Beatriz Masson
O enredo de Harry Potter se sustenta em cima de dois pilares narrativos que considero muito fortes: seus personagens e seu espaço — aqui entendido como o Mundo Mágico construído por J.K. Rowling. Hoje vou me dedicar a falar um pouquinho sobre os personagens de Harry Potter, mais especificamente de Rony, Hermione e da amizade deles com o protagonista.
Enquanto leitores, acompanhamos, durante sete livros, o percurso formativo de Harry frente à ameaça iminente de Voldemort. Como já discutido no texto “Em defesa de Harry Potter”, podemos associar o percurso formativo do Menino-Que-Sobreviveu aos enredos clássicos do romance de formação. Esse subgênero do romance nos mostra justamente o processo de formação interior e exterior de um personagem, que, via de regra, descobre sua individualidade e seu lugar no mundo a partir de uma jornada um tanto quanto solitária. Conforme escrevi no texto anteriormente mencionado, essa questão no romance de formação clássico está intimamente ligada ao período histórico que concebeu o referido gênero literário: os valores burgueses ligados à individualidade e ascensão social estavam começando a se espalhar por toda a Europa no século XVIII, fazendo com que o próprio romance retratasse essas questões.
Enquanto leitores, acompanhamos, durante sete livros, o percurso formativo de Harry frente à ameaça iminente de Voldemort. Como já discutido no texto “Em defesa de Harry Potter”, podemos associar o percurso formativo do Menino-Que-Sobreviveu aos enredos clássicos do romance de formação. Esse subgênero do romance nos mostra justamente o processo de formação interior e exterior de um personagem, que, via de regra, descobre sua individualidade e seu lugar no mundo a partir de uma jornada um tanto quanto solitária. Conforme escrevi no texto anteriormente mencionado, essa questão no romance de formação clássico está intimamente ligada ao período histórico que concebeu o referido gênero literário: os valores burgueses ligados à individualidade e ascensão social estavam começando a se espalhar por toda a Europa no século XVIII, fazendo com que o próprio romance retratasse essas questões.
Harry Potter tem, sim, muitos aspectos ligados ao romance de formação. Contudo, seria errôneo (e injusto!) dizer que o caminho percorrido pelo protagonista da infância até a vida adulta foi traçado de forma solitária. Não, não foi. Sem a amizade de Rony e Hermione, Harry não seria quem é. Não é possível desvincular o protagonista de seus dois melhores amigos, porque juntos eles formam um todo que é praticamente imbatível. Cheio de falhas, e, justamente por conta disso, imbatível.
De modo geral, cada um desses personagens é atrelado a características bem específicas na narrativa, que nos ajudam a entender um pouquinho mais da personalidade de cada um. Harry é o menino que sobreviveu, o escolhido para derrotar Voldemort, que, ao deixar uma cicatriz na testa do garoto, o marca como eleito. Rony é desleixado, pobre, e está em segundo plano, mas sempre ganha um protagonismo inesperado quando consegue confiar mais em si mesmo. Hermione é a bruxa mais inteligente de sua idade e julga que os livros apresentam a solução para os problemas em que eles se metem.
Em um primeiro momento, Harry se aproxima de Rony porque a enorme família do garoto havia lhe explicado como entrar na plataforma 9 ½, que dá acesso ao Expresso de Hogwarts. O primeiro contato de um com o outro acaba nos mostrando as características centrais destes dois personagens: apesar de Harry ser extremamente famoso no mundo dos bruxos, ele não se dá conta desta fama e nem se deslumbra com ela. Por ter sido tratado com indiferença, rigidez e preconceito pelos seus tios trouxas, Harry não se acha nada especial. Rony, por ser o sexto de sete filhos, o que sempre ganha roupas, livros, varinha e até um animal de estimação de segunda mão, também não se acha importante.
A verdade, porém, é que ambos acabam se tornando interessantes um para o outro por serem quem são: aos olhos de Rony, Harry é o importante Menino-Que-Sobreviveu, e aos olhos de Harry, Rony é privilegiado por ter nascido e crescido em uma genuína família bruxa. O fato de ambos admirarem um ao outro, por razões totalmente diferentes, acaba se tornando a base que sustenta a amizade dos dois, e isso também vai sustentar a amizade que ambos construirão com Hermione.
Em um primeiro momento, os garotos não gostam nada do jeito de ser de Hermione. A garota é filha de trouxas e foi criada em um ambiente trouxa, mas quando ela recebe sua carta de Hogwarts, estuda com afinco todos os livros que se relacionam ao mundo bruxo, mostrando seu conhecimento aprofundado a respeito deste mundo, mesmo não tendo pertencido a ele desde seu nascimento. Hermione parece ter uma predisposição natural para liderar: por estudar muito e por ter o conhecimento de várias coisas, ela normalmente toma a frente nas mais variadas situações, principalmente quando a situação envolve a resolução de um mistério, ação que exige várias visitas à biblioteca e perícia em magia.
A amizade do trio se inicia em um episódio relativamente trágico: em Harry Potter e a Pedra Filosofal, um trasgo montanhês adentra o banheiro feminino, local onde Hermione estava chorando sozinha por estar magoada com um comentário proferido por Rony. Contudo, ele se arrepende de seus dizeres ao ver que ela sumira na mesma hora em que o trasgo adentrara o castelo para atacar os alunos. Os garotos, então, a encontram e os três, juntos, conseguem lutar contra o monstro, usando suas melhores habilidades dentro do pouco conhecimento mágico que possuíam. A cumplicidade do momento, o trabalho em equipe e a sinceridade que percorreu as ações dos três os transformaram em amigos inseparáveis:
Mas daquele momento em diante, Hermione Granger tornou-se amiga dos dois. Há coisas que não se pode fazer junto sem acabar gostando um do outro, e derrubar um trasgo montanhês de quase quatro metros de altura é uma dessas coisas. (ROWLING, 2001, p. 156)
Esse episódio do trasgo é bastante significativo porque cada uma das três crianças revela as características que lhes são mais primordiais, e que, de certa forma, nortearão seus arcos narrativos até o fim da história: o instinto de Harry pede para que ele encontre Hermione e tente salvá-la; Rony, arrependido de sua grosseria, vai se valer do primeiro feitiço que possui na manga para salvar os três da situação em que se encontravam e Hermione, como a voz da consciência para os garotos, ensina-lhes feitiços até nessa situação arriscada.
Rony e Hermione atuam como forças complementares, que guiam Harry durante os sete volumes que compõem a saga. Rony é um autêntico representante das emoções humanas: por não saber lidar com sua insegurança e com a inveja e o ciúme que volta e meia sente de Harry e de Hermione, o garoto, às vezes, comete injustiças e profere grosserias, mas nunca tem medo de assumir seus erros e tentar novamente. Rony oferece a Harry uma família, acolhimento e amor, algo que o protagonista nunca havia presenciado enquanto morador da Rua dos Alfeneiros, número 4.
Hermione, por sua vez, é extremamente racional. Ela é uma espécie de “Grilo Falante” para Harry, pois além de ajudá-lo em suas missões e em suas lições de escola, ela dá o alerta de racionalidade aos pensamentos impulsivos do garoto. Ela estimula atitude quando é necessário, mas também o refreia quando é preciso. Harry precisa da racionalidade de Hermione da mesma forma que precisa das emoções de Rony. Dessa forma, os personagens do trio deixam de ser apenas representações de indivíduos-solo para se tornarem, os três, a representação de uma unidade bastante intrincada em si mesma. Cada um dos três personagens foi construído para complementar um ao outro, cada qual à sua maneira, tornando-se, juntos, uma só força.
A construção do trio enquanto essa unidade intrincada nos permite tecer algumas reflexões sobre a amizade em Harry Potter. A série como um todo nos mostra a importância dessa relação, vide a formação da Ordem da Fênix, do grupo dos Marotos e da Armada de Dumbledore, mas é na relação estabelecida entre Harry, Rony e Hermione que veremos com mais detalhes todos os aspectos que cabem dentro da palavra amigo.
A amizade acontece pela identificação de uma pessoa com outra, é a criação de um laço de cumplicidade, lealdade e companheirismo em uma relação que não é hierárquica, mas sim, fundada em um princípio de igualdade. Na contemporaneidade, muitas obras cinematográficas, televisivas e literárias trazem, para o cerne de suas narrativas, este tipo de relação fraternal construída dentro de um grupo de amigos que, na convivência com seus semelhantes, formam-se a si mesmos.
Essa ideia é debatida no livro Função Fraterna (2000), organizado pela psicanalista Maria Rita Kehl. A autora recupera a ideia de “fratria”, que no mito das origens estudado por Freud possuía uma conotação bastante negativa: a constituição de uma fratria significava, necessariamente, que o pai — ou uma figura patriarcal — seria assassinