Ronald Kyrmse fala sobre a nova tradução de “O Senhor dos Anéis”

Por Cristina Casagrande

Neste ano, o lançamento da primeira edição dos dois primeiros volumes de O Senhor dos Anéis completa 65 anos — A Sociedade do Anel, em julho, e As Duas Torres, em novembro. Justamente no próximo mês, a editora HaperCollins Brasil (HCB) traz a sua versão de O Senhor dos Anéis, em três volumes de uma só vez, vendidos separadamente ou juntos em um box.

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Box de O Senhor dos Anéis pela HarperCollins Brasil

O opus magnum de J.R.R. Tolkien havia recebido apenas uma tradução oficial em português no Brasil, de Lenita Rimoli , na prosa, e Almiro Pisetta, no verso, pela Martins Fontes. A HarperCollins, desta vez, decidiu apostar em um único tradutor: Ronald Kyrmse, que já vinha traduzindo os livros do Professor nos últimos anos para as editoras Martins Fontes. Kyrmse já traduziu Beren e Lúthien, no ano passado, para a HCB, e, também em 2018, teve duas traduções suas republicadas pela nova editora: J.R.R. Tolkien: uma biografia, de Humphrey Carpenter, e O dom da amizade, de Colin Duriez, que fala da amizade de Tolkien e Lewis. 

Confira o bate-papo que tivemos com o novo tradutor de O Senhor dos Anéis no Brasil.

Conte-nos como você, sendo engenheiro de formação, foi convidado a ser tradutor da biografia de J.R.R. Tolkien para a Martins Fontes em 1992.

Ronald Kyrmse


No longínquo ano de 1989 eu havia ajudado a formar o primeiro grupo organizado de apreciadores das obras de Tolkien no Brasil — a Heren Hyarmeno (Ordem do Sul). A notícia sobre o grupo chegou aos ouvidos da Martins Fontes, e me perguntaram se eu conheceria alguém capaz e disposto a traduzir a Biografia de Humphrey Carpenter. Topei a tarefa… e as traduções das obras tolkienianas vieram depois.

Como foi a sua trajetória na Martins Fontes e para outras editoras, na época, traduzindo textos de e sobre Tolkien?

Após a Biografia, atuei dando consultoria à tradução d’O Senhor dos Anéis. Depois a MF publicou O Hobbit e O Silmarillion, e, por fim, resolveu confiar-me uma obra tolkieniana. Minha primeira tradução para essa editora foram os Contos Inacabados. Com outras editoras, meu trabalho não envolveu a obra tolkieniana original, e sim textos derivados — sobre Tolkien.

Como foi o processo de escrever o seu livro Explicando Tolkien?

Minha mulher — já consciente de que eu não iria parar de me ocupar da obra de Tolkien — perguntou-me um dia: “Você não acha que você mesmo poderia escrever um livro?” Como eu tinha diversos ensaios prontos e mais muitas ideias na cabeça, entreguei-me ao labor de coletar, refinar… e finalmente produzir meu livrinho. Na época, os filmes de Peter Jackson estavam chegando às telas, e quando perguntei ao Alexandre Martins Fontes se ele editaria um livro meu ele falou “Claro. Mas tem que ser sobre Tolkien.” Isso, sem ter visto o texto!

Existe chances de sair um Traduzindo Tolkien?

É claro que a probabilidade existe, e acho que há muitos pontos interessantes que poderiam cativar os possíveis leitores. Não sei se bastariam para um livro… talvez para uma coleção de ensaios ou artigos. Mas por enquanto me faltam o tempo e a disposição para organizar isso. Quem sabe quando eu me aposentar…

Como a HCB chegou até você, com a proposta de traduzir as obras de Tolkien para ela?

Certo dia fui convidado para um café na Vila Madalena pelo Samuel Coto, o editor responsável por essa linha. Fiquei — confesso! — um pouco apreensivo, pois a HarperCollins é uma multinacional conhecidíssima, e me pareceu que meu nível de responsabilidade passaria a ser muito maior. Não que eu já não tenha trabalhado para multinacionais (em condições bem diferentes!). Mas ao ver o entusiasmo e a sinceridade com que Sam (assim o chamamos) abordava o assunto, fui contagiado e topei. Acho que sem nem pensar direito, de pura animação.

Dos textos traduzidos, qual você destacaria especialmente e por quê?

Sempre gostei dos Contos Inacabados, por sua característica de dar informações adicionais — e valiosíssimas – sobre matérias já tratadas n’O Senhor dos Anéis e n’O Silmarillion. Mas tenho uma predileção por Os Filhos de Húrin devido à profunda dramaticidade da história. As obras que têm versos aliterantes foram desafios à parte.

