Explicação incompleta, ciência complexa
por Eduardo Boheme
Quando eu era professor de inglês, precisava ensinar as profissões para os alunos e, ocasionalmente, eu os fazia jogar uma adaptação de Who am I?, um jogo em que se cola na testa um post-it com algo escrito (nesse caso, uma profissão), e a pessoa com o post-it deve fazer perguntas para descobrir o que está escrito. As respostas só podem ser “sim” ou “não”.
Eu achava muito divertido: post-its desgrudando e colorindo o chão, “teacher, how do you say escriturário in English?”, “teacher, how do you say plataforma petrolífera?”… Quando não temos a resposta pronta, é aí que mais aprendemos!
Nunca vi, porém, qualquer aluno escrever “Filólogo” no post-it. Mas sei que, se fosse eu a adivinhar a profissão, estaria em maus lençóis, porque um filólogo trabalha com muitas coisas e canaliza esforços de diversas áreas.
“Eu trabalho com história?”
“Eu trabalho com línguas?”
“Eu trabalho com artes?”
“Eu sou um tipo de cientista?”
Para todas essas perguntas, em maior ou menor medida, a resposta é “sim”.
Etimologicamente, “filologia” significava coisas como “amor à palavra” ou “amor ao aprendizado”. Lindo, mas bastante obscuro. Talvez pudéssemos defini-la assim:

(BL Harley MS 2685, f.39r)
“A filologia é a ciência que tenta reconstruir idiomas pela comparação entre suas línguas aparentadas (filologia comparada) ou reconstruir uma forma supostamente autoral de determinado texto (crítica textual)”.
Fiquemos com essa explicação mesmo sabendo que toda definição de “filologia” que caiba em menos de uma página parece desconcertantemente incompleta.
Tolkien era, então, uma espécie de arqueólogo de idiomas, o que explica seu magistral trabalho no Oxford English Dictionary. A escavação poderia se dar de frente para trás, como quando tomamos a palavra fairy (fada) e rastreamos seu passado, retrocedendo filologicamente e estabelecendo suas relações com a palavra latina fāta, ligada à palavra portuguesa fado, à inglesa fate, à sueca fe, e assim por diante. Temos, ao final, uma constelação de palavras cujos sentidos e formas se afastam ou se aproximam, mas que são parte de uma mesma família. No caso de Tolkien, ele também às vezes fazia o caminho inverso, trabalhando de trás para frente com fins literários, como quando tomou a extinta palavra eorcnanstan (‘pedra preciosa’ em inglês antigo), e fez com que ela evoluísse para Arkenstone. Uma verdadeira ressureição subcriativo-filológica!

Relacionar a filologia à ciência arqueológica é lícito, e o próprio Tolkien o fez na carta 209 (Carpenter, 2006: 270), dizendo que um pobre filólogo precisaria da ajuda de um arqueólogo para dizer se a relação filológica entre a palavra harpa e a palavra latina corbis (“cesta”) é plausível. Aliás, Tolkien colaborou ele mesmo com um achado arqueológico.
Entre 1928 e 1929, escavações no Lydney Park revelaram um templo romano que, segundo as inscrições, era dedicado ao deus Nodens. A pedido do arqueólogo R.E.M Wheeler, que conduziu as escavações com sua esposa Tessa Wheeler, Tolkien investigou o nome da tal divindade no artigo ‘The Name Nodens’.

(McIlwaine, 2018: 233)
Então, se ofício do filólogo começa na língua, ele acaba ajudando a desvelar culturas . Abra aleatoriamente os comentários de Tolkien a Beowulf, e suas chances são altíssimas de encontrar uma explicação que decola da análise de uma única palavra e aterrissa em ilações sobre a sociedade e a cultura anglo-saxônica. São suposições, sim, mas sempre fundadas na típica erudição de Tolkien, que sabia da responsabilidade que é tirar conclusões filológicas.
Foi com essa responsabilidade em mente que Tolkien deu um educado puxão de orelha no ensaísta americano Logan Pearsall Smith.
Em seu livro Words and Idioms, apesar de Smith dizer não ser filólogo, a verdade é que ele posa de filólogo e tira umas conclusões que, para Tolkien, são equivocadas. Nosso filólogo preferido dá uma atalhada (Tolkien, 1925: 59):
um homem que nos diz os nomes das plantas ao caminharmos com ele não pode se eximir de toda a responsabilidade por nos dar informações erradas só porque diz não ser botânico.
Mas Tolkien era mesmo filólogo… Em uma carta de 1958 a seu filho Christopher, que havia dado uma palestra sobre heróis de lendas nórdicas, Tolkien (citado por Carpenter 2006: 264) diz que, ao ouvi-lo, de súbito
percebi que sou um filólogo puro. Eu gosto de história e me comovo com ela, mas seus melhores momentos são, para mim, aqueles em que ela lança luz sobre palavras e nomes!
Em outro lugar, no discurso de despedida à Universidade de Oxford (Tolkien, 2006: 225), seu elogio ao próprio ofício se dá na categórica afirmação de que
A filologia é a fundação das letras humanas.
Muita coisa a ver com história, com linguística, mas frequentemente nos braços de outras áreas de estudo… Poder-se-ia perguntar: “isso, afinal, é filologia?”. Neste caso, a resposta não poderia ser “sim” ou “não”, como num jogo de adivinhas. Ela seria, necessariamente, “filologia também é isso”.
Obras citadas
Carpenter, Humphrey (ed.). 2006. The Letters of J.R.R. Tolkien (London: HarperCollins)
McIlwaine, Catherine. 2018. Tolkien: Maker of Middle-earth (Oxford: Bodleian Library)
Tolkien, J.R.R. 1925. ‘Philology: General Works’, in The Year’s Work in English Studies, ed. by F.S. Boas and C.H. Herford, 6 (Oxford: at the University Press)
Tolkien, J.R.R. 2006. The Monsters and the Critics and Other Essays (London: HarperCollins)

Eduardo Boheme é mestre em Tradução Literária pelo Trinity College da Universidade de Dublin.
Parabéns Eduardo! Nunca vi ninguém nos grupos e páginas de Tolkien escrever sobre Filologia, obrigado.
Seu texto foi bem fluido e tranquilo de ler.
Salve-me engano a descrição da palavra “fairy” Tolkien faz no seu ensaio Sobre contos de fadas e nas notas no livro Ferreiro de Bosque grande.
Obrigado pela leitura, Patrick! 😀
Você tem razão: ensaio On Fairy-stories, Tolkien aponta para descrições do que ele entende por “fada” e, embora a filologia esteja na espinha dorsal do ensaio (especialmente no tom amargo com o qual Tolkien se vê obrigado a reconhecer o ‘destronamento’ de sua profissão), ele não se perde tanto em divagações etimológicas. Essa explicação está presente nas notas da Verlyn Flieger e do Douglas Anderson à versão estendida do ensaio. Ali sim eles investigam com certa minúcia as origens da palavra ‘fairy’. Eu tenho para mim que essa nota em particular é uma revisitação da própria Verlyn Flieger às notas que, como você mencionou, ela incluiu na edição ampliada de Ferreiro de Bosque Grande, disponível no Brasil na tradução do Mestre Ronald.
Parabéns e obrigado por esclarecer de modo acessível o que é essa arte, ciência e ofício – a Filologia – a que Tolkien dedicou sua vida, tanto profissional quanto pessoal-subcriativa. Os filólogos amadores sabemos quão difícil é explicar nossa paixão, e quão profunda é essa ocupação.
Um grande abraço!
Obrigado pelas suas palavras sempre gentis e sua grande erudição, Mestre Ronald!