por Victoria Barros
Ao se estudar a vida e a obra de J.R.R. Tolkien, torna-se claro o fascínio do autor inglês por mitos. Essa fascinação se encontra tanto em seus trabalhos acadêmicos quanto em sua produção literária.

Como especialista em filologia e em literatura inglesa, Tolkien publicou, em 1925, junto com E.V. Gordon, uma edição crítica de um episódio do mito arturiano denominado Sir Gawain e o Cavaleiro Verde. A tradução do poema feita por Tolkien foi publicada postumamente em 1975. Também nos anos 20, trabalhava na tradução do poema medieval Beowulf. Concluída em 1926, a obra só foi publicada em 2014, editada por Christopher Tolkien.

Enquanto autor literário, a fascinação pelos mitos pode ser destacada no poema Mythopoeia. Nele, o eu-lírico Philomythus (aquele que ama mitos) fala a Misomythus (aquele que odeia mitos) sobre a importância da mitologia e da criação de mitos. Ele fundamenta tal importância na noção de que a mitologia e suas histórias, os mitos, falam sobre uma verdade fundamental. Muito se especula que, em verdade, o eu-lírico do poema Mythopoeia corresponda ao próprio Tolkien, ao passo que Misomythus corresponda a seu amigo próximo, C. S. Lewis.
A ideia do mito como forma de desvelar uma verdade, como se encontra presente em Mythopoeia, também encontra respaldo em outras áreas do conhecimento humano, principalmente na psicanálise analítica, uma vertente da psicologia elaborada por Carl Gustav Jung (1875–1961).
Jung compreendia a psique humana dividida entre consciência e inconsciência. Na inconsciência, encontra-se uma parte individual e uma parte coletiva. Residem na coletividade símbolos que são compartilhados por toda a humanidade. Tais símbolos podem se manifestar de muitas maneiras: uma delas é pelas histórias mitológicas, os mitos. Dessa maneira, os símbolos procuram ser compreendidos e assimilados pela humanidade.
O símbolo mais popularmente estudado pela psicanálise analítica é o símbolo do herói. A principal obra que trabalha com este tipo de análise é O Herói de Mil Faces,publicado em 1949 por Joseph Campbell. Após extensa análise de mitos heroicos de diferentes culturas e de diferentes tempos, Campbell chega à conclusão de que o mito heroico é uno, denominando-o “monomito”. Ele identifica três momentos principais com estágios próprios. Então, apesar dos possíveis detalhes que tornem uma história heroica única, ela é, segundo Campbell, uma só. Para Tolkien, no entanto essa sistematização não era o fator mais importante quando falamos de contos de fadas. Mais sobre isso pode ser lido no texto “Desmistificando a Jornada do Herói”.
Mas o que o símbolo do herói tem a oferecer à humanidade hoje?
Segundo Joseph L. Henderson em Os Mitos Antigos e o Homem Moderno, a figura heroica busca demonstrar o aspecto da força. Não física, nem mesmo a força presente em Star Wars, mas, sim, a força para a autocompreensão. Assim, nas palavras de Henderson (2008, p. 144):
Sua função específica lembra que é atribuição essencial do mito heroico desenvolver no indivíduo a consciência do ego — o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas — de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor.
Em suma, o mito heroico busca demonstrar para seu ouvinte ou leitor a necessidade de conhecer a si próprio, preparando-o para os momentos que a vida necessitará de tal conhecimento.
Aragorn, de Jenny Dolfen
Assim, é possível ler a obra literária de Tolkien falando sobre uma verdade fundamental por meio de seus diferentes e diversos mitos heroicos. Com Bilbo e Frodo Bolseiro, pode-se aprender sobre a importância de sair de sua zona de conforto e alcançar coisas que poderiam ser impossíveis de se imaginar. Com Sam Gamgi, pode-se aprender sobre o poder da amizade. Com Aragorn, pode-se aprender como se desprender do medo e assumir um papel de tamanha responsabilidade.
Todos eles são diferentes tipos heroicos, ensinando diferentes lições, mas todas pautadas em uma só base: a força. A força de romper com nossos hábitos, a força da amizade, a força de extinguir o medo.
Talvez, nesses tempos obscuros que vivenciamos, voltar para o mito heroico possa não apenas nos proporcionar uma viagem para outros lugares, como nos ensinar a força que temos.
Obras citadas
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2009.
HENDERSON, Joseph L. ‘Os Mitos Antigos e o Homem Moderno’, in JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018, pp. 133–205.
TOLKIEN, J.R.R. ‘Mythopoeia’, in Tree and Leaf. 8 ed. London: HarperCollins, 2001, pp. 85–90.

Victoria Barros é formada em Letras e criadora do instagram de cinema e literatura @pensenochuveiro.
Parabéns pelo texto! Acho que só faltou citar o livro A história de Kullervo que Tolkien em que escreveu o primeiro e mais sombrio herói de Tolkien “kullervo”, e que desde pequeno Tolkien lia Kalevalla com os heróis da mitologia popular finlandesa.
E na psicanálise analítica de Jung os Mitos aparecem através dos sonhos, e se realiza uma análise dessa simbologia, gostei dos exemplos utilizados Com Bilbo, Frodo e Sam Gamgi.
De acordo com JUNG “a necessidade de símbolos heróicos surge quando o ego necessita fortificar-se — isto é, quando o consciente requer ajuda para alguma tarefa que não pode executar só ou sem uma aproximação
das fontes de energia do inconsciente.”JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. Talvez esses escrever sobre heróis em seus livros,Tolkien quisesse expor inconscientemente o que passou na guerra e as pessoas que não pode salvar.
Sou Patrick Queiros Thain da Toca-Ba
Oi, Patrick! Ótima sugestão de leitura!
Em relação aos mitos e os sonhos, no mesmo livro citado por você o Joseph L. Henderson faz uma análise dos próprios mitos heróicos e seus ciclos, então, fica uma dica também de leitura. No caso, a análise do Henderson é totalmente baseada nos mitos per se.
Sim, talvez o Tolkien quisesse expor seu passado na guerra, mas, em minha visão, seu principal objetivo era guiar o leitor através de exemplos. Ou seja, o que Aragorn, Sam e Frodo passam são lições aplicáveis no nosso dia-a-dia. Até porque o próprio Tolkien adverte que seus escritos não tem a ver com sua vida pessoal – apesar de ser difícil não observar possíveis relações!