Cristina Casagrande
Um dos recursos que marcam a narrativa de O Senhor dos Anéis é o chamado “entrelaçamento”, conceito que vem do francês “entrelacement” desde a Idade Média. A partir do final do volume A Sociedade do Anel, os membros da Sociedade se ramificam, desde a morte de Gandalf, culminando na partida de Frodo na surdina (não sem a companhia de seu fiel jardineiro Samwise Gamgi). Daí por diante, os núcleos se ramificam, e a Demanda do Anel ganha pequenas demandas em seu entorno: após a trágica morte de Boromir, Aragorn, na companhia de Legolas e Gimli, busca os hobbits Merry e Pippin, já estes se embrenham na floresta de Fangorn, e com Barbárvore rumam para Isengard, enquanto Sam e Frodo partem para o Monte da Perdição.
Peter Jackson se fez valer desse recurso em seus filmes, à semelhança da narrativa de J.R.R. Tolkien. Desse modo, cenas que acabam de acontecer dão vez a outras que voltam um pouco no tempo, para dar a ideia de simultaneidade. Nesse recurso, muitas vezes, o expectador fica sem saber o que aconteceu com um núcleo narrativo, enquanto se vê obrigado a acompanhar um outro que está começando ou continuando a desenrolar. Isso não só cria uma expectativa e um suspense maior na narrativa como demonstra como acontecimentos na ficção e na realidade concreta, aparentemente desconexos, estão, na verdade interligados.
Na série O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, estreado no dia 1º de setembro na plataforma de streaming do Prime Video, esse efeito se repete. Vemos cenas dos elfos em Lindon, e, de repetente, partimos para Eregion, para o reino anânico Khazad-dûm ou Tirharad (nome criado pela série para designar a Terra dos Homens do Sul, região onde virá a ser Mordor), e então acompanhamos as andanças dos Pés-peludos, para depois voltarmos alguns desses reinos a fim de saber o que aconteceu.
Esse entrelaçamento de pequenos núcleos da história permite uma forte dinâmica na narrativa, permeada de belíssimos cenários — contrastantes entre elevados reinos élficos e rústicas vilas cinzentas—, empolgantes cenas de ação, mas sem deixar de oferecer diálogos profundos. O ritmo adotado nesses dois episódios de apresentação de parte do núcleo não deixa a desejar em nada às produções de Peter Jackson, na aclamada trilogia de O Senhor dos Anéis.
Falando nas produções cinematográficas de Jackson é clara a referência que se faz já no início do primeiro episódio. Assim como A Sociedade do Anel nos cinemas se inicia com a narrativa de Galadriel da Terceira Era, interpretada por Cate Blanchett, é também a mesma elfa (uma era mais jovem), interpretada por Morfydd Clark que dá voz ao prólogo de Os Anéis de Poder — um deleite com gostinho de quero mais aos amantes da Primeira Era.
A caracterização de Galadriel é bastante feliz ao retratarem uma elfa forte e poderosa (comparada ao impactante Fëanor, criador das Silmarils) sem cair no caricaturesco e sem perder “a elficidade tolkieniana”: suas feições são delicadas, a fala profunda, o caráter sempre honesto, a mente sábia (embora ainda imatura frente ao que vai vir a ser na Terceira Era) e seu semblante frequentemente é ligado ao sagrado. Ao mesmo tempo, ela é forte de corpo e de caráter, voluntariosa, ousada, destemida e arrojada, como pede aquela que foi chamada pela mãe de Nerwen, a “donzela-homem”.
Vale ressaltar a versão Galadriel menina que aparece no prólogo, com interpretação da graciosa Amelie Child-Villiers. A pequena Galadriel já aparece ali voluntariosa e até mesmo um tanto impaciente. Nesse aspecto, apesar de entender a necessidade de haver uma certa humanidade entre as crianças élficas ali — seria chatíssimo e completamente inverossímil os pequenos elfinhos sem o entrosamento e a espontaneidade de crianças “normais” — e que a intenção era demonstrar o temperamento forte de Galadriel de natureza, essa representação parece descompassada em certa medida com a proposta do legendário de Tolkien.
