Tolkien como “sujeito histórico” e “objeto de estudo”

Emanuelle Garcia Gomes

Uma das grandes dificuldades que tive em minha graduação de História era a falta de chances de se fazer uma pesquisa de conclusão de curso que fosse identitário para mim. Comumente, os temas eram aqueles que estavam sempre “na moda” ou possuíam uma vasta fortuna crítica, que pareciam não revelar novidades — mesmo que isso fosse sempre possível. Era complexo também propor projetos que falassem sobre períodos da Antiguidade, ou até mesmo fazer algum recorte do período medieval. Mesmo assim, movida pela premissa de estudar algo que me interessava, escolhi levar até o fim um trabalho que fosse pertinente; uma pesquisa que pudesse discutir e pontuar algumas passagens acerca do mundo criado pelo escritor inglês John Ronald Reuel Tolkien. E as motivações e justificativas se pautavam nas concepções que eu pretendia trazer como pontos de análise presentes na literatura de Tolkien, tais como “fantasia” e “mitologia” — ambas estiveram presentes em sua vida, tanto em sua carreira acadêmica como também em seu legado literário.

A Árvore de Amalion, de J.R.R. Tolkien.

As indagações importantes, na ocasião, eram: o que é a fantasia e o mito na literatura e imaginário tolkeniano; as influências diretas e indiretas que recebeu ao longo dos anos, para a construção das obras que conhecemos dele. Todo o trabalho girava em torno disso: as ideias partiram da ficção de “Arda”, especificamente a “Terra-média”, que tem forte influência de mitologias. Para se ter um recorte, a obra literária colocada como fonte para o trabalho inteiro foi O Senhor dos Anéis especialmente pelo fato de que, desde a publicação da primeira parte em 1954, o livro foi traduzido para mais de 40 línguas, passando assim a ser um dos romances épicos mais populares do século XX.

As histórias, em linhas gerais, ocorrem em um tempo e espaços imaginários, que, de acordo com o autor, são uma Europa mitológica que não conhecemos, e apresentam uma narrativa desconhecida e pouco explorada, com humanos e outras raças, como elfos e anãos. Em O Senhor dos Anéis, a narrativa se ambienta na Terra-média, e ocorre a apresentação dos personagens na chamada “Guerra do Anel”, na qual várias raças como Homens, Elfos, Hobbits e afins, lutam contra outras raças associadas a Sauron, O Senhor do Escuro, criador e dono do “Anel do Poder”, aquele que detém o controle de todos os outros anéis mágicos existentes. Esse é o cerne da trama desenvolvida sob o olhar de vários personagens, em especial Frodo, que tem a missão de destruir “O Anel”, acabar com o poder maléfico de Sauron e devolver assim a liberdade aos povos da Terra-média. E era isso que precisava ser apresentado no estudo acadêmico, levando em conta que Tolkien como “sujeito histórico” era uma “novidade” na área.

Os mapas de Tolkien oferecem verossimilhança à narrativa.

Ademais, a narrativa conta com uma série de apêndices explicativos com mapas, explicações linguísticas (inclusive das línguas inventadas pelo autor), árvores genealógicas dos personagens, entre outras especificações que traziam mais perguntas, entre elas: esses apêndices na obra forneceriam, de algum modo, verossimilhança à narrativa? Esse era um dos pontos que eu queria investigar, não pelo ponto de vista de um crítico literário, mas como, historiadora. Estava colocado o desafio.

As obras englobam aspectos de filologia — a formação de Tolkien —, mitologia (especialmente a nórdica), religião (particularmente os ditames católicos, embora não bem explícito), e contos de fadas. Tolkien criou um universo fictício completo e altamente detalhado onde a narrativa de O Senhor dos Anéis se passa. Para se entender bem essa obra de Tolkien, era necessário ambientar o leitor sobre o conhecimento prévio da primeira publicação ficcional, O Hobbit, e também sobre O Silmarillion — contos unidos em uma espécie de coletânea de trabalhos mitopoéticos, organizados pelo seu filho após a sua morte, que formam uma abrangente, ainda que incompleta, história que descreve o universo da Terra-média e preenche certas lacunas dos dois livros principais livros do legendário que Tolkien publicou em vida.

A narrativa de Tolkien é repleta de elementos e personagens de aspectos míticos, como bem sabemos, objetos mágicos como o Um Anel, magos — que possuem sabedorias universais —, elfos e outras raças que não são necessariamente humanas, pois possuem certos poderes — estes para o bem ou para o mal, com pureza ou maleficência. Sejam objetos ou personagens, são noções de interpretação, pois alguns de seus atributos são pontos de discussão por terem significações plurais inerentes; são símbolos compreensíveis apesar de fictícios ou sobrenaturais.

O contraponto ideal é pensar em relação às mentalidades: no tempo em que Tolkien escreveu e publicou seus romances, como continuou a exercer interesses na época da contracultura tomando outros sentidos, e ainda de como as histórias lidaram com outra ressignificação, tendo aumentado a sua circulação significativamente depois que se popularizou a literatura do inglês a partir das produções cinematográficas. Com tudo isso, se havia algum medo ou estranhamento dos aspectos mágicos e sobrenaturais da história, esses sentimentos desapareceram dando lugar a aspectos de cunho fascinante, admiração e beleza.

