Desmistificando a Jornada do Herói em J.R.R. Tolkien

Por Cristina Casagrande

O mitólogo americano Joseph Campbell ficou mundialmente conhecido depois do sucesso da saga cinematográfica Star Wars (1977), de George Lucas. O diretor fílmico afirmou ter lido O Herói de Mil Faces (1949), escrito por Campbell, e, a partir de então, começou a rever a estrutura de Star Wars — especialmente a primeira trilogia, do episódio IV ao VI —, tornando-a mais consistente em relação aos seus rascunhos originais.

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Joseph Campbell, George Lucas e Bill Moyers/Série de Documetários “O Poder do Mito”

Em O Herói de Mil Faces, Campbell traz, já no prólogo, a ideia do “monomito”. Basicamente, ele traça um padrão comum na jornada dos personagens centrais dos mitos e das histórias de fadas, ou seja, guardadas as variantes, os protagonistas dessas histórias seguem mais ou menos o mesmo trajeto. De acordo com Campbell (2007, p. 36),

O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno que podem ser considerados a unidade nuclear do monomito.

No seu livro, ele coloca um simples diagrama assim:

E ao lado dele, os dizeres:

Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes.

As partes grifadas (por nós) correspondem respectivamente à separação, iniciação e retorno.

Mais tarde, os leitores mais atentos de Campbell recriaram e inspiraram outros diagramas mais elaborados, baseados na jornada do herói. A obra mais famosa dessa leva interpretativa é A Jornada do Escritor (2006), de Christopher Vogler, que desenvolve a teoria do monomito em 12 passos.

Esse último diagrama apresenta figuras curiosas. Nele, encontramos referência a O Hobbit e O Senhor dos Anéis, Harry Potter, O Rei Leão, Thor, Homem de Ferro, Star Wars, entre outros. Você consegue identificar todos?

É verdade que, de modo geral, conseguimos traçar esses passos em todas essas histórias. Bilbo tem de sair do Mundo Comum, pois é chamado a uma aventura, assim como Harry Potter vai de Londres à Hogwarts. Gandalf, Dumbledore, Rafiki fazem as vezes dos mentores de suas respectivas demandas. Luke precisa enfrentar Darth Vader para poder cumprir sua jornada. Frodo volta para o Condado transformado depois da destruição do Um Anel.

O ciclo do monomito se repete, e isso muito antes de ele ter sido notado pelos mitólogos. Outros pesquisadores também traçaram estruturas comuns nos contos de fadas, como Vladimir Propp em sua Morfologia do Conto Maravilhoso (1928). Apesar de Tolkien ser bastante analítico em suas pesquisas filológicas, no fim das contas, essas coisas não costumavam ser o mais importante para ele. Já em 1939 (portanto, dez anos antes de O Herói de Mil Faces), em seu ensaio Sobre Contos de Fadas, o autor criticava essa segmentação analítica dos folcloristas.

O motivo de Tolkien não ser muito adepto dessa metodologia se dava por duas questões: primeiro porque ele acreditava que cada parte tinha um valor singular e especial, independente dos traços comuns com as demais histórias; em segundo lugar, para ele, a história apresenta um valor único em seu conjunto, porque nela interessa o seu sentido, ou seja, a sua finalidade:

O colorido, a atmosfera, os inclassificáveis detalhes individuais de uma história e acima de tudo o teor geral que dotam de vida os ossos não dissecados do enredo, que realmente fazem a diferença (TOLKIEN, 2014, p. 19).

Tolkien empresta a metáfora do folclorista George Webbe Dasent e compara uma história a uma sopa. O que interessa, diz ele na mesma passagem, é a sopa em si e não as partes que a compõem: “Temos de nos satisfazer com a sopa que nos servem, e não querer ver os ossos do boi com que foi feita”.

C.S. Lewis em Sobre Histórias (1966), fala um pouco sobre isso. Ele traça dois diferentes tipos de prazer ao se ler uma história. O primeiro seria o da empolgação que a história nos traz: os leitores que se centram apenas na sensação de serem surpreendidos, excitados e, em seguida, confortados não vão se preocupar tanto com as peculiaridades da história. Basta saber uma fórmula e aplicá-la de forma coerente e com certa habilidade que, pronto, causou uma empolgação no leitor — e é isso o que ele quer. Mas há os leitores, como Lewis e Tolkien, que se interessam muito mais pelas particularidades das histórias: quem são aqueles povos, qual era a sua cultura, a sua língua, o seu modo de pensar, o seu passado e os seus costumes. 

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Luke e Darth Vader/LucasFilm

É verdade que tanto Frodo quanto Luke Skywalker tiveram de enfrentar uma provação máxima antes de voltarem para “casa”, mas o primeiro teve de tentar destruir um artefato mágico na Terra-média, enquanto o outro teve de enfrentar o próprio pai numa galáxia muito distante. A especificidades nesses universos fazem toda a diferença, e a mensagem que cada uma quer passar também.

Para Tolkien (e Lewis) as histórias têm valor mitológico e como tal, falam não apenas de nossas origens no mundo de um modo metafórico, mas dizem um pouco de nós mesmos na atualidade. Conhecer melhor as particularidades de cada história seria, portanto, um modo de conhecer a grandeza da Humanidade e o seu teor geral indica o sentido que ela aponta em vistas para o futuro. Desse modo, aquelas histórias que são ricas em suas particularidades e, no fim das contas, apontam para a Esperança são as mais interessantes, mas, por isso mesmo, de modo algum devem ser generalizadas.

Obras Citadas

CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007.

LEWIS, C.S. Sobre Histórias. Tradução: Francisco Nunes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

TOLKIEN, J.R.R. Sobre Contos de Fadas. Tradução: Ronald Kyrmse. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014.


Cristina Casagrande é autora do livro A Amizade em O Senhor dos Anéis

6 thoughts on “Desmistificando a Jornada do Herói em J.R.R. Tolkien

  1. Muito oportuna a menção da metáfora da sopa!
    Entre os leitores de Tolkien há, no momento, grande expectativa sobre a publicação da “História da Terra-média”. Temo que muitos daqueles que esperam um fumegante caldeirão de sopa fiquem decepcionados ao darem com… os ossos do boi.

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