Vinícius Veneziani
Curiosamente, John Ronald Reuel Tolkien e Walter Benjamin nasceram no mesmo ano, em 1892. À primeira vista, essa poderia ser a única semelhança entre os dois, pois apesar de contemporâneos, Tolkien era britânico e foi filólogo e professor na Universidade de Oxford, apesar de mais conhecido por suas obras fantásticas (como O Senhor dos Anéis), enquanto Benjamin foi um prolífico intelectual e crítico alemão, responsável por uma contribuição vasta em áreas como Filosofia, História e Literatura. Ou seja, ambos tiveram trajetórias acadêmicas paralelas (a de Benjamin tragicamente abreviada com sua morte, em 1940, e por isso mesmo), traçando caminhos que nunca se cruzaram.
Porém, mesmo que nunca tenham se encontrado pessoalmente, suas obras foram capazes de fazê-lo indefinidamente, fermentando muitos diálogos possíveis por meio de seus novos leitores. É o que acontece, por exemplo, com o clássico ensaio de Benjamin escrito em 1936, intitulado O Narrador: Considerações Sobre a Obra De Nikolai Leskov, e a conferência fundamental de Tolkien na Universidade St. Andrews de 1938, convertida no ensaio Sobre contos de fadas, de 1947, que foram comparados a seguir. Aparentemente aleatória, essa escolha, no entanto, revela algo inesperado: se realmente tivessem se conhecido, e em condições ideais, teriam percebido uma sobreposição significativa entre suas ideias. No plano teórico, talvez até tivessem instigado um ao outro a fazer complementos e revisões, o que ajuda a justificar nosso esforço em analisá-los. E tudo isso graças aos contos de fadas, parte importante do conceito de narrativa para Benjamin e objeto central de Tolkien em sua análise dedicada à fantasia literária.
Antes, porém, vale salientar que nem um, nem outro eram teóricos especialistas em contos de fadas, tais como Tzvetan Todorov, Maria Nikolajeva, Nelly Novaes Coelho e outros nomes do ramo. Mais importante: menos ainda é o autor que vos escreve, embora seja um estudioso da obra de Tolkien. Tal como o próprio proferiu em St. Andrews: “Pode ser que me considerem ousado demais, pois, apesar de ter sido amante de contos de fadas desde que aprendi a ler e refletir sobre eles de tempos em tempos, não os estudei profissionalmente” (TOLKIEN, 2017, p. 3). Isso não significa, contudo, que estejamos à deriva, pois tanto Tolkien quanto Benjamin argumentaram com solidez e não tratam do assunto de maneira obscura, mas sim como um tópico central em suas concepções literárias e formulações teóricas. Por último, resta alertar que o texto abaixo é uma adaptação de um artigo acadêmico, o que significa dizer que notas, referências bibliográficas e discussões técnicas foram adequadas a um texto mais acolhedor e que incentive o leitor a buscar o texto original a fim de satisfazer sua curiosidade por detalhes ou verificar as fontes.
Sobre fadas e Tolkien
Tolkien afirmou em seu ensaio que os contos de fadas não tratam, necessariamente, de fadas ou outras criaturas fantásticas. Na verdade, versam mais sobre o lugar em que essas criaturas existem: local ideal que Tolkien denominou Faërie. Nas palavras do autor: “Um conto de fadas é aquele que toca ou usa o Reino Encantado, qualquer que seja seu propósito principal, sátira, aventura, moralidade, fantasia” (TOLKIEN, 2017, p. 9-10). Fazendo uma separação bem clara entre o que erroneamente se entende por contos de fadas (como fábulas, histórias de viagem e de sonho) e o que realmente são histórias de fadas, Tolkien mencionou uma série de características distintivas de Faërie que são essenciais para entender o conceito.
