Texto de Peter Bergström, publicado originalmente em 21 de agosto de 2019 no site da Biblioteca Real da Suécia.
Traduzido por Eduardo Boheme e republicado aqui com autorização do autor.
É certo que esse título é bem convidativo à leitura, não? Eu lhes apresento Tolkien, satanismo e o controverso Åke Ohlmarks.
Livros controversos
Bem-vindos à primeira parte da série sobre livros controversos da Biblioteca Real, em que cada parte tratará de um novo livro. Vocês terão acesso a diferentes obras, que, por motivos diversos, foram consideradas controversas, sejam livros mais pesados ou mais leves. Nesta primeira postagem, um homem que sempre acabava em polêmicas, um tipo letrado, mas amante de conflitos.
Åke Ohlmarks
Åke Ohlmarks — já na sua época uma pessoa conhecida e polêmica na Suécia — foi ativo como historiador da religião, mas atualmente é mais lembrado por suas traduções dos livros de J.R.R. Tolkien, traduções essas que são tanto amadas quanto odiadas.1
Suas traduções eram de natureza bastante livre, e ele era conhecido por retocar o texto original, algo que, de início, rendeu-lhe muitos elogios, mas muitas críticas posteriormente, e fazia com que o processo de tradução fosse pouco ágil.
Como historiador da religião, Ohlmarks trabalhou como palestrante em universidades tanto da Alemanha quanto da Islândia. Polêmicas em torno de sua tese de doutorado — em que ele interpretava Heimdal como um deus do sol — interromperam sua carreira acadêmica. Depois disso, Ohlmarks trabalhou por alguns anos como roteirista e diretor na produtora sueca Europafilm, experiência retratada no livro Drömfabriken: äventyr i filmens värld (1970) [Fábrica de sonhos: uma aventura no mundo dos filmes]. Acima de tudo, porém, Ohlmarks escreveu livros sobre todo tipo de assunto: história da religião, diários de viagem, palavras-cruzadas, espíritos, divinação, THX,2 memórias e romances, só para citar alguns.
Ohlmarks e Tolkien

Ohlmarks foi muito prolífico, e quem procurar por seu nome no catálogo online Libris, encontrará muitas centenas de resultados, tanto como escritor quanto como tradutor. Como logo veremos, ele não tinha nenhum receio de entrar em conflitos. Vamos voltar ao mundo de Tolkien e àquilo que, pouco a pouco, se tornaria a última grande batalha de Ohlmarks.
O próprio Tolkien, conhecido por querer ter controle total sobre sua produção, não gostou muito das liberdades tomadas nas traduções suecas, e um desentendimento surgiu após algum tempo. Depois da morte de Tolkien, em 1973, as coisas começaram a fugir do controle, e Ohlmarks foi terminantemente proibido de traduzir o livro póstumo O Silmarillion. De acordo com Ohlmarks, essa ruptura veio de uma desavença com Christopher Tolkien. Uma reunião entre eles, na véspera do Ano Novo em 1974, culminou num desastroso mal-entendido. Outra versão da história diz que o sueco simplesmente invadiu a casa de Tolkien para roubar ou dar uma espiada no manuscrito do livro. Eu certamente não encontrei nenhuma evidência que corrobore a segunda versão, e com certeza ela pode ser dispensada como parte das crenças que rodeiam Ohlmarks.
Em seu livro Tolkiens arv [O legado de Tolkien], de 1978, Ohlmarks descreve Christopher da seguinte maneira: “Contudo, o mais estranho eram seus olhos azul-cinzentos salpicados de castanho, grandes e praticamente mortos”. Tal amizade não pode ser descrita como particularmente calorosa, nem mesmo morna. Seja lá como se deu essa divergência, a animosidade entre ele e a família cresceu gradualmente, até culminar no livro de 1982 chamado Tolkien och den svarta magin [Tolkien e a magia negra].
“Pai, pequei contra os céus e contra ti… Pai, perdoa-me, pois eu não sabia o que estava fazendo… muitas palavras-chave bíblicas vêm a mim agora que eu reflito sobre as décadas que desperdicei traduzindo o lixo de Tolkien.”
Tolkien e a magia negra
Sim, a frase acima está no livro, e a ruptura com Tolkien é completa. Um dos capítulos se chama “Tolkien, o velho meio imbecil”, e a coisa fica um pouco pior. Ohlmarks faz acusações de satanismo e sacrifícios, e traça comparações entre a Ku Klux Klan e as Sociedades de Tolkien da Suécia.3
“Os satanistas de Tolkien não dirigem carros. Eles, ou muitos deles, estão sempre bêbados e não vão para a cadeia por nada neste mundo.”

