“Metafísica da Subcriação”: Um ensaio filosófico sobre os escritos acadêmicos de J.R.R. Tolkien

Eduardo Boheme

Não sou filósofo e leio pouco sobre Filosofia. Só essas “não creden­ciais” já seriam o bastante para colocar em xeque a minha própria adequação para resenhar o livro Metafísica da Subcriação: A filosofia do mito em J.R.R. Tolkien, do professor Diego Klautau. Por outro lado, o livro não é feito exclusivamente para os versados nesse antiquíssimo saber; não é apenas para o clube dos filósofos e dos subcriadores, embora seja bem dirigido ao clube dos leitores de Tolkien.

O foco do livro são alguns dos mais importantes ensaios acadêmicos de Tolkien e não a sua literatura ficcional. Após o belo prefácio do professor Carlos Caldas, o autor nos conta um pouco sobre como foi parar na Terra-média via RPG. Logo se volta para o virente mundo medieval de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, falando especificamente sobre a lei moral do poema e sobre dois textos de Tolkien, ambos de 1953, em que, segundo Klautau (p. 24), “encontramos um primeiro pilar de sua cosmovisão”. Sobre esses dois textos, o autor diz “se tratar de uma análise amadurecida de Tolkien […] iniciada a partir dos anos 1920, quando foi publicada a edição em inglês médio do poema [e] prolongou-se até os anos 50”. Sem dúvida, amadurecida. E exemplar do fato de que o acadêmico Tolkien era a um só tempo brilhante e, às vezes, obscuro em suas referências, além de firme em suas crenças. No mais longo desses ensaios, por exemplo, Tolkien extraordi­nariamente diz pensar que Geoffrey Chaucer conhecia Sir Gawain e provavelmente o autor. Nesse capítulo, Klautau também se debruça sobre a falibilidade do herói — demonstrada num episódio em que o protagonista aceita um cinto supostamente mágico que o protegeria da morte por decapitação em um jogo com o Cavaleiro Verde — e suas reverberações em Aristóteles e na fé cristã.

Deixando Sir Gawain de lado, Klautau volta o olhar, nos dois capítulos seguintes, para três textos de Tolkien sobre Beowulf: o famosíssimo The Monsters and the Critics, além de On Translating Beowulf e a própria tradução em prosa feita por Tolkien e publicada postumamente. A abordagem de Klautau pelo olhar da Ciência da Religião nos ensina conceitos interessantes como inculturação, eclesio­centrismo, cristocentrismo e teocen­trismo; por sua vez, a abordagem filosófica pela teoria aristotélica das quatro causas já prenuncia os capítulos seguintes. Nos dois textos sobre Beowulf, continuamos a ver o autor falando um pouco de como sua pesquisa e seu contexto acadêmico o encaminharam para esses textos: ainda esta­mos andando em meio às árvores esparsas que vêm antes da floresta.

A floresta, no livro de Klautau, é seu estudo de On Fairy-stories, que ocupa mais da metade do volume. A partir desse ponto, o leitor precisa ficar mais atento para não perder a trilha, pois o guia é muito bom, mas às vezes anda mais rápido do que o turista!

O fio condutor do estudo de Klautau sobre esse importante ensaio é a tradição filosófica realista, definida pelo autor da seguinte forma (p. 61):

Em termos simples, a filosofia realista é a que se fundamenta na interpre­tação feita pela escolástica dos postulados antropológicos, gnosiológicos, morais e ontológicos inaugurados por Platão e Aristóteles, trazidos para o diálogo com o cristianismo pela Patrística, como em Santo Agostinho e, por fim, sistematizados pelas sumas medievais como as de São Tomás.

“Se esses são os termos simples”, o leitor pode pensar, “ai de mim quando chegarem os termos complexos!”. Mas não há o que temer, pois o guia que nos leva por essa trilha nos fornece elementos suficientes para compreendermos os assuntos em variados graus de profundidade.

Klautau busca inscrever Tolkien na tradição filosófica realista por meio da teoria aristotélica das quatro causas (matéria, forma, causa eficiente e finalidade). Para o autor, as seções de On Fairy-stories procuram entender o objeto — isto é, as estórias de fada — sob a perspectiva dessas quatro causas:

[Quando] Tolkien responde à primeira pergunta (o que são estórias de fadas?) […] ele investiga tanto a matéria quanto a forma desse objeto. Na seção “Origens”, apresenta considerações sobre a causa eficiente, enquanto na seção “Crianças” demonstra como esse gênero literário é associado a crianças por questões acidentais. Finalmente, tanto na seção “Fantasia” quanto em “Recuperação, Escape, Consolação” desenvolve sua teoria acerca da finalidade desse gênero literário.