Para começar, as fronteiras de Faërie são incertas, já que se trata de um domínio distante do nosso próprio tempo e espaço. O lugar que define os contos de fadas estaria muito longe de nós, exercendo-nos um enorme fascínio ao ativar o desejo profundo por explorar os recônditos de uma terra distante, situada em outra época. Tolkien não só postulou essa regra como também a empregou em seus escritos ficcionais, por exemplo, Ferreiro de Bosque Grande, lançado originalmente em 1967. Bastam as primeiras linhas que apresentam a aldeia Bosque Grande para perceber seus limites turvos: “Era uma vez uma aldeia, não faz muito tempo para quem tem memória comprida, nem muito longe para quem tem pernas compridas” (TOLKIEN, 2015, p. 1). Ou seja, o cenário fictício dessa história pertence a uma época e local vagos, impossíveis de definir em palavras (mas não imperceptíveis), como é apropriado aos contos de fadas tolkienianos.
Tolkien ainda comentou que: “[…] por trás da fantasia existem vontades e poderes reais, independentes das mentes e dos propósitos dos homens” (TOLKIEN, 2017, p.14). O filólogo destacou uma dessas “vontades e poderes” dos contos de fadas: a de se comunicar com outros seres vivos, aspecto que à sua maneira também é relevante para Benjamin. Por satisfazerem esses desejos primordiais, como a necessidade de comunicação, Tolkien considerou as origens dos contos de fada e as origens da linguagem e da mente (vejam só) a mesma questão. Mas o que Benjamin teria a dizer sobre isso?
Considerações sobre a narrativa
Uma das preocupações de Benjamin em O Narrador foi a degradação da narrativa, entendida como uma forma de contação de histórias em que a transmissão oral e a experiência coletiva são privilegiadas, então em declínio diante da ascensão do romance no século XX, individualista por excelência. No texto, Benjamin descreveu dois elementos que compõem o ato de narrar que são de grande importância para nossa questão: a socialização de experiências e as fontes que alimentam o repertório do narrador.
Segundo o crítico alemão, um narrador “retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência e a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (BENJAMIN, 1987, p. 201). Em outras palavras, a narrativa corresponde a uma forma de comunicação integrada com o mundo e com a sociedade, na qual os narradores recolhem fontes para suas histórias na experiência transmitida de pessoa para pessoa, geração após geração, por meio do intercâmbio de relatos e escutas. Bem aqui encontramos um eco das ideias de Tolkien, pois aquele desejo por comunicação com outros seres vivos, imanente à fantasia, guarda muita semelhança com a natureza coletiva, fundada na experiência comunicável, do trabalho do narrador benjaminiano. Além disso, o conhecimento vasto de temas universais possuído pelo narrador também se conecta aos contos de fadas de Tolkien, que priorizam tópicos mais fundamentais e permanentes, como o raio, em vez de, por exemplo, a lâmpada elétrica.
Aliás, o fato de o narrador benjaminiano coletar relatos e vivências com “raízes no povo” e imprimi-las na experiência alheia ao contar histórias também remete a uma famosa metáfora do ensaio de Tolkien: a “Sopa das Histórias”.
Ao discutir as várias e complexas hipóteses para a origem dos contos de fadas, o filólogo sintetizou sua visão na imagem de um caldeirão contendo uma sopa em fervura constante desde tempos remotos, na qual “foram continuamente acrescentados novos ingredientes, saborosos ou não” (TOLKIEN, 2017, p. 26), referindo-se ao processo orgânico de transmissão oral e escrita dessas histórias. Nessa imagem, o trabalho de manter em funcionamento o caldeirão, adicionando e misturando ingredientes com o passar do tempo, seria da responsabilidade de “cozinheiros”: diversos agentes por trás da coleta, seleção e divulgação das histórias de um povo ou cultura (como Elias Lönnrot, filólogo oitocentista responsável por compilar antigas histórias populares da tradição oral finlandesa e publicá-la no Kalevala). Logo, temos uma receita paralela: a dos narradores benjaminianos e a dos contadores tolkienianos de histórias de fadas, ambos fixados nas histórias populares, no folclore e na mitologia.
