Onward e a defesa dos contos de fada de Tolkien

Por Fernanda Correia

É conhecida entre os fãs de J.R.R. Tolkien a aversão do autor às animações produzidas pelos estúdios Walt Disney. Em uma carta de 1937, quando sua editora negociava a publicação de O Hobbit nos Estados Unidos, Tolkien deixa claro seu desgosto pelos traços infantilizados das animações:

Pode ser conveniente, ao invés de perder o interesse norte-americano, deixar que os norte-americanos façam o que lhes parece bom — contanto que fosse possível (gostaria de acrescentar) vetar qualquer coisa dos estúdios Disney ou influenciada por eles (por cujas todas as obras possuo uma sincera aversão).

(CARPENTER e TOLKIEN, 2006, p. 23).

Onward | Disney Movies

Por isso, pedimos licença ao Professor para observarmos a animação dos estúdios Disney-Pixar, Onward (Dois irmãos Uma jornada fantástica), com base em um de seus mais famosos ensaios, o “Sobre Estórias de fadas”, publicado recentemente em nova tradução no livro Árvore e Folha. Lançado no início de 2020, mas prejudicado pela pandemia, o filme ficou pouco tempo em cartaz e está disponível desde 10 de maio on demand no serviço de streaming da Amazon, o Amazon Prime Video.

O resumo mais simples da história explica: dois irmãos elfos embarcam em uma aventura para trazer o pai deles de volta por um dia. Imediatamente, o fã das obras de Tolkien — ou alguém minimamente familiarizado com seus textos — vai reconhecer alguns elementos como as criaturas fantásticas e a jornada de transformação. Assim como os geeks vão se reconhecer nas referências de RPG, nas falas do irmão mais velho e na própria estrutura da narrativa.

Google+ | Gandalf, O hobbit, Tolkien
Gandalf , por Ulla Thynell

Mas a principal questão que nos remete aos textos de Tolkien está na premissa da história. Como dito anteriormente, os personagens principais são elfos. Eles convivem harmoniosamente com mantícoras, centauros, fadas e outros personagens fantásticos, mas não há mágica entre eles. No prólogo, é revelado que a magia existia e diversos desses seres eram capazes de produzir encantamentos e dominar os elementos, mas eles deixam claro que essa arte era trabalhosa e exigia dedicação. Por isso, aos poucos, a magia foi sendo substituída pela tecnologia, não precisando mais do mago para acender o fogo e iluminar — já que agora há luz elétrica — ou de asas, pois, para se mover, eles se utilizam de veículos motores.

Aqui vemos, em certa medida, outro ponto comentado por Tolkien, em seu ensaio “Sobre Estórias de Fadas”, neste caso, a respeito da racionalização dos contos de fadas. Na animação, elas foram re-racionalizadas e ao invés de ainda mais fantásticas e misteriosas, tornaram-se comuns e equivalentes a habitantes de subúrbios norte-americanos.

Contudo, suspeito que essa pequenez de flor-e-borboleta tenha sido também um produto da “racionalização”, que transformou a magia da Terra dos Elfos em mera finesse, e a invisibilidade numa fragilidade que poderia se esconder dentro de uma prímula ou se encolher atrás de uma folha de relva. Isso parece entrar na moda logo depois que as grandes viagens tinham começado a fazer o mundo parecer estreito demais para conter homens e elfos, quando a terra mágica de Hy Breasail no Oeste se tornou os meros Brasis, a terra da madeira do corante vermelho.

(TOLKIEN, 2020, p. 20)

onward-fairies-pixies-pixar | Pirates & Princesses
Fadas diminutas, que não usam asas em Onward

Ou seja, não há mais magia no mundo real, não vemos mais as histórias de fadas como algo a ser levado minimamente a sério, algo relegado ao quarto das crianças e que deve ser esquecido. No filme, nossa modernidade e racionalização invadem o mundo mágico e o transformam em nossa própria realidade, que também exige que a magia e a crença no fantástico devem ser deixadas para trás, deve-se “crescer”.

Enquanto os contos fantásticos são, geralmente, sobre pessoas em jornadas pelo Reino Encantado, em Onward são os próprios elfos que seguem em uma aventura por esse mundo, uma jornada de descoberta e conhecimento. “A maioria das boas “estórias de fadas” são sobre as aventuras de seres humanos no Reino Perigoso ou em suas fronteiras imprecisas.” (TOLKIEN, 2020, p. 23). Aqui, a fronteira é a do tempo, um passado esquecido e que não se faz questão de resgatar.

A história começa quando Ian Lightfoot (Tom Holland– EUA/Wirley Contaifer–BR) completa dezesseis anos. Nessa data, ele pode abrir algo que seu pai, morto quando ele ainda era um bebê, deixou para os dois filhos. Imediatamente, o irmão mais velho Barley (Chris Pratt–EUA/Raphael Rossatto–BR) reconhece o velho tronco ressecado como um cajado de mago. Ele é conhecido na cidade como um “inútil” que vive jogando RPG, enquanto tirou um ano sabático dos estudos e entra em conflitos com a polícia por tentar salvar pontos históricos da cidade.

First Look: Ian & Barley from Disney and Pixar's 'Onward' Coming ...
Irmãos Lightfoot/Pixar-Disney

Ao tentarem fazer o feitiço deixado pelo pai, que seria capaz de trazê-lo de volta à vida por um dia, percebem que Ian é capaz de fazer magia. Mas ela precisa de treino e confiança, por isso apenas metade do pai aparece. Os dois irmãos então partem em busca de outra pedra mágica para alimentar o feitiço, uma verdadeira Quest levando os dois a utilizar suas diferentes habilidades. Enquanto Ian descobre seus poderes, Barley percebe que as histórias nas quais acredita são verdade, e os dois estreitam os laços entre si.