Explico. Em sua mitologia literária, o autor trata em muitos momentos da “queda”, e a dos elfos ocorre justamente com a corrupção de Fëanor, culminando com a destruição das Árvores de Valinor por ação de Melkor e Ungoliant. Na época em que Galadriel aparece criança, essa queda ainda não havia acontecido, portanto esse caráter mais irascível dela não transpareceria com atos de violência, como a pequena elfa ameaçando agredir os amiguinhos provocadores. É claro que eles poderiam (e deveriam!) já demonstrar esse caráter forte e voluntarioso dela, mesmo antes da queda, porém talvez com outros recursos. Mas isso é só um pequeno detalhe de poucos segundos, um recurso tipicamente audiovisual que não compromete o todo da produção.
A explicação do porquê de Galadriel já adulta tomar as armas e a liderança em alguns momentos é convincente, embora romanceada. Isso é compreensível, uma vez que os escritos da Primeira e da Segunda Era nunca chegaram a ser publicados em vida por J.R.R. Tolkien, tampouco em forma de romance (ao menos, não como um todo — talvez em partes como nos Grandes Contos, especialmente em Os Filhos de Húrin). Em publicações em que o autor ainda estava vivo, eles aparecem de forma extremamente concisa nos apêndices de O Senhor dos Anéis, que aliás, são os trechos de que os produtores do Prime Video têm direito de adaptação.
Não é dito nos escritos de Tolkien, mesmo nos póstumos, que Galadriel quis vingar o irmão Finrod, nem nenhum de seus outros irmãos. Mas é algo que cabe perfeitamente na narrativa. É totalmente esperado que a voluntariosa e destemida Galadriel descrita por Tolkien em eras anteriores à Guerra do Anel tenha sofrido amargamente a perda do irmão — o mais admirável dos filhos de Finarfin, além da própria Galadriel.
Embora tenha feito isso em alguns momentos em O Senhor dos Anéis e O Hobbit, como romance literário que é, Tolkien não se dedicava tanto a descrever as peculiaridades do cotidiano de seus personagens em sua mitologia. Nos escritos dos apêndices, bem como em O Silmarillion a narrativa se centrava mais nos acontecimentos, feitos e decisões de seus personagens do que em seus pormenores. Mas numa série televisa isso é imprescindível.
Essa necessidade de preencher lacunas que não estão presentes nos escritos de Tolkien, sobretudo quando se chega mais próximo às especificidades cotidianas de cada personagem invariavelmente vai trazer ao leitor ou espectador antigo de Tolkien um estranhamento. Por mais bela, coerente e consistente que a produção nos apresenta, a sensação é de encontrar ao vivo velhos amigos que só conhecíamos pela Internet. Estamos, em grande parte, extasiados, mas ainda temos de nos acostumar.
Não sabemos quase nada de um Elrond jovem na Segunda Era, como ele era, o que pensava, quais eram seus anseios. A equipe de roteiro tentou descobrir, com os elementos que já haviam sido descritos nos livros. O resultado foi um Elrond aplicado e deslumbrado com seu modelo político (seu Elrond do passado) Gil-galad.
A fuga de Galadriel à revelia de Gil-galad e o jovem Elrond conferem bem o espírito tolkieniano: enquanto a elfa percebe que o Mal está à espreita, o alto-rei de Lindon prevê, com Elrond, que se Galadriel ficasse, ela atrairia a presença do Mal para si de alguma forma. Ali entra o embate entre escolha e destino, sempre presente nos contos épicos do autor.
Entre os pontos altos e baixos, é difícil não se encantar com reino dos anãos. Khazad-dûm no seu esplendor é a típica montanha encantada em toda a sua potência. Remetendo à cultura andina, ela convence como uma sociedade que sobrevive embaixo da terra. A atuação e caracterização dos anãos, especialmente de Durin IV (Arthur Owain) é impecável. E os que sofrem com a ausência das barbas das anãs dificilmente conseguirão deixar de se render ao carisma de Disa (Sophia Nomvete). O alívio cômico dos anãos continua presente (como o próprio Tolkien frequentemente colocava), mas o diálogo que aparece entre Durin IV e seu pai nos traz a ideia de que o povo de Aulë não se esgotará apenas nisso.