Ainda resta um detalhe interessante: para Benjamin a narrativa foi perpetuada graças à atuação de dois grupos arquetípicos, isto é, o camponês sedentário (detentor dos saberes do passado) e o marinheiro comerciante (portador dos saberes de terras distantes), depois conjugados na figura dos artesãos medievais, que combinaram tradição e inovação na arte de narrar histórias. Dessa esquematização, vale frisar aquelas dimensões distantes no tempo e no espaço. Dito de outra forma, há narradores que obtêm as fontes de suas histórias nas tradições de grupos sociais (um passado longínquo), enquanto outros o fazem viajando a outros lugares (para espaços distantes). Benjamin até chegou a escrever que a verdadeira narrativa não se esgotava no momento em que era contada, mas se estendia no tempo, conservando sua capacidade de causar espanto e reflexão – bem semelhante àquele desejo de que fala Tolkien, de explorarmos Faërie sempre que sua antiguidade e estranheza nos despertasse e convocasse.
Se parássemos por aqui, teríamos já nos convencido da sobreposição existente entre o conceito de narrativa e os contos de fadas, tal como entendidos por Benjamin e Tolkien? Se não, talvez seja porque os contos de fadas ainda não haviam feito sua grande aparição no texto do crítico alemão, como acontece na seção 16, parcialmente transcrita abaixo. A propósito, é também o momento no qual Tolkien e Benjamin passam a discordar:
Ele [o conto de fadas] é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o narrador de contos de fadas. Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter, e oferecer sua ajuda, em caso de emergência. Era a emergência provocada pelo mito. O conto de fadas nos revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico […] O conto de fadas ensinou há séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância […] O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado (BENJAMIN, 1987, p. 215).
Em uma primeira leitura, chama a atenção a continuidade traçada pelo autor entre os contos de fadas ontem e a narrativa hoje, confirmando que as histórias de fantasia fazem parte do ofício do narrador. O próprio Leskov, escritor russo cuja produção é o centro do texto de Benjamin, é identificado como narrador com profunda afinidade pelos contos de fadas (BENJAMIN, 1987, p. 216). Para deixar clara a afinidade entre as ideias de Tolkien e Benjamin, vale a pena destrinchar rapidamente dois pontos do parágrafo acima: (I) a associação dos contos de fadas com crianças e (II) sua capacidade de dar conselhos.
É para crianças?
Benjamin foi claro quanto ao destinatário dos contos de fadas: atualmente esse gênero de histórias é lido por crianças. Mas não foi sempre assim, pois tais contos outrora foram aproveitados por toda a humanidade, durante uma fase “primeva” na qual predominava o pensamento mítico. Para uma compreensão mais adequada desse “pesadelo mítico” superado pelos contos de fadas, seria necessário esclarecer o que o autor entende por mito – o que, infelizmente, escapa ao escopo desse texto. Mas, em resumo, pode-se inferir que, para o autor, os contos de fadas estão ligados a um estágio imaturo da vida humana, uma vez que seu público hoje são crianças e antigamente fora a humanidade, em vias de abandonar um raciocínio mítico conotado de maneira negativa.
Tolkien discordaria veementemente de Benjamin nesse aspecto. Não quanto à antiguidade dos contos de fadas, mas em sua associação direta com crianças. Segundo o filólogo (e alguns de seus contemporâneos, inclusive colegas, como C. S. Lewis), relegar tal literatura ao mundo infantil é um acidente do mundo moderno, que se confunde com a expansão das terras conhecidas pelas navegações iniciadas no século XV. Esse processo estaria relacionado à representação das fadas como seres alados diminutos e com a produção de uma fantasia literária “racionalizada”, cheia de artifícios que se aproveitam da credulidade das crianças para justificar a fantasia (TOLKIEN, 2017, p. 6, 33-5). Além disso, Tolkien atestou que o “apetite infantil por maravilhas” é uma ilusão adulta, fruto do gosto indiscriminado de crianças por uma infinidade de assuntos, sem necessariamente guardar uma preferência por histórias de fantasia (TOLKIEN, 2017, p. 33, 37).