Cada um dos capítulos seguintes do livro, portanto, mostra de que maneira Tolkien construiu sua teoria apoiado na Metafísica, fazendo abundante uso não apenas de Aristóteles, mas também dos outros pensadores mencionados (Platão, Agostinho e Tomás de Aquino), além de alguns célebres tolkienistas. Klautau também se ocupa do “Epílogo” de On Fairy-stories.

Se ocasionalmente a linguagem parece hermética e os conceitos, obscuros, isso se deve à própria complexidade do assunto e não a defeitos de estilo. Os conceitos, aliás, são para o autor fragilíssimos, de modo que, após traduzi-los, ele se preocupa em colocar o termo original, “barfield-ianamente” cônscio de que nossas línguas modernas nem sempre conseguem, com um único golpe, dar conta das palavras em línguas antigas, e que mesmo entre línguas modernas pode haver um fragmento de imprecisão conceitual. Assim, são frequentes os conceitos parentéticos que despertam a curiosidade: “forma (eidos)”; “alma (psyqué)”; “contemplação (theoria)”; “maravilhoso (thaumaston)”. A propósito, visto que o conceito de assombro e maravilhamento é tão frequente no livro, quão apropriado não é o fato de que Rebeca Traldi, designer da capa, escolheu para a palavra Subcriação a fonte Wondershine?

Conforme vamos saindo dessa floresta, as árvores vão rareando e nos deparamos com dois textos publicados neste mesmo site (aqui e aqui), eles sim focados na literatura de Tolkien.

Mesmo para aqueles — ou principalmente para aqueles — de olhos filosoficamente turvos como os meus, o livro é de grande valia: aprendemos não só coisas novas, mas também formas novas de se olhar para coisas conhecidas. Um exemplo está no cinto que Sir Gawain recebe, ao qual fiz alusão no início desta resenha. Certa vez, em um trabalho para um curso de literatura do médio inglês, falei exatamente sobre esse cinto, mas o que meus olhos viram foi algo muito diverso: na época, o que enxerguei foi que, no verso 2359 (Myn owen wyf hit þe weued) — quando o Cavaleiro Verde diz a Gawain que foi a esposa dele quem o presenteou com o cinto —, a palavra weue é glosada por Tolkien e Gordon com o significado de “dar” e é assim que Tolkien a traduz (My own wife it awarded thee). Agora, perguntei-me, por que Simon Armitage, que explicitamente afirma ter usado a edição e a tradução de Tolkien, tra­duziu weued como woven (teceu; fabricou)? Importava-me menos saber quem estava certo e mais a consequência disso para o caráter “mágico” do cinto. Agora, com um novo sedimento de saber, posso também olhar para esse episódio e relacioná-lo com a lei moral.

Ao fecharmos o livro do professor Klautau, percebemos que não estamos mais filósofos do que ao abri-lo, porque o livro não pretende nos tornar filósofos e, sim, ensinar-nos uma coisa ou outra sobre Tolkien conforme vistas por alguém que já está há um bom tempo estudando o autor. E isto o livro faz com muita eficiência: nos ensina muito sobre Tolkien e sobre aqueles a quem ele recorreu para erigir os fundamentos de sua cosmovisão.

Metafísica da Subcriação: A filosofia do mito em J.R.R. Tolkien
Diego Klautau
Editora A Outra Via
Brochura, 222 páginas


Eduardo Boheme é mestre em Tradução Literária pelo Trinity College da Universidade de Dublin.


One thought on ““Metafísica da Subcriação”: Um ensaio filosófico sobre os escritos acadêmicos de J.R.R. Tolkien

  1. Entre as alegrias que a jornada tolkienista me trouxe está a amizade com o Eduardo. Seu rigor acadêmico e maestria linguística são rivalizáveis com sua generosidade, bom humor e leveza.
    É verdadeiramente uma honra contar com sua resenha, ainda mais publicada pelo site tolkienista, da Mestre Cristina Casagrande, cuja parceria na travessia dessa selva escura da pesquisa em Tolkien foi e é forjada em conquistas individuais compartilhadas e glórias conjuntas celebradas.
    Pessoalmente, a resenha é muito melhor que o livro.

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