J.K. Rowling: questões de autoria, subcriação e interpretação

Beatriz Masson

Recentemente, o nome de J.K. Rowling esteve no centro de uma imensa polêmica político-social: em sua conta no Twitter, a autora de Harry Potter tem apresentado de forma bastante temerária suas opiniões frente à comunidade trans, levantando um debate acerca de questões de grande importância, como a necessidade de respeito a identidade, gênero e orientação sexual. No entanto, neste texto, não vou tratar propriamente dessas questões. Aqui, gostaria de tentar propor formas de equacionarmos um dos problemas que surgiram em torno dos tweets de Rowling: a relação da autora com sua obra e o quanto suas opiniões e visões de mundo de agora se relacionam com um texto que foi escrito há vinte e três anos.

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J.K. Rowling. Fotografia: Debra H. Brown.

Os estudos da relação do autor com sua obra são, sozinhos, uma área de muito debate dentro do escopo da teoria literária. Não há uma regra estabelecida para essa relação e existem várias abordagens teóricas que já se debruçaram sobre o assunto. Vou apresentar algumas delas aqui, para, então, tentar argumentar sobre o caso de Rowling. Talvez o texto mais conhecido sobre o tema “autor e obra” seja o de Roland Barthes, intitulado de “Morte do Autor”. Nesse texto, Barthes valoriza a instância linguística do texto como sendo um produto do “agora da enunciação” em detrimento da figura de um sujeito criador que, para ele, é morto quando essas palavras ganham corpo dentro de um livro. Em sua visão, a pessoa-autor não existe, assim como suas intenções para com o texto. Nesse sentido, o leitor seria o grande responsável por conferir a interpretação a essas ideias, a atribuir significados e sentidos ao trabalho literário:

O leitor é o espaço exato em que se inscrevem todas as citações de que uma escrita é feita — a unidade do texto não está em sua origem, mas em seu destino.

(BARTHES, 1977, p. 5)

Michel Foucault também pensou a respeito do assunto no seminário “O que é um autor?”, que foi convertido em texto. De certa forma, ele também se apoia na ideia do desaparecimento da figura do autor, baseando-se em uma frase de Beckett: “que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”. Segundo Foucault, essa frase incorpora uma indiferença, que seria o princípio ético que dominava a escrita e a crítica de sua época, uma vez que sua tendência — a da crítica literária — era a de viabilizar o apagamento do autor. Contudo, diferentemente de Barthes, que é mais categórico em seus argumentos sobre a morte do autor, Foucault analisa e reflete como a existência de algumas noções, como a da obra e a do nome de quem escreve dificultam o desaparecimento da figura do autor. Ainda assim, sua visão acaba se encaminhando para descentralizar a pessoa — que tem biografia, individualidade e vida próprias — do texto que compõe sua obra, favorecendo, então, a multiplicidade de discursos, conforme resumido por Bianca Kelly Souza no artigo “Que importa quem fala — o desaparecimento do autor segundo Michel Foucault”:

Enfim, podemos destacar que o objetivo maior de Foucault continua sendo descentrar o homem, o autor, o sujeito, o locutor, e, ao mergulhá-lo nas regularidades discursivas, anunciar uma nova era, aquela no decorrer da qual se poderá escrever, evitando ter um rosto, a era do pleno exercício da atividade da escrita.

(SOUZA, 2011, p. 10)

Para pensarmos no caso de Rowling, prefiro me apoiar um pouquinho mais nos pressupostos discursivos estabelecidos por Foucault do que na morte definitiva do autor, conforme pressuposto por Barthes — embora, eventualmente, eu vá me apoiar também em um ponto levantado em seu texto.

Sabemos que a autora de Harry Potter nunca quis distanciar sua biografia pessoal da série do menino-bruxo. Prova disso é que sua própria história de vida ganhou contornos literários, quase tão conhecidos e tão famosos (e, em alguns pontos, quase tão fictícios) como a própria história de Harry: de mãe-solo que morava em um apartamento simples, sem aquecimento, que escrevia A Pedra Filosofal dentro de um café para que a filha permanecesse aquecida, Rowling se tornou tão rica quanto a rainha Elizabeth por conta do enorme sucesso de sua série. Além disso, a própria concepção do personagem Harry aconteceu durante uma viagem entre Manchester e Londres, onde um menino magrinho, de cabelos escuros e óculos redondos apareceu em sonho.