Como foi traduzir O Senhor dos Anéis? Houve muita dificuldade? Quais os principais destaques nesse processo de tradução?

Acho que ninguém, em sã consciência e com sinceridade, poderia dizer que traduzir O Senhor dos Anéis é tarefa fácil. O livro tem mil páginas e compreende meio milhão de palavras, cada uma das quais precisa ser pesada e decidida. Tive enorme ajuda do conselho de tradução da HCB, que inclui (além do próprio Sam) os muito competentes e eruditos Reinaldo José Lopes e Gabriel Brum. Debatemo-nos mais com a tradução de nomes próprios. Um desafio pessoal, para mim, foi (tentar) reproduzir os vários registros de fala, ou níveis de complexidade dos discursos das diferentes culturas. O diálogo de um hobbit tem de ser diferente de um nobre gondoriano — e não só no uso dos pronomes.

O que o leitor brasileiro de J.R.R. Tolkien vai encontrar de diferente nesta edição de O Senhor dos Anéis pela HCB, com tradução sua?

Um cuidado muito grande, exercido por alguém que — além de apreciar imensamente a obra do autor — tomou por encargo transmitir ao nosso leitor um texto maximamente semelhante ao que o autor teria produzido caso escrevesse em português. Haverá pontos de discórdia — de polêmica até! — mas me orgulho do cuidado e do empenho que investi no trabalho.

Conte a sua rotina de trabalho com tradução. Você trabalha em sua biblioteca? Usa dicionários? Gosta de imprimir o texto?

Trabalho a maior parte do tempo encerrado em minha biblioteca, mas posso carregar o texto comigo — até em viagens de férias — e assim elaborar a tradução. Especificamente no caso dos poemas, meu método consiste em imprimir o texto com margem direita bem larga e nela rabiscar as possíveis alternativas até chegar a uma boa solução, que, mais tarde (com o livro já publicado), será motivo de arrependimento, porque terei encontrado outra melhor. No caso de textos em prosa, dificilmente trabalho no papel, só na tela. Uso, sim, os dicionários para me sugerirem traduções alternativas do mesmo termo, ou rimas. Dicionários de ideias afins — ou analógicos, ou tesauros — são valiosos.

“O diálogo de um hobbit tem de ser diferente de um nobre gondoriano — e não só no uso dos pronomes.”

Qual a sua metodologia de tradução? Existe um modo de traduzir que você considera mais apropriado para os leitores de Tolkien?

É ir lendo e escrevendo em português o que o autor está dizendo. Dito assim parece simples, mas envolve uma ginástica mental bastante complexa. E as frequentes consultas a dicionários, outros textos, outros tradutores de que falei. Não é uma coisa muito metódica, pelos menos não em nível consciente.

Nesse processo de tradução de O Senhor dos Anéis, você teve uma nova descoberta sobre o livro?

Cada página relida foi uma redescoberta. Não só pela leitura em si, mas pelo aprofundamento que se torna necessário. O que o autor quis dizer aqui? Como isso se relaciona com outras obras? E com o que veio antes e virá depois, na mesma obra? De nenhuma forma pode-se perder de vista essa coerência interna e externa. E essa atenção constante proporciona um prazer bem diverso da “simplesmente” leitura.

Você costuma comparar as suas traduções com as demais? (Em português ou outras línguas)

Nunca faço esse tipo de comparação durante o trabalho de tradução. Tomo muito cuidado para não me deixar influenciar por outros tradutores. Depois que me decidi por traduzir de uma certa forma, aí sim: digo a mim mesmo “vamos ver como Fulana ou Beltrano resolveu esse mesmo problema”. Mas não mudo minha versão só por causa disso. É claro que tenho na memória as soluções que foram encontradas por outros, e em muitos casos nem há como escapar delas. Mas comparações de trechos são sempre a posteriori.

Qual é o relacionamento com a equipe editorial da HCB?

O relacionamento é muito bom, e durante o processo de tradução foi constante. Quase todos os dias havia algo a discutir, e nossas respostas — de parte a parte — foram bastante prontas. Trabalhar assim é um prazer.

Como funciona a interação com o Conselho de Tradutores?

Nossos contatos durante as diversas traduções acontecem graças à tecnologia. Temos um grupo de WhatsApp e uma página no Trello, onde cada um vai postando suas dúvidas, propostas, respostas… É um processo bem igualitário. Não acontece que o “dono” da tradução em pauta tente impor sua opinião aos demais. O enriquecedor é justamente essa variedade de conhecimentos, experiências, pontos de vista, e nascem daí — estou convencido — traduções muito caprichadas.

Diz-se que vocês são chamados de istari lá dentro, é assim mesmo? Você é considerado o Gandalf da turma?

