhido por apoio popular, como num governo civil. Cabe ressaltar que governo civil não é sinônimo de república, pois mesmo que eleito pelo povo, o governante assume o papel de príncipe de um sistema monárquico, e seus filhos se tornam herdeiros legítimos do trono.

Outras organizações no legendário de Tolkien não necessariamente se aproximam tanto da proposta de Maquiavel. Chamamos a atenção para os povos Drúedain, que tinham um estilo de vida bem tribal de caçadores-coletores, e o mais famoso caso, os hobbits no Condado, que tinha uma governança bastante descentralizada e independente de um líder monárquico, embora fosse um enclave do reino de Gondor, recebendo a segurança dos Dúnedain.

Desse modo, não podemos dizer que Tolkien traz apenas um modelo político em seu legendário, mas uma miríade de sistemas que se assemelham a muitos do nosso Mundo Primário, cada qual com seus diversos problemas e qualidades.

Obras citadas
Maquiavel, Nicolau. Escritos Políticos. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
______. O Príncipe. Tradução: Leda Beck. São Paulo: Martin Claret, 2007.
Tolkien, J.R.R. Os Filhos de Húrin. Tradução: Ronald Kyrmse. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
______. A Queda de Gondolin. Tradução: Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2018.
______. O Silmarillion. Tradução: Waldéa Barcellos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.


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Patrick Queiros é Thain da Toca-BA.


4 thoughts on “Principados no universo de Tolkien na perspectiva de Maquiavel

  1. Muito interessante, explicando Maquiável a partir de Tolkien, uma forma muito intrigante de leitura, pois ainda não tive a oportunidade de ler O Príncipe, farei o quanto antes depois dessa leitura!

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