Antes de o livro ser publicado no verão de 1982, Åke Ohlmarks fez uma campanha nos jornais e na rádio contra a família Tolkien e as Sociedades de Tolkien. Um exemplo, publicado no jornal Expressen, pode ser visto abaixo. Antes dessa divergência, Ohlmarks era na verdade um grande promotor de Tolkien, e escreveu, entre outros, o livro “Sagan om Tolkien” [A saga de Tolkien] (1972), que provavelmente foi uma das primeiras biografias do escritor inglês.4 No livro, ele ainda se mostra muito positivo em relação a Tolkien e escreve, entre outras coisas, sobre “o criador de alguns dos poemas mais notáveis do século e da Bíblia da jovem geração hippie”. Quem olhar para a foto da capa do livro verá também que ela é idêntica à foto em Tolkien e a Magia Negra, excetuando-se o diabo à direita de Tolkien (assinado, a propósito, por Hans Arnold). Em 1976, ele publicou também um vocabulário do mundo de Tolkien, então percebe-se que o percurso foi abruptamente da admiração ao ódio.

“A polícia precisa deter as Sociedades de Tolkien e tomar uma atitude contra suas orgias e magia negra!”
Desfecho
O fato de Ohlmarks em geral evitar citar nomes no seu escandaloso livro talvez explique por que ninguém o processou por difamação. Dois anos depois da publicação, o escritor faleceu, e a Suécia perdeu uma de suas figuras vibrantes. Ainda hoje ele consegue mexer com as pessoas, especialmente por suas traduções da obra de Tolkien. Seus outros feitos estão, de modo geral, esquecidos. Para os que quiserem investigar mais fundo, sua obra pode ser encontrada nos repositórios da Biblioteca Real da Suécia.
Notas do tradutor
1. Entre as obras de Tolkien traduzidas por Ohlmarks estão Härskarringen (The Lord of the Rings), Träd och Blad (Tree and Leaf) e Breven från Jultomten (Father Christmas Letters).
A primeira tradução de um livro de Tolkien foi para o sueco. Trata-se de O Hobbit, traduzido por Tore Zetterholm e ilustrado por seu irmão Torbjörn, em 1947. A tradução desagradou Tolkien pela mudança do título, que ficou, em sueco, Hompen.
Apesar do descontentamento de Tolkien com as traduções suecas, pode-se dizer que elas foram importantes na medida em que levaram (junto com a tradução holandesa) à criação do importante guia de nomes em O Senhor dos Anéis.
A propósito, a tradução de palavras como goblin em edições suecas deixaria algumas pessoas horrorizadas.
2. Substância retirada do timo de bezerros, desenvolvida por um veterinário sueco.
3. A Suécia teve a primeira Sociedade de Tolkien da Europa, fundada em 1968 e hoje extinta. Ohlmarks se refere às Sociedades de Tolkien no plural porque, entre 1972 e 1973, duas delas foram fundadas na Suécia: a Forodrim, em Estocolmo, e a Midgårds Fylking, em Uppsala. Da Forodrim surgiram também as sociedades Angmar, em Malmö e Mithlond, em Gotemburgo. Um teste de conhecimento faz parte do critério de admissão de todas elas e, no caso da Midgårds Fylking, a entrada de um membro em geral só se dá por indicação de outro.
4. Em sua introdução à Härskarringen (The Lord of the Rings), Ohlmarks também incluiu dados supostamente biográficos que deixaram Tolkien furioso. As cartas de número 228 e 229 (The Letters of J.R.R. Tolkien) contêm grande parte dos comentários — indignados — de Tolkien. É ali que o autor disse a famosa frase “Ambos os anéis eram redondos, e aí termina a semelhança”, em referência ao Anel dos Nibelungos, de Wagner e o Um Anel.

Que história interesante! Eu conhecia as polemicas relacionadas às traduções do Ohlamarks, bem como os livros iniciais dele sobre Tolkien. Mas desconhecia totalmente esse racha posterior e esse livro “satânico”. Mais um capítulo interessantíssimo da intricada historias das publicações tolkienistas pelo mundo! Obrigado por traduzir e nos disponibilizar!!
Muito obrigada pela visita, Viccenzo! Abração!
Republicou isto em REBLOGADOR.
Muito bom!
Uau! Tolkien satanista… é muito “prolífico” mesmo!