Nosso grupo WhatsApp é o Conselho dos istari. Mas não vejo nisso nenhum efeito de arrogância. Assim como os istari da subcriação tolkieniana, estamos ali porque nos foram designadas missões a cumprir. Se fazem um paralelo entre mim e Gandalf, deve ser por dois motivos: porque estou nessa Estrada há mais tempo, e pela cor dos cabelos (e da barba, se eu a deixasse crescer).

Como tem sido a interação com os fãs de Tolkien nesse novo momento editorial de Tolkien no Brasil?

Palestra com Ronald Kyrmse na USP

Claro que essa interação é sempre muito variada. Há os que conhecem apenas os filmes, ou enfatizam o RPG, há aqueles que se aprofundam no cânone dos livros, e assim por diante. Com cada subgrupo o relacionamento é diferente. Às vezes, há que investir muita paciência e explicar tudo desde o começo, em outros casos somos surpreendidos por revelações que os tolkienistas nos fazem de suas próprias visões. É um enriquecimento e uma alegria enorme para alguém como eu, que há uns trinta anos achava que ninguém mais ouvira falar do autor no Brasil e agora se depara com tantas pesquisas profundas — inclusive a sua, Cristina.

Obrigada.

Já sabemos que todos os volumes do The History of Middle-earth serão traduzidos aqui no Brasil. Você tem algum volume da sua preferência?

Tenho uma pequena preferência marginal por The Book of Lost Tales, mas isso poderá mudar de hoje para amanhã. É uma preferência pela leitura, veja bem: não posso me comprometer com a tradução!

No ano que vem serão reeditadas e republicadas as suas traduções de Os Filhos de Húrin e Contos Inacabados. Quais serão os próximos passos?

Isso depende muito mais da HarperCollins que de mim. Mas eu gostaria — evidente! — de ver traduzida toda a obra tolkieniana, mesmo sabendo que o trabalho envolvido será muito intenso.

Você tem ajudado no projeto gráfico dos livros, com explicações sobre as runas e outras consultorias? Como tem sido?

Tenho uma admiração enorme pelo e projeto gráfico, especialmente pelo excelente trabalho que o Alexandre Azevedo vem fazendo para a HarperCollins. Mas declaro-me incompetente para o design. Foi muito interessante detectar os textos em tengwar e runas que aparecem nos livros — especialmente nas páginas de rosto — decifrá-las (obtendo assim um texto em inglês), traduzir e finalmente transcrever o texto em português para o mesmo sistema de escrita que aparece no original. Achamos que essa sequência de “decifração — tradução — retranscrição” confere às versões brasileiras uma profundidade adicional, dando ao leitor algo mais para descobrir, analogamente ao que acontece ao leitor anglófono.

Você está contente com o resultado dos livros publicados pela HCB? O que, na sua opinião, difere dos demais já publicados anteriormente?

Dificilmente poderia estar mais contente, já que as edições estão superando as expectativas razoáveis e ganham facilmente na comparação com publicações anteriores. Eu me sentia muito bem trabalhando com a Martins Fontes — tínhamos uma relação de muita confiança —, mas é preciso reconhecer que as novas edições ganham em termos de forma e de conteúdo. Sobre as traduções — minhas e dos colegas — já tive oportunidade de falar. Quanto à apresentação, ela é testemunho da seriedade e do empenho desse investimento editorial.

Obrigada por conceder uma entrevista aqui no Tolkienista!

Muito obrigado pela chance de falar novamente sobre minha paixão pela obra tolkieniana!


Cristina Casagrande é jornalista e pesquisadora em literatura tolkieniana. Ainda espera passar uma tarde no Salão de Fogo e encontrar trechos esquecidos do Livro Vermelho do Marco Ocidental. 

8 thoughts on “Ronald Kyrmse fala sobre a nova tradução de “O Senhor dos Anéis”

  1. Estou lendo a nova tradução d’O Senhor dos Anéis. Estou achando incrível. A diferença entre os diálogos das raças ficou bem nítido, e achei isso bem interessante, e ao ler essa entrevista, deu pra perceber o cuidado que tiveram em relação a isso. Parabéns pelo excelente trabalho!

  2. Adquiri recentemente, e até então tenho gostado. A única ressalva é a mudança de Orcs para ORQUES, que a meu ver não deveria ter acontecido – Parece-me que tiveram como parâmetro a palavra ‘órquico’ mas como sendo Orc um nome próprio não haveria necessidade de modificação.

    1. Em português, o plural de anão é anões ou anãos. Isso em qualquer dicionário, basta você checar a informação.
      Além disso, a equipe de tradução optou por usar o termo “anãos”, que causa estranhamento, para ser similar com o estranhamento no original, que coloca o plural de dwarf como dwarves e não dwarfs, de propósito e não por erro, é claro.

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