Apesar da falta de experiência crítica e de vocabulário típico de crianças dificultar a tarefa de distinguir fato de ficção, os contos de fada em nada têm a ver com a possibilidade de tal mundo, evento ou criatura fantástica realmente existir, mas com o desejo por sua existência, afirmou Tolkien. Em suas palavras, um poder essencial de Faërie “é o de tornar as visões da ‘fantasia’ imediatamente eficazes por meio da vontade” (TOLKIEN, 2017, p. 22, grifo próprio) ou “A fantasia, a criação ou o vislumbre de Outros mundos era o cerne do desejo” por esse lugar (TOLKIEN, 2017, p. 40, grifo próprio). Aliás, a própria escrita dos contos de fada pressupõe, para Tolkien, a consciência da diferença entre a realidade (denominada “mundo primário”) e a fantasia (“mundo secundário”), distinção fundamental até para sua devida apreciação enquanto literatura, desde que seu autor tenha sucesso em “subcriar” um universo consistente (TOLKIEN, 2017, p. 35-6).
Graças a essa série de características complexas, Tolkien conclui, primeiro, que crianças não gostam ou compreendem contos de fada naturalmente mais do que adultos. Em segundo lugar, que os contos de fadas merecem ser escritos e lidos por adultos como um ramo da literatura, pois experimentarão mais camadas das histórias do que as crianças são capazes de fazer. E contra as alegações que “infantilizam” adultos leitores do gênero, Tolkien apenas respondeu que não necessariamente o gosto por essas histórias é maior na infância e decresce no decorrer da vida, mas, pelo contrário, cresce com a idade (TOLKIEN, 2017, p. 33-4, 41, 44).
Se, por um lado, Tolkien refutaria as ideias de Benjamin sobre a relação direta entre crianças e os contos de fadas, por outro, talvez fizessem as pazes uma ao discutirem sobre a capacidade desse gênero literário de aconselhar seus leitores e ouvintes.
Conselhos fantásticos
Benjamin afirmou que o conto de fadas “[…] é ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa […] Esse conto sabia dar um bom conselho, quando ele era difícil de obter […]” (BENJAMIN, 1987, p. 215). Logo, tais histórias possuiriam uma finalidade pedagógica, empregando seus personagens e situações para aconselhar ouvintes e leitores até os dias de hoje. Além da ênfase na experiência humana coletiva, a narrativa benjaminiana, portanto, também se caracterizaria por uma função utilitária, sendo portadora de uma sabedoria aplicável proveniente da experiência. Sempre tendo como aconselhar seus ouvintes, as pessoas se conectariam com o narrador e suas histórias, criando o senso de universalidade característico do gênero.
Por sua vez, uma das questões norteadoras de Tolkien em seu ensaio é justamente a utilidade dos contos de fadas. Dentre suas funções maiores, uma delas compartilha esse mesmo sentido dado por Benjamin: o consolo oferecido pelas histórias de fantasia, segundo Tolkien. Imprecisamente acusada de “escapista”, essa literatura de fato oferece uma saída imaginativa para certos aspectos terríveis do dia a dia (como fome, pobreza e dor), mas vai além disso: para certas limitações e desejos humanos (como a vontade de explorar o oceano, voar como um pássaro ou ainda conversar com animais), a fantasia oferece certa dose de consolação, conjugada com um propósito pedagógico (TOLKIEN, 2017, p. 63-4). Por exemplo, na história “O rei sapo” (popularmente conhecida como “A princesa e o sapo”), Tolkien explicou como é importante que a premissa do casamento de um sapo com uma princesa humana seja absurda, primeiro para satisfazer o desejo pelo fantástico e segundo porque, do contrário, o conto não ensinaria a importância de manter promessas, mesmo às custas de consequências intoleráveis (TOLKIEN, 2017, p. 65).
Ainda por cima, os contos de fadas trariam o consolo diante da morte, comentando as consequências enfrentadas pelo homem na ânsia por escapar de sua condição, prolongar sua vida ou se tornar imortal. De acordo com Tolkien (2017, p. 65):
[Nas histórias de fadas], poucas lições são ensinadas mais claramente que o fardo desse tipo de imortalidade, ou melhor, vida serial infinita, para a qual o “fugitivo” gostaria de fugir. Pois o conto de fadas é especialmente eficaz para ensinar tais coisas, antigamente e ainda hoje.
