J.R.R. Tolkien: quando a qualidade supera a quantidade

Cristina Casagrande

Um dos grandes desafios de se estudar Tolkien no ambiente universitário aqui no Brasil — e pasme, em diversas outras partes do mundo, inclusive na Inglaterra — é justamente a pouca aceitação por parte de alguns acadêmicos perante o autor. Seria injusto dizer que isso é generalizado, pois existe muita abertura também, mas ainda está longe de os estudos tolkienianos terem uma cadeira cativa na universidade. E isso se estende a outros círculos literários, como casas de cursos, livrarias, entidades, em que elites intelectuais consideram determinadas obras de boa qualidade, enquanto outras não. (Leia o artigo de Beatriz Masson sobre recepção crítica em Harry Potter)

Um dos motivos pelos quais determinada elite torce o nariz para Tolkien é um velho método que atravessa gerações desde o surgimento da humanidade: o preconceito. Afinal, mesmo antes das adaptações cinematográficas, dirigidas por Peter Jackson, O Hobbit e O Senhor dos Anéis sempre tiveram boas vendas e conquistaram o que se chama no mercado de público de massa. Assim, se é muito lido, não pode ser bom para alguns críticos, afinal se um jovem de dezesseis anos, que adora vídeo game, devorou um livro de mais de mil páginas, ou ele não entendeu nada ou o livro é ruim. Se isso acontece repetidas vezes, logo, o problema só pode estar no livro.

J.R.R. Tolkien: Author of the Century | Amazon.com.br

Mas, como praticamente tudo na História, isso faz parte de um ciclo vicioso. Tom Shippey, no prefácio de seu livro J.R.R. Tolkien: Author of the Century, coloca a questão da qualidade para se considerar um autor importante ou não. Nesse ponto, ele recorda que Charles Dickens foi desprezado pela academia por algum tempo, simplesmente por ser popular e, por isso, foi classificado como literatura de entretenimento. Em um determinado momento, segundo Shippey, a crítica literária se reinventou e desenvolveu “interesses mais amplos e melhores ferramentas” (2002, p. xix), incorporando Dickens em seu cânone. 

De fato, Tolkien é muito popular, isso não se pode negar. Mas há estudos comprovando que isso não necessariamente é um demérito para o autor. Sandra Reimão, fez um estudo sobre o best-seller, ou seja, o livro que é vendido e lido em massa e discriminou dois critérios: o quantitativo e o qualitativo.

No que diz respeito à quantitativa, já sabemos, Tolkien de fato tem bastante relevância. Segundo uma reportagem do Le Monde, em 2012, só a saga do Anel teria vendido cerca de 150 milhões de livros e sido traduzida para 60 idiomas. Em decorrência das adaptações para o cinema, foram vendidas 25 milhões de cópias impressas de O Senhor dos Anéis, fazendo com que as vendas do livro subissem 1000% no Reino Unido, após o lançamento do primeiro filme da trilogia.

No prefácio de Shippey, também é evidenciada a questão quantitativa do alcance dos livros de Tolkien, especialmente O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Segundo pesquisas de opinião a que ele teve acesso no Reino Unido, todas elas deixavam Tolkien em primeiro lugar entre os livros favoritos — exceto uma em que ele perdeu para a Bíblia — surpreendendo os promotores da pesquisa.

Mas a questão qualitativa de Tolkien também não deixa a desejar, superando as expectativas. Em todo o seu livro, Shippey desenvolveu argumentos para endossar a questão qualitativa de J.R.R. Tolkien em todo o seu legendário e em outras narrativas fora dele também. Méritos como criação de um mundo imaginário minucioso, planejamento de enredo, concepção do mal, dimensão mítica e o crivo dos críticos são desenvolvidos ao logo do livro de Shippey, corroborando a qualidade da obra de Tolkien.

Reimão traz os critérios do livro Best-Seller – A Literatura de Mercado, de Muniz Sodré, para discutir a qualidade de um autor ou obra. Para Sodré, as obras de massa do ponto de vista de qualitativo trariam a presença de um herói super-homem; a atualidade informativo-jornalística; as oposições míticas e a preservação da retórica culta.

Lord of the Rings 1980 Tolkien Calendar Centerspread Comic Art
Lord of the Rings 1980 Tolkien Calendar Centerspread, Doug Beekman

Tomando O Senhor dos Anéis como exemplo para o nosso argumento, podemos considerar a presença de um herói super-homem como não aplicável, visto que nessa narrativa e, de um modo geral, nas demais histórias Tolkienianas, seus “heróis” apresentam bastantes limitações. Mesmo personagens mais heroicos do legendário, como Aragorn e Gandalf, têm os seus limites. Basta ver como eles evitam ao máximo a posse do Anel. Sobre a atualidade informativo-jornalística, também não corresponde a O Senhor dos Anéis e às demais histórias tolkienianas, basicamente inseridas no gênero fantasia ou ficção com toques de insólito. Já as oposições míticas podem ser uma questão mais controversa. Algumas pessoas podem acusar Tolkien de ser maniqueísta, de escrever sempre sobre o bem contra o mal, mas, quando vemos que seus personagens têm suas falhas, por mais virtuosos que sejam, e que a Sociedade do Anel é permeada de povos distintos, nós reconsideramos isso. Tomamos como exemplo, o próprio Sauron, que, segundo Tolkien em uma de suas cartas, não era mau em sua concepção:

Sauron, é claro, não era “mau” em origem. Foi um “espírito” corrompido pelo Primeiro Senhor do Escuro (o Primeiro Rebelde subcriativo), Morgoth. Foi-lhe dada uma oportunidade de arrependimento, quando Morgoth foi derrotado, mas não pôde encarar a humilhação da retratação e da súplica pelo perdão; e, assim, sua inclinação temporária para o bem e para a “benevolência” terminou em uma recaída maior, até que se tornasse o principal representante do Mal de eras posteriores. (2010, p. 183)

Por fim, a preservação da retórica culta também é bastante distante da proposta de escrita do autor filólogo que era J.R.R. Tolkien. Vemos em nosso exemplo, O Senhor dos Anéis, que o autor se preocupa em criar um mundo ficcional consistente, com variações linguísticas próprias e típicas de cada povo. Portanto, a preservação da retórica culta não é uma preocupação para o autor, porque ele se vale da questão da linguagem para a construção de um mundo consistente e verossímil, onde há variações sociolinguísticas de diversas ordens.

