“The Worlds of J.R.R. Tolkien”, de John Garth

Novo livro explica de maneira brilhante como o Mundo Primário impactou o Mundo Secundário do autor da Terra-média.

Eduardo Boheme

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Poucos escritores tiveram suas vidas tão bem documentadas quanto J.R.R. Tolkien: dele nós temos biografias (sim, no plural!); cronologias maiores e menores; livros de fotografias; registros diversos de quem foi, o que fez e como pensava o maior escritor de fantasia do século XX. Essa vasta documentação teve duas consequências: uma foi que, paralelamente aos bons livros biográficos, proliferou-se muito material extraordinariamente ruim, plagiado ou repetitivo (a biografia de Michael White consegue ser as três coisas); a outra consequência foi o surgimento de nichos pouco ou mal explorados na vida do escritor.

Uma dessas lacunas diz respeito aos lugares que foram importantes para Tolkien, seja por ele os ter visitado, seja porque influenciaram sua obra de modos variados ou pelos dois motivos. O novo livro de John Garth, The Worlds of J.R.R. Tolkien [Os mundos de J.R.R. Tolkien], lançado agora em junho de 2020, supre essa lacuna de maneira excelente, driblando as três pragas dos escritos biográficos (falta de qualidade, plágio e repetitividade). Garth já é um aclamado e experiente biógrafo do autor de O Senhor dos Anéis: seu excelente Tolkien and the Great War (2003), que cobre apenas uma, mas decisiva, fatia da vida do filólogo, mostra que a busca incessante pela boa informação, pela originalidade, pelas fontes confiáveis, assim como o desprezo por conjecturas infundadas são uma marca de sua escrita, algo que se repete agora em seu recém-lançado livro.

Nos onze capítulos, o biógrafo procura desenvolver suas “próprias teorias sobre aquilo que inspirou o legendário da Terra-média, assim como algumas das afirmações mais convincentes e interessantes feitas por outras pessoas” (Garth 2020: 6). Ainda segundo o autor, o livro não se restringe a “identificar lugares reais que serviram de inspiração para pontos específicos na Terra-média. [Ele] também se detém em locais, reais e imaginários, que Tolkien conhecia por meio de suas leituras. Examina as influências que moldaram suas culturas e sua cosmologia inventadas, entendendo ‘lugar’ como um misto de localização, geologia, ecologia, cultura, nomenclatura e outros fatores” (Garth 2020: 6).

Assim, Garth passeia pelos diversos locais que certamente ou provavelmente inspiraram Tolkien de alguma forma: explora a Inglaterra e sua relação com o Condado; vai a montanhas e vales; revela rios, lagos e mares que fizeram parte da vida do autor e caminha pelas florestas, tão caras a Tolkien. De maneira concisa, Garth examina as influências que teriam vindo dos quatro pontos cardeais: a mitologia germânica do Norte; do Oeste, a mitologia celta e as histórias dos povos indígenas norte-americanos; o mundo clássico e sua terra natal africana, no Sul, além das possíveis inclinações ao Leste, ao Oriente Médio, filtradas pelo olhar europeu medieval.

Entre muitas outras coisas, Garth fala sobre as florestas, tão importantes na obra de Tolkien.

O biógrafo não se esquece das construções, como as ruínas em sítios arqueológicos, as torres e as indústrias, e não perde de vista os lugares dessa nefasta criação humana, a guerra, com seus campos de batalha e suas trincheiras. A progressão do livro segue um desbotamento cromático: tudo vai ficando cada vez mais cinzento e esfumaçado; as florestas e as águas recuam conforme as cidades avançam e tudo consomem. Todos os capítulos trazem ilustrações e fotografias abundantes e, ocasionalmente, mapas que ajudam o leitor a singrar os lugares que influenciaram Tolkien em sua escrita (o autor também converte as unidades de medida para pessoas como eu, que não conseguem decorar quantos quilômetros perfazem uma milha).

O projeto gráfico vistoso é, sem dúvida, um ponto alto de toda a obra, mas, como se disse, a busca pelas fontes confiáveis é talvez a maior qualidade do livro. O autor afirma ter priorizado as conclusões mais convincentes e diz que, embora sua intuição possa estar errada ocasionalmente, tudo foi “pesado na balança dos fatos e da probabilidade, valendo-se de fontes publicadas valiosas e também de [sua] própria ampla pesquisa” (Garth 2020: 6).

Um exemplo de como a pesquisa o levou a determinada conclusão está no capítulo “Roots of the Mountains”. Lá, Garth (2020: 89) cogita a possibilidade de Tolkien conhecer um relato de A.F. Mummery sobre supostas aparições fantasmagóricas no Matterhorn, montanha dos alpes suíços, o que talvez tenha inspirado a criação das Sendas dos Mortos. Ora, poderíamos perguntar o que levou Garth a supor que Tolkien teria lido tal relato. A resposta vem nas notas (2020: 193), em que descobrimos que Mummery foi amigo de Cary Gilson, diretor da King Edward’s School e pai de Rob Gilson, da T.C.B.S. O livro em que Mummery comenta as supostas aparições de fantasmas foi recomendado por Cary Gilson à sociedade literária que Tolkien frequentava.

O Vale de Lauterbrunnen, na Suíça, que Tolkien visitou e que influenciou sua visão de Valfenda (Fotografia de Jacob Jolibois).

Esse tipo de conexão inesperada e bem fundamentada — que eu, como leitor, acho particularmente interessante — é frequente no livro de Garth e serve de recado para todos nós tolkienistas sobre o cuidado necessário ao lermos ou fazermos afirmações do tipo “Tolkien sem dúvida era/ conhecia/ queria/ pensava/ leu x, y e z” sem oferecer um fiapo de evidência. John Garth se esquiva de tais asserções habilmente e o faz demonstrando ter lido extensivamente sobre o assunto nas melhores fontes bibliográficas e conversado com autoridades nas disciplinas que aborda. Isso acaba tornando seu próprio livro uma fonte confiável de informações, frequentemente atualíssimas.

É nas notas ao final do livro, a propósito, que se encontra grande parte dessas preciosidades informativas. Garth usou um método diferente do que empregou para Tolkien and the Great War. Naquele livro, segundo ele “para evitar atulhar a narrativa com numerais sobrescritos” (Garth 2004: xviii), o texto não trazia indicações nem remetia o leitor claramente para as notas, localizadas ao final do livro. Felizmente, esse método potencialmente confuso foi alterado em The Worlds of J.R.R. Tolkien. As copiosas notas são todas claramente marcadas no texto por numerais sobrescritos que jamais atulham a narrativa. Muitas vezes, mais do que simples referências bibliográficas, elas trazem um microuniverso explicativo em si mesmo. Uma delas, para nosso contentamento, faz menção ao Brasil e à conhecida teoria de que o nome de nosso país pudesse ter ligação com a ilha paradisíaca irlandesa de Hy Breasail, à qual o próprio Tolkien alude em On Fairy-stories (Garth 2020: 192 e Tolkien 2014: 29).

*

Muitos leitores de Tolkien, eu entre eles, já chegaram ao seu mundo ficcional tendo à disposição uma fortuna crítica relativamente consolidada, com estudos indispensáveis para a compreensão ampla e acurada de sua obra. No entanto, em meio ao dilúvio de novos livros e estudos dedicados ao legado literário de Tolkien, temos que ser seletivos ao extremo com aquilo que vamos ler e com o que vamos gastar nosso dinheiro. Por trazer frescor e originalidade à pesquisa em Tolkien, pela riqueza informacional e precisão factual, por corrigir distorções e apontar limitações em estudos mais antigos, promovendo uma discussão muito razoável sobre a interferência da vida de um autor em sua obra, o livro de John Garth é um desses que não podemos deixar de ler.


The Worlds of J.R.R. Tolkien: The Places that Inspired Middle-earth
★★★★★

Autor: John Garth
Editora: Princeton University Press (2020)
Capa dura
208 páginas
268mm x 217mm


Obras citadas

Garth, John. 2020. The Worlds of J.R.R. Tolkien: The Places that Inspired Middle-earth (Princeton and Oxford: Princeton University Press).

—— 2004. Tolkien and the Great War: The Threshold of Middle-earth (London: HarperCollins).

Tolkien, J.R.R. 2014. “On Fairy-stories”, in Anderson, Douglas A., and Verlyn Flieger (eds.). Tolkien “On Fairy-stories”: Expanded edition, with commentary and notes (London: HarperCollins).


Eduardo Boheme é Mestre em Tradução Literária pelo Trinity College da Universidade de Dublin.

5 thoughts on ““The Worlds of J.R.R. Tolkien”, de John Garth

  1. Muito obrigado pela resenha Eduardo Boheme, gostei muito estava interessado para saber mais sobre o livro, teve uma coisa que você citou que também me incomoda um pouco, a repetitividade das Biografias de tolkien e até em livros de comentadores como Dom da Amizade, acho cansativo enquanto leitor ler a mesma coisa sobre o autor em 3 livros. Estou curioso para saber sobre as “próprias teorias do Garth sobre aquilo que inspirou o legendário”.
    Pessoalmente os textos que eu mais gosto de ler são os que fazem análises ou correlações das obras de Tolkien com outras obras.
    Quero muito ver as ilustrações desse livro também, mais uma vez obrigado.

  2. Ótima resenha, Eduardo! Obrigado mais uma vez. É bom saber que Garth cumpre as promessas de frescor e acuidade de referências, que sinalizar na Introdução – única parte que li até o momento – algo obviamente de se esperar de teórico de tal gabarito. Já havia considerado ter feito uma excelente escolha ao comprar este livro, pelo seu farto material ilustrativo e fotográfico. Agora tenho a certeza que a leitura próxima entregará conteúdo novo e qualidade!

    1. Viccenzo, obrigado por ler o texto. Sua escolha foi de fato excelente, pela fotografia, ilustração e informação do texto!!

  3. Eu sou um fã incondicional da escrita do John Garth (sou doido para fazer o curso dele rs) e do Eduardo. Que honra poder chamar este último de “amigo”. 🙂 Obrigado pela resenha e o livro fica naquela minha “wishlist” interminável e inalcançável. Sobre Hy Breasail, tem algo sobre isso, salvo engano, no glossário de The Lay of Aotrou and Itroun.

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