Uma questão que era muito clara, mas capciosa, precisava ser destacada naquele primeiro trabalho acadêmico como forma de esclarecimento, a fim de não parecer contraditório com o que Tolkien parecia transmitir com as suas obras. Foi importante destacar um posicionamento pessoal calcado na própria opinião de Tolkien a respeito delas. Analisá-las — em especial os três volumes que compõem O Senhor dos Anéis — focando-as como alegoria fantástica; uma interpretação alegórica relacionando a história do livro ao momento histórico vivido, isto é, comparando a “Guerra do Anel” aos fatos da II Guerra Mundial, era uma interpretação anacrônica, e no mínimo, equivocada antes mesmo de se tornar objeto de pesquisa. Levar essa noção até o fim do estudo tornaria tudo, ainda, digamos, descartável, quando nos atentamos ao que o próprio Tolkien diz no prefácio de O Senhor dos Anéis, volume único:

Quanto a qualquer significado oculto ou ‘mensagem’, na intenção do autor estes não existem. O livro não é nem alegórico e nem se refere a fatos contemporâneos. […] Suas fontes são coisas que já estavam presentes na mente muito antes, ou em alguns casos já escritas, e pouco ou nada foi modificado pela guerra que começou em 1939 ou suas seqüelas.

E segue com posicionamento esclarecedor e enfático, em outro trecho mais adiante:

Outros arranjos poderiam ser criados de acordo com os gostos ou as visões daqueles que gostam de alegorias ou referências tópicas. Mas eu cordialmente desgosto de alegorias em todas as manifestações, e sempre foi assim desde que me tornei adulto e perspicaz o suficiente para detectar sua presença. Gosto muito mais de histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência dos leitores. Acho que muitos confundem “aplicabilidade” com “alegoria” mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do autor.

Ressalta-se inclusive, que esse pensamento é quase um senso comum quando alguns analisam a obra como alegórica a partir da vivência de Tolkien e sua participação na Primeira Guerra Mundial:

É claro que um autor não consegue evitar ser afetado por sua própria experiência, mas os modos pelos quais os germes da história usam o solo da experiência são extremamente complexos, e as tentativas de definição do processo são, na melhor das hipóteses, suposições feitas a partir de evidências inadequadas e ambíguas.

De fato, a ideia base de O Senhor dos Anéis veio antes mesmo de qualquer proposta da existência da Bomba Atômica. Era preciso (e ainda é) evitar esse anacronismo — pensar com os valores de sua época, ações do passado — e essa justificativa como “razão” simplista a interagir com a obra e o autor. Embora essa forma de compreendê-la exista, ela não é a única.

Seria o Um Anel a Bomba Atômica? Para essa pergunta só há uma resposta, que é “NÃO”.

Com isso, comecei a refletir e fazer com que o meu trabalho tomasse forma quando apurei melhor o tema; ao conceituar fantasia, mito, saga e por fim delimitar o conceito de subcriação, eu tinha meus objetivos; tudo isso como conjunto de textos e tradições literárias, que dialogava com Tolkien, fazia parte de meu escopo. As estratégias do autor para compor uma literatura próxima dessa tradição literária; o repertório vasto de imagens e referências da literatura de fantasia, mobilizado pelo autor eram as partes da minha investigação.

O conceito que vale a pena comentar, a fim de mostrar algumas possíveis intenções dos escritos de Tolkien é o de “subcriação”: a partir da linguagem o homem altera o mundo a sua volta e “subcria” uma nova realidade. O mundo primário, ou seja, o mundo que vivemos, está ligado, como base de formação para o que o autor chama de mundo secundário. Por isso, os símbolos, ainda que mágicos, por assim dizer, faziam sentido na narrativa das obras. Por esse ponto de vista, a fantasia não nega, nem se distancia do que chamamos de “mundo real”. Sob esse aspecto pude entender, assim, como e por que Tolkien costumava dizer que não “criou” sua mitologia, mas sim a “descobriu”, prevendo seu desenrolar, quase por acaso. Admitiu então, que a sua aplicabilidade é possível, mas jamais à custa da liberdade interpretativa de quem lê. Um bom conto deve, mais que nunca, ter mais sentidos que um leitor possa imaginar ou prever, tornando-o assim melhor que o seu criador. Com isso, ele tornava as suas obras fantasticamente atemporais e, portanto, elas significam muito mais do que poderíamos pressupor (ou restringir) a discursos retóricos.

Dessa forma, um dos melhores pontos do meu primeiro trabalho sobre o autor (ainda que imaturo e talvez até irresoluto), foi dar destaque ao que o professor Tolkien mais despertava (e ainda desperta) com seu legado: a facilidade de unir o rigor acadêmico à criatividade artística; a filologia e os estudos literários ao mundo fantástico por ele criado, a Terra-média. Foi com esse levantamento que o meu estudo se expandiu, e eu tracei um caminho acadêmico para um mestrado, pensando o aspecto estético da fantasia e a necessidade de relegar as obras desse gênero a uma hierarquia, desprezando o seu conteúdo estético e pautando a sua importância no que ela diz respeito sobre o mundo político — ou seja, o impasse entre a racionalidade e a ordem mágica e poética.


Confira o Trabalho de Conclusão de Curso em História da Emanuelle aqui.


Emanuelle Gomes é mestre e doutoranda em literatura tolkieniana pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU-MG).



1 thoughts on “Tolkien como “sujeito histórico” e “objeto de estudo”

  1. Adorei seu texto e me instigou. Estou abrindo o TCC para ler. Sobre “sujeito historico”, Carlos e Eu tratamos do assunto sob o prisma da Literatura e do Direito ao estudarmos um pouco o auto-exílio de Túrin Turambar. O texto foi publicado no livro organizado pela Cris e pelo Diego Klautau, que pode ser encontrado aqui mesmo no site Tolkienista (fica meu convite para ler)

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