Essas histórias mostram o quanto há influência da individualidade de Rowling em Harry Potter, e vice-versa. Em inúmeras entrevistas — ainda durante a publicação da obra —, a autora nunca escondeu sua intenção pessoal por detrás da criação de determinados personagens e criaturas, como é o caso dos dementadores serem uma alegoria para a depressão (doença que a autora enfrentou durante muitos anos) e da licantropia ser uma alegoria para a Aids, por exemplo. Ao não se distanciar de sua criação enquanto pessoa-física, Rowling não permitiu que seus leitores também desvinculassem sua imagem pessoal a tudo que compõe o universo de Harry Potter. Dessa forma, ela conseguiu atribuir para si mesma um certo controle interpretativo de sua própria obra.

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Bom, Harry Potter acabou, mas sua autora não deixou que a obra “morresse”. Em uma iniciativa muito interessante, Rowling criou o site Pottermore — hoje, Wizarding World — para publicar histórias sobre os bastidores do Mundo Mágico que não estavam escritas no texto que compõe os sete livros. Houve, então, uma tentativa de se ampliar a mitopeia de Harry Potter, atitude que considero muito válida justamente porque a série é ambientada em um mundo composto por uma história e regras próprias, dando espaço para que novas histórias fossem contadas. Mas lembra que eu falei que a autora-pessoa-física não se desvinculava de Harry Potter? Então… isso tudo acabou ganhando proporções bem maiores no final da primeira década e durante a segunda década do século XXI, quando Rowling começou a fazer declarações em entrevistas e tweets sobre seus personagens em um momento em que Harry Potter já estava todo publicado.

Sua declaração mais emblemática foi dada em uma entrevista, em 2009, na qual ela revelou que o personagem Alvo Dumbledore era homossexual, sem que houvesse algum tipo de evidência no texto de Harry Potter que justificasse tal revelação. Por um lado, sua declaração foi vista como algo positivo por grande parte dos leitores e fãs, uma vez que várias pessoas da comunidade LGBTQ+ se viram representadas dentro da série. Por outro lado, houvera controvérsias sobre o porquê de a autora ter feito essa declaração no pós-obra. Nesse sentido, outras declarações acerca de outros personagens, de outros eventos e de partes da história de Harry Potter também foram feitas ao longo do tempo, a maior parte vinculada à conta de Rowling no Twitter. A autora-pessoa-física, mais uma vez, junta sua discursividade pessoal ao discurso da escrita de Harry Potter, dando sua visão interpretativa para a história e não permitindo que o leitor desgrudasse a imagem da pessoa-Rowling dos caminhos narrativos da própria série.

Fellip Trindade, no artigo “Leituras em rede, autores conectados: o autor na globalização e na era digital”, passa por essas discussões e nos mostra como Rowling conseguiu criar uma obra transmídia — típica da contemporaneidade digital — e como ela conseguiu se transformar em uma pessoa acessível para os leitores apaixonados por Harry Potter através de sua rede social:

A figura do autor em uma comunidade global de leitores e fãs tão extensa e plural, como no caso de Harry Potter, torna-se, também, se não um personagem dos livros, certamente um personagem do fenômeno: a figura humana por trás do texto, da história, da marca. Uma vez que os personagens e a história em si não podem ser atingidos, a não ser virtualmente, e ao passo que o livro deixa de ser a única necessidade de posse ou de consumo, ter uma figura na qual o leitor possa recorrer de forma mais concreta (em sua lista de seguidores no Twitter, por exemplo) é altamente tentador.

(TRINDADE, p. 14, 2018)

Nessa mistura de discursos (autora-pessoa-física, a narrativa de Harry Potter, tweets, entrevistas, Pottermore), sobra muito pouco espaço para a figura do leitor tentar tecer tanto sua própria interpretação ao texto da série quanto sua própria opinião a respeito da figura de Rowling. Harry Potter e J.K. Rowling acabaram se tornando uma coisa só por conta da postura da autora, que parece não reconhecer que sua obra é muito, muito maior que ela. É por isso que, diante das recentes declarações polêmicas de Rowling, vários fãs do Menino-Que-Sobreviveu desistiram da série e de tudo o que faz parte de seu entorno, porque tem-se essa ideia de que ambos são uma coisa só. Acontece que não são. E temos de passar a reconhecer isso.

Primeiramente, é preciso entender que a obra Harry Potter foi concebida como literatura, com um projeto estético amplo, imaginativo, calcado na criação de um Mundo Mágico que (ainda) está em expansão. Quem criou esse mundo que ganhou forma nos sete romances, no manual Quadribol Através dos Séculos, no bestiário Animais Fantásticos e Onde Habitam, nas histórias infantis Os Contos de Beedle, o Bardo e nos textos publicados no site Wizarding World foi J.K. Rowling. Mas não a Rowling pessoa física: quem deu vida a tudo isso foi a J.K. Rowling subcriadora — e, aqui, apoio-me em um termo de Tolkien que já foi amplamente apresentado em textos deste site.

Seu discurso de subcriadora deveria estar restrito ao mundo de Harry Potter, e a ele somente. O que vem de fora desse mundo e que não possui representação estética dentro do imenso escopo transmídia de sua obra — no caso, tweets — não deveria ser levado em consideração para a leitura e análise de Harry Potter, porque essas falas pertencem à instância discursiva de Joanne Rowling pessoa física.

Em segundo lugar, acredito que devemos levar em consideração as acepções de Barthes sobre o leitor. Ao afirmar que a multiplicidade do texto se reúne na figura de quem lê, o autor francês ressalta a importância da independência desse leitor em relação ao que seria chamado de intencionalidade do autor. As pessoas deveriam ler, interpretar e analisar uma obra não seguindo um caminho extremamente estabelecido pelo “dono” do texto, mas sim seguindo seu próprio caminho. Essa ideia recai de certa forma no conceito que Tolkien chama de “aplicabilidade”: ao ser contrário à ideia de alegoria, o Professor propõe o conceito de aplicabilidade, que, segundo ele, reside na liberdade de o leitor poder interpretar o texto de sua própria maneira.

Como eu disse, Rowling tenta ter o controle interpretativo de Harry Potter à luz de suas próprias intenções e eu acredito que é justamente por isso que sua popularidade anda em baixa: ao se fazer tão presente na série com suas considerações e declarações, ela mesma acabou por começar sua própria ruína, já que seus leitores não sabem ao certo o que é de Harry Potter e o que é de J.K. Rowling. Não tenho a pretensão de dar a palavra final, mas espero que as considerações que fiz até aqui ajudem você, amigo leitor, a refletir sobre a questão.

Não sei se você já ouviu a expressão “jogar o bebê fora junto da água do banho”. Ela está muito relacionada à noção de processo: não é porque alguma coisa deu errado no meio do caminho que tudo o que foi feito deve ser descartado. Meu conselho é que não joguemos Harry Potter fora por conta do cancelamento de J.K. Rowling. Temos que saber reconhecer que, enquanto subcriadora, ela fez um mundo que nos mostra que a bondade, a empatia e o amadurecimento sempre vencem e é isso que deveria importar. Enquanto pessoa-física, Rowling poderia fazer o que, em minha opinião, ela sabe fazer de melhor: escrever.


Referências

Entrevista com J.K. Rowling no Hot Type. Disponível em: Potterish.com. Acesso em: 5 set. 2020.

TRINDADE, Fellip. Leituras em rede, autores conectados: o autor na globalização e na era digital. CES/JF, volume 32. 2018.

BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O Rumor da Língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

FOCAULT, Michel. “O que é o autor”. In: Estética Literatura e Pintura, música e cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

Souza (UFU), B. K. (2011). Que importa quem fala? – O desaparecimento do autor segundo Michel Foucault. Intuitio, 4 (2), 123–132. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/9676

TOLKIEN, J.R.R. Prefácio à segunda edição. In: O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2020.

TOLKIEN, J.R.R. “Sobre contos de fadas”. In: Árvore e Folha. Tradução de Ronald Kyrmse. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.


Beatriz Masson é mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, com a dissertação “Leitores e leituras de Harry Potter”.



3 thoughts on “J.K. Rowling: questões de autoria, subcriação e interpretação

  1. Muito interessantes seu texto, acho válido retomarmos que principalmente quando as coisas/ofensas não nos atinge é fácil não “jogar o bebê com a água fora”.
    Quando pensamos em situações como essas, devemos aprender que certas coisas não podem ser toleradas e quem as diz não merece mais ser fomentada.

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