Tolkien e Benjamin se expressaram de forma muito semelhante a respeito da perenidade dos contos de fadas como conselheiros. Essa finalidade pedagógica da fantasia aparece em camadas da própria obra ficcional do autor inglês, conectando-se ainda mais com as ideias de Benjamin. Tome-se como exemplo uma das observações mais intrigantes feitas sobre o enredo de O Senhor dos Anéis, no qual os personagens são geralmente salvos de situações-problema graças mesmo a conselhos e conhecimento das tradições do mundo em que habitam. Considerando o romance como uma das obras mais célebres do gênero de fantasia, tem-se aí um reforço do vínculo existente entre o conto de fadas e o narrador benjaminiano. Para estudiosos do tema, trata-se de uma das evidências de que não só a capacidade de aconselhar os ouvintes, mas que a própria narrativa de Benjamin continua viva na fantasia literária.
E aqui chegamos
Depois de comparar os textos em busca dos contos de fadas, notamos que boa parte das características distintivas do gênero chamado de narrativa, nos termos de Walter Benjamin, continua presente nas histórias de fantasia, de acordo com os parâmetros de J.R.R. Tolkien, até os dias de hoje. Como outros autores também afirmaram, certamente não se trata de uma linhagem tão direta e isenta de discordâncias, nem de qualificar Tolkien como um narrador nos moldes de Benjamin, mas as observações feitas até então conseguem demonstrar um alto grau de parentesco entre a narrativa de Benjamin e os contos de fadas de Tolkien. Na visão de ambos, os dois tipos de histórias, pelo menos, são eficazes para aconselhar ouvintes e leitores, que usufruem da sabedoria contida em seus personagens e enredos, mantidos vivos e em constante mudança pelos contadores de histórias e suas diversas fontes narrativas. O maior ponto divergente entre os dois autores, isso é fato, deu-se na associação automática e direta com o público leitor infantil, discussão na qual Tolkien não poupou argumentos para discordar.
Curiosamente, Benjamin não fez nenhuma afirmação categórica em seu texto sobre os contos de fadas serem a continuação daquele ofício do narrador, apesar de, como visto, inseri-los na tradição narrativa ainda existente. Dessa forma, o que outros autores concluíram foi que a narrativa, em vias de extinção na época do crítico alemão, de alguma forma continuou nos contos de fadas. Ao contrário do que temeu Benjamin, portanto, a narrativa sobreviveu século XX adentro e se popularizou como nunca no século XXI.
Pode-se argumentar que a crise trazida pela ascensão do romance e suas repercussões literárias podem ter até impactado o gênero narrativo, mas não o impediu de experimentar uma reanimação na fantasia moderna, gênero que estava começando a se desenvolver a passos largos na época da morte de Benjamin. Para outro filólogo britânico, Tom Shippey, o fantástico foi inclusive o modelo de literatura dominante ao longo do século XX, no qual a fantasia, e especialmente Tolkien, teve um papel de destaque por dialogar com muitas das questões dos anos 1900. Para marcar sua tese, Shippey reconheceu a relevância da obra ficcional de Tolkien ao discutir sua alcunha de “autor do século”.
Por fim, na seção 9 de seu texto, Benjamin afirmou: “A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação” (BENJAMIN, 1987, p. 205). O narrador imprimiria sua marca na história, como um artesão e sua criação, caracterizando a narrativa como um ofício manual. Nessa mesma direção, Tolkien admitiu que criar um mundo fantástico verossímil exige trabalho e reflexão – praticamente uma “destreza élfica”, nas palavras do autor. A relação complexa entre contos de fadas e narrativa não poderia, em conclusão, ser sintetizada de uma maneira mais eloquente (TOLKIEN, 2017, p.47, próprio):
Poucos tentam tarefa tão difícil. Mas, quando elas são tentadas e, em algum grau, executadas, temos uma rara realização da Arte: na verdade, a arte narrativa, a criação de histórias em seu modo primordial e mais potente”.
Esta é uma versão editada e reduzida do artigo completo que você encontra aqui: https://www.revistas.usp.br/revistaintelligere/article/view/194727
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. O Narrador: Considerações Sobre a Obra De Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 197-221.
TOLKIEN, J.R.R. Sobre contos de fadas. In: TOLKIEN, J.R.R. Árvore e folha. Trad. Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017, p. 1-79.
TOLKIEN, J.R.R. Mestre Giles d’Aldeia. Trad. Rosana Rios. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2021.