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Chrétien de Troyes, artista desconhecido

Outro aspecto que Shippey ressalta sobre Tolkien ser o autor do século XX — e no evento “Tolkien 2019”, ele o considerou do XXI também — é como o professor de Oxford conseguiu demonstrar, mais do que ninguém, o que a literatura de fantasia pode oferecer. “Uma maneira aceitavelmente filológica de expor isso pode ser dizendo que Tolkien foi o Chrétien de Troyes do século vinte. Chrétien, no século doze, não inventou o romance arturiano, que deve ter existido de alguma forma antes do seu tempo, mas ele mostrou o que poderia ser feito com ele” (2002, p. xviii–xix). 

Outro critério que podemos colocar para avaliar a qualidade da obra de Tolkien é com base nas catorze definições de clássicos expostas por Ítalo Calvino. Vamos fica com três máximas dele: “1. “Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo …’ e nunca ‘Estou lendo …’” (1993, p. 9). Quanto a essa afirmativa, pode-se dizer que Tolkien se encaixa perfeitamente e se destaca entre os autores mundiais de toda a História. Sua obra é tão rica em detalhes, profundidade e desenvolvimento, que sua leitura é sempre um convite a muitas releituras.

No segundo ponto: “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los” (p. 10). Muitos acreditam que as leituras de Tolkien são voltadas apenas aos mais jovens, especialmente os iniciantes na literatura. Mas com os estudos literários tolkienianos, tem-se demonstrado que a obra do Professor tem muito mais ainda para oferecer para leitores mais maduros — independentemente da idade. Tomando sempre O Senhor dos Anéis como exemplo na discussão, sabe-se que essa obra, assim como todo o legendário, faz referências com muitas histórias da literatura e mitologia mundial. Além disso, ele leva ao leitor muitas reflexões de cunho filosófico, teológico, filológico, entre outros. Ou seja, quanto mais amadurecida for a mente do leitor, seja ele jovem ou idoso, mais proveito ele vai ter diante da leitura das obras de Tolkien.

Por fim: “3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se com o inconsciente coletivo ou individual.” Com isso, Ítalo demonstra que nós os leitores não somos os mesmos com o passar do tempo. A leitura que tivemos na juventude se revela nova em uma possível releitura ou mesmo em nossa memória. O Senhor dos Anéis, assim como as demais obras dentro e fora do legendário, sempre se revelam novas em nossas memórias e releituras. Isso pode ser comprovado em nossas experiências como professores, pesquisadores, produtores de conteúdo em mídias sociais ou simples fãs leitores em clubes de leitura, entre outros.

Esses são apenas alguns critérios de especialistas em diversas áreas e localidades para se verificar a qualidade da obra de Tolkien, sem deixar que a quantidade de vendas dos livros ou a opinião pública configure nenhum demérito. Assim, Tolkien demonstra, junto a outros autores populares da história, que a literatura de qualidade, em profundidade e beleza estética, não impede, ao contrário, endossa o prazer da leitura.


Este texto é uma versão ampliada e modificada da introdução da dissertação Em Boa Companhia — A Amizade em O Senhor dos Anéis.

Confira o vídeo sobre o tema em: https://youtu.be/c-WpjhW277M


Obras citadas

SHIPPEY, T. J.R.R. Tolkien: Author of the Century. London: HarperCollins, 2002.

CALVINO, I. Por que ler os Clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

RÉROLLE, R. “Tolkien, L’anneau de la Discord”, Le Monde, jul. 2005. Disponível em: <http://www.lemonde.fr/culture/article/2012/07/05/tolkien-l-anneau-de-la-discorde_1729858_3246.html#deXKTsTR3J4GIRwa.99&gt; Acesso em: 23 jun. 2016.

REIMÃO, S. Mercado Editorial Brasileiro, 1960-1990. São Paulo: Com-Arte Fapesp, 1996.

TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis.


Cristina Casagrande é autora do livro “A amizade em O Senhor dos Anéis”

2 thoughts on “J.R.R. Tolkien: quando a qualidade supera a quantidade

  1. Parabéns pelo texto, fiquei interessado em ler esse livro de Ítalo Calvino, para saber sobre as 14 definições de clássicos. Acho muito complicado dizer o que faz de uma obra um clássico, existem muitas obras seja em HQ, livros, cinema que tratam de um assunto pouco trabalhado (inovador) e não chegam a ser conhecidas, talvez por divulgação, não sei ao certo, acho que as pessoas ficam sem saber como lidar com obras muito fora do padrão. Acho que nesse raciocínio dos clássicos talvez deva entrar mídia e psicologia social ou das massas, pois os influenciadores digitais conseguem levar diversas pessoas a lerem uma obra pela primeira vez ou relerem não pois pretendiam, mas porque um várias pessoas estão lendo ou relendo uma determinada obra.

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