Eregion também é um charme à parte, dificilmente um fã raiz não vai se encantar com o “martelo de Fëanor”. A figura de Celebrimbor mais velha, embora Charles Edwards esbanje simpatia, ainda causa estranhamento e algum desconforto. Sabemos que ali ele mostra uma figura experiente e sábia, e um ator um pouco mais velho representa isso. Mas sabemos também que elfos custam milênios a envelhecer e que Celebrimbor não é mais velho que Galadriel para ter uma aparência mais madura que a dela.
Com boa vontade, os roteiristas poderão encontrar uma explicação para o envelhecimento precoce do Celebrimbor, talvez pelo poder advindo de sua responsabilidade como neto de Fëanor. Além disso, é claro que o affair que o artífice de Eregion tem por Galadriel nos escritos de Tolkien não aparecerá na série, pois, ao que tudo indica, essa queda pela elfa será transferida ao misterioso Halbrand (Charlie Vickers).
“Só queria saber que tipo de homem abandona tão rapidamente os colegas para morrer”, questiona Galadriel a Halbrand, que se separou seus companheiros do pedaço de barco em que estavam para colocá-los como isca ao monstro marinho para que ele pudesse sobreviver. O caráter de Halbrand já é colocado em xeque pela sábia elfa, ao mesmo tempo em que sua caracterização é de um típico galã de cinema. E quanto a Celeborn, marido de Galadriel desde a Primeira Era? Este ainda não é mencionado.
Halbrand diz sair foragido das Terras do Sul, onde os orques destruíram suas moradas. Em Tirharad, encontramos um núcleo mais cinza da série, onde orques e homens com um passado corrompido convivem entre si. Lá encontramos Bronwyn (Nazanin Boniadi), uma curandeira e mãe solteira de Theo. A personagem criada pela própria série aparece como um contraponto, demonstrando que seu povo ali não é necessariamente corrompido.
Não sabemos muito sobre o passado dela, tampouco quem é o pai de Theo. Apesar de causar certo estranhamento, a personagem remete aos povos humanos retratados em narrativas como Os Filhos de Húrin, em que frequentemente as mulheres são obrigadas a se casar com homens corrompidos, aliados ou não de Morgoth e Sauron.
Arondir (Ismael Cruz Córdova), elfo silvestre também criado para a série, se mostrou mais do que simplesmente um amor proibido de Bronwyn e promete ter um destaque forte nas Terras do Sul. Já os Pés-peludos contrastam com essa realidade cinzenta do povo de Tiharad, e junto ao Estranho trazem uma boa dose de mistério e magia, mesclado à simplicidade presentes nos romances tolkienianos.
Com a chegada do personagem misterioso, que traz fortes pistas de ser o próprio Gandalf, ficamos curiosos para saber quem ele seria, qual a interligação que esses ancestrais dos hobbits terão com os demais núcleos da história e se sua trama será convincente com os escritos do autor. Por ora, a presença deles é leve, bem-humorada e tipicamente tolkieniana.
Os cliffhangers são bem feitos, e a expectativa é crescente: agora resta esperar para entrar no núcleo de Númenor, que promete resgatar Galadriel e Halbrand perdidos no mar.
Pontos mais altos: a belíssima trilha sonora, a produção dos cenários e a caracterização dos personagens, com destaque para diferenciação das falas entre os povos.
Pontos mais baixos: as acrobacias de Galadriel um pouco forçadas, e a sua versão criança violenta.
Estrelinha de Eärendil para: Khazad-dûm do início ao fim.
Vale dizer: Simon Tolkien, primeiro filho de Christopher Tolkien, neto do autor, aparece como consultor dos episódios nos créditos.
Saldo final dos episódios 1 e 2: ★★★★★
Apoie o Tolkienista comprando pelos links: https://tolkienista.com/apoie-o-site-tolkienista/
Cansado de uma galera marmanja que busca apenas hate de uma obra tão incrível quanto esta. O dinheiro foi muito bem gasto, Valinor com as suas Árvores e Khazad Dum estão maravilhosas em toda a sua essência. E Eregion deu até uma arritmia quando a vi. Foi tão boa a sensação que me fez pesquisar ainda mais sobre as Duas Árvores, e fizemos um especial de Curiosidade em nosso site. https://guarientoportal.com/curiosidades/laurelin-telperion-valinor
Mais uma vez, parabéns pela sua escrita.