Cristina Casagrande
Este artigo é a parte 2 de 3, numa versão reduzida e adaptada de um artigo presente no ebook “As Obras Póstumas de J.R.R. Tolkien: uma homenagem a Christopher”.
Leia a primeira parte reduzida aqui.
Atenção: este artigo, evidentemente, tem inúmeros spoilers.
As histórias tipicamente tolkienianas trazem diversos desafios, perdas e amarguras, mas, costumeiramente, dão espaço, especialmente em seus desfechos, para a superação e a esperança, com ecos de felicidade, ainda que não dispensem a melancolia. Praticamente, todas as narrativas de seu legendário são assim, exceto uma. Entre os grandes contos dos Dias Antigos, o mais dissonante deles é Os Filhos de Húrin, que traz uma tônica trágica do início ao fim.
O mortal Húrin, ao não querer delatar ao antigo vala Morgoth o lugar da Cidade Oculta (que mais tarde será revelada pela traição Maeglin, sobrinho do rei Turgon), acaba sofrendo o pior dos tormentos: ao lado de Morgoth, é obrigado a assistir à desgraça de toda a sua família, a morte da alegria da casa, sua filha de apenas três anos, o incesto (involuntário) entre seus outros dois filhos, culminando no suicídio de ambos quando tomam conhecimento do fato. Tudo isso se agrava por ele estar ciente da imensa infelicidade que sua esposa Morwen sofria.
Apesar de Húrin ser o observador da história, o protagonismo recai em Túrin, seu filho, que vai passar por muitos mais momentos de medo e dor em sua história, como matar seu melhor amigo sem querer ou sentir-se responsável pela morte de um elfo provocador. O foco da narrativa é tão central ao conto que, em O Silmarillion, o capítulo a ele correspondente recebe o título De Túrin Turambar. Sua força e seu orgulho são tamanhos que ele triunfará perante o poderoso e ardiloso Dragão Glaurung e será, ao mesmo tempo, derrotado por ele.
Não por acaso, Túrin se encaixa na definição do herói trágico da Poética, que se encontra na “situação intermediária, ou seja, aquela do homem que, sem se distinguir muito pela virtude ou pela justiça, chega à adversidade não por causa de sua maldade e de seu vício, mas por ter cometido algum erro” (Aristóteles, 2015, p. 113).
Por diversos momentos, Túrin mostra-se demasiadamente orgulhoso, prescindindo da ajuda e dos conselhos de seres acima dele, não acreditando no perdão de Thingol e Melian, a Maia, e, num primeiro momento, chegando até mesmo a rejeitar o pão élfico lembas enviado de Doriath a pedido da rainha. Assim, a falta de confiança e de humildade diante daqueles que o amavam e apresentavam uma sabedoria superior à dele pode tê-lo deixado mais suscetível às maldades de Melkor.
Segundo Aristóteles, “[…] a composição da mais bela tragédia não deve ser ‘simples’ mas ‘complexa’, e […] tal tragédia deve ser a mimese de fatos temerosos e dignos de compaixão” (2015, p. 111, grifo nosso). Assim, o pavor e a compaixão são marcas características de um texto trágico, e tais elementos não faltam em qualquer uma das versões de Os Filhos de Húrin.
É importante ressaltar a presença do páthos, a comoção emocional, mais comumente conhecida como catástrofe. Esse elemento é efetivo tanto do ponto de vista interno da narrativa, causando pavor e compaixão entre os personagens, quanto externo, causando comoção emocional nos leitores que acompanham a história.
A narrativa trágica, tão distinta das demais do legendário, tem ecos de suas leituras prévias. Segundo o biógrafo Humphrey Carpenter (2018, p. 137), em Os Filhos de Húrin:
[…] a luta do herói contra um grande dragão inevitavelmente sugere uma comparação com os feitos de Sigurd e Beowulf, enquanto o incesto involuntário com a irmã e o subsequente suicídio foram conscientemente inspirados na história de Kullervo no Kalevala. Porém, mais uma vez essas “influências” são apenas superficiais. “Os Filhos de Húrin” é uma fusão vigorosa de tradições islandesas e finlandesas, mas vai muito além, e atinge um grau de complexidade dramática e uma sutileza de caracterização raramente encontradas nas antigas lendas.
Essas influências apontadas por Carpenter são declaradas pelo próprio autor. “Há o Filhos de Húrin […] em que Túrin é o herói: uma figura a qual pode se dizer […] que deriva de elementos de Sigurd, o Volsung, de Édipo e do Kullervo finlandês” (Tolkien, 2010, p. 146). Nota-se que Tolkien, apesar de reconhecer as inspirações de sua composição literária, não acredita que isso deveria ser o mais importante para se saber sobre uma história. Como afirmou em seu ensaio “Sobre Estórias de Fadas”: “com relação às estórias de fadas, sinto que é mais interessante […] considerar o que elas são, o que elas se tornaram para nós e que valores os longos processos alquímicos do tempo produziram nelas” (Tolkien, 2020a, p. 32).
Vale destacar, contudo, que Tolkien escreveu anteriormente uma narrativa trágica fora do legendário, baseado no Kalevala finlandês. A História de Kullervo de Tolkien foi composta entre os anos de 1912 e 1914, sem ter sido finalizada. Segundo Verlyn Flieger, ela ganha relevância por ser preliminar a Os Filhos de Húrin, “pois seu personagem central é precursor evidente do protagonista daquela história, Túrin Turambar” (Tolkien, 2016, p. XVII).
Sobre sua composição, ela sofreu idas e vindas, mais ou menos como os demais grandes contos. Segundo Christopher Tolkien, a primeira versão de Os Filhos de Húrin, Turambar e o Foalókë “certamente já existia em 1919, se não antes” (Tolkien, 2020c, p. 16). Há ainda a versão em poema, utilizando a métrica aliterante do inglês antigo, ao estilo de Beowulf, que, conforme Christopher, “é de longe o mais longo de seus poemas nessa forma, chegando a bem mais de dois mil versos. No entanto, foi concebido numa escala tão grandiosa que a narrativa não havia chegado além do ataque do Dragão a Nargothrond” (Tolkien, 2020c, p. 247).
Segundo a nota do tradutor Ronald Kyrmse, na poesia aliterante, “cada verso se divide em duas metades (hemistíquios), sendo que, geralmente, o primeiro contém duas palavras semanticamente importantes que aliteram entre si […], e o segundo contém uma ou duas” (Tolkien, 2020c, p. 248), conforme se vê no trecho abaixo:
…] they came to a country
through flowery frith
they fared, and found
the leas and leasows
the teeming tilth
twixt hills and river.
in the fields were flung,
in the long grass lay
every tree there turned
and eyed them secretly,
of the nodding grasses;
kindly tended;
and fair acres
of folk empty
and the lawns of Narog,
by trees enfolded
The hoes unrecked
and fallen ladders
of the lush orchards;
its tangled head
and the ears listened
though noontide glowed
(Tolkien, 2020c, p. 249, negrito nosso)
O conto sobre os filhos de Húrin recebeu versões em Esboço da Mitologia, considerado o “Silmarillion” original, em 1926, o qual surgiu justamente com o intuito de explicar os versos aliterantes dessa narrativa trágica a R.W. Reynolds, antigo professor de Tolkien no colégio. Há também, como já mencionamos aqui, uma versão mais elaborada chamada Quenta Noldorinwa (1930), o “Quenta”, que, segundo Christopher, “apesar de estender em muito o texto anterior e ser escrito de forma mais bem acabada, meu pai ainda via o ‘Quenta’ como uma obra primariamente sumária, um epítome de concepções narrativas muito mais ricas” (Tolkien, 2020c, p. 251–252).
Depois do Quenta Noldorinwa, ao final da década de 1930, Tolkien fez uma nova versão, “trazendo por fim o título de ‘Quenta Silmarillion, A História das Silmarilli’. Esse era, ou viria a ser, muito mais longo que o ‘Quenta Noldorinwa’ precedente, mas a concepção da obra como essencialmente um sumário de mitos e lendas […] de modo nenhum se perdeu” (Tolkien, 2020c, p. 252). O autor estava trabalhando justamente na história de Os Filhos de Húrin, quando teve de interromper as narrativas dos Dias Antigos, mais tarde chamados de Primeira Era, para se dedicar à composição de O Senhor dos Anéis.
Após o término da composição da saga de Frodo, Tolkien novamente se voltou às narrativas dos Dias Antigos. Recolhendo todos os escritos do conto compostos pelo pai, especialmente com base nessa versão final, Christopher editou uma publicação única de Os Filhos de Húrin em 2007, organizando uma narração consistente e o mais completa possível, evitando ao máximo comprometer a autenticidade dos escritos do autor:
Os Filhos de Húrin, em sua forma mais recente, é a principal ficção narrativa da Terra-média após a conclusão de O Senhor dos Anéis. A vida e a morte de Túrin são retratadas com um vigor convincente e uma proximidade que dificilmente se encontram em outros locais entre os povos da Terra-média. Por esse motivo tentei neste livro, após longo estudo dos manuscritos, formar um texto que proporcione uma narrativa contínua do começo ao fim, sem a introdução de nenhum elemento que não seja de concepção autêntica. (Tolkien, 2020c, p. 257, grifo nosso)
A história de Túrin e a de seu primo Tuor se ligam justamente pelos descaminhos de seus pais, os irmãos Húrin e Huor, com seus destinos quase simetricamente distintos. O primeiro, por contar com suas próprias forças, prescindindo em grande parte do auxílio e da sabedoria dos Ainur, sentiu em si mesmo e em seus descendentes os malefícios de Morgoth; o segundo, por contar com a providência divina, representada pelos comandos de Ulmo, teve seu desfecho bem-sucedido, apesar das perdas no percurso, sendo Earëndil, seu filho, o herói do Quenta Silmarillion.
Confira o artigo completo “Os Grandes Contos: Batalhas, Tragédia e Eucatástrofe” no e-book “As Obras Póstumas de J.R.R. Tolkien: uma homenagem a Christopher”. Ou baixe ele de forma avulsa aqui.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015.
CARPENTER, H. J.R.R. Tolkien: Uma Biografia. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018.
TOLKIEN, J.R.R. Árvore e Folha. Tradução de Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020a.
TOLKIEN, J.R.R. Contos Inacabados. Edição de C. Tolkien. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020b.
TOLKIEN, J.R.R. Os Filhos de Húrin. Edição de C. Tolkien. Tradução de Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020c.
TOLKIEN, J.R.R. A História de Kullervo. Edição de Verlyn Flieger. Tradução de Ronald Kyrmse. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.
TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. Tradução de Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019c.
TOLKIEN, J.R.R; CARPENTER, Humphrey; TOLKIEN, Christopher (ed.). As Cartas de J.R.R. Tolkien. Tradução de Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte&Letra, 2010.

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