Claro que há uma sátira de nossa vida moderna e sobre como deixamos esquecida a magia, seja ela qual for. Tolkien considerava a sátira, aventura, moralidade e fantasia pontos centrais das estórias de fada. Onward leva em consideração outra questão muito importante para o Professor:

“Há um único pré-requisito: se houver algo de sátira presente na estória, de uma coisa não se pode zombar — da magia em si. Essa deve, naquela estória, ser levada a sério, não sendo ridicularizada nem explicada.”

(TOLKIEN, 2020, p. 24).

A magia é algo a ser resgatado e protegido. Muitos problemas são resolvidos quando essas criaturas se reconectam com seu passado mágico.

Conforme a história se desenrola e Ian vai desenvolvendo sua habilidade com magia, ele também vai descobrindo outros valores como autoconfiança, ouvir seu coração, receber apoio quando necessário. Como nos contos clássicos, a magia não existe por ela mesma, mas trazendo consigo lições que tocam fundo ao ser humano.

Atenção: contém spoiler

Por fim, os dois irmãos entendem melhor o papel que cada um tem na vida do outro e Ian aprende a abrir mão de sua vontade particular para ajudar o irmão. Apenas Barley consegue ter poucos minutos com o pai, em uma cena um pouco difícil de segurar as lágrimas. Como na maioria dos filmes da Pixar, também há um subtexto que não é lido normalmente pelas crianças, mas pelos adultos. Mais uma vez, Tolkien nos mostra que não há problema nenhum nisso e que esta é a uma das muitas razões para especialmente os adultos apreciarem as estórias de fadas:

As crianças têm de crescer, e não se tornar Peter Pans. Não perder a inocência e o assombro, mas proceder na jornada designada: aquela jornada na qual certamente não é melhor viajar com esperança do que chegar, embora devamos viajar com esperança se quisermos chegar. Mas é uma das lições das estórias de fadas (se podemos falar das lições de coisas que não lecionam) que, sobre a juventude insensível, preguiçosa e egoísta, o perigo, a tristeza e a sombra da morte podem derramar dignidade e, às vezes, até sabedoria.
[…]
Se a estória de fadas, como um gênero, é digna de ser lida de alguma forma, ela é digna de ser escrita para (e lida por) adultos.
[…]
Seus livros, assim como suas roupas, deveriam dar espaço para o crescimento, e seus livros, de qualquer modo, deveriam encorajá-lo.

(TOLKIEN, 2020, p. 55)

No fim, o importante é que a magia, seja ela real ou das estórias de fadas, não seja esquecida ou apagada. Mesmo em um mundo tecnológico, considerado por muitos mais evoluído, não deveríamos deixar de lado a fantasia. É ela que nos une e nos permite imaginar um mundo onde tudo é possível.


Obras citadas

CARPENTER, H. J.R.R. Tolkien: uma biografia. Tradução: Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2018.

CARPENTER, H.; TOLKIEN, C. As Cartas de J.R.R. Tolkien. Tradução: Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte e Letra, 2006.

TOLKIEN, J.R.R. Sobre Estórias de Fadas. Tradução: Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2020.


Fernanda Correia é doutoranda sobre literatura tolkieniana no Mackenzie-SP

4 thoughts on “Onward e a defesa dos contos de fada de Tolkien

  1. Parabéns pelo ótimo texto, Fernanda. Uma análise digna deste belo filme! Importante salientarmos que 1937, ano em que a referida carta do professor foi escrita, foi o mesmo em que Branca de Neve e os Sete Anões, o primeiro longa animado da Disney foi lançado; mais especificamente dezembro daquele ano. Logo estamos falando de um contexto em que NENHUM dos clássicos da Disney existiam e suas animações restringiam-se aos pequenos curtas de Mickey e sua turma fazendo trapalhadas ritmicamente coordenadas por alguma música de fundo. A gente vê muita gente aplicando as críticas deste senhor a filmes, e conceitos observado nos atuais filmes do estúdio sem considerar as imensa mundanças que os ultimos 83 anos tiveram sobre a Disney e bem… sobre os senhores. Não podemos afirmar se o professor Tolkien aprovaria ou não as animações da estúdio de ontem e hoje, ou não, mas é fato que argumento descontextualizado do período histórico, não é argumento.

    1. Muito obrigada, Viccenzo! Você tem toda razão, sempre precisamos contextualizar as falas do professor, sem esquecer que algumas estão editadas ou incompletas, e lembrar que não podemos deduzir suas possíveis ações a partir disso. No máximo um pequeno chiste, como fiz no texto rs.

  2. Tem uma cena do filme em que Barley Lightfoot e pego pela polícia porque queria preservar uma fonte antiga que iriam derrubar para uma construção moderna, mostrando como a vida moderna e as construções acabam destruindo parte de nossa história inclusive no que diz respeito aos mitos e lendas, ate zombam ele de historiador.
    Essa preservação da história e do que ela tem a nos ensinar está diretamente interligada ao fato que sem o conhecimento da magia sendo passado adiante as fadas deixaram de voar e sequer acreditam nisso,além da Mandicora que perdeu alguns traços da sua “personalidade”,simplesmente para sobreviver, e quantas vezes não deixamos para trás nossos sonhos ou desejos por causa dessa racionalização da vida moderna. Entre as perdas estão a magia da terra de fada.
    Gostei do seu texto! Continue assim

    1. Muito obrigada, Patrick! Com certeza, a cena da fonte foi uma das minhas favoritas! Ainda bem que temos as obras de Tolkien para nos lembrar da magia.

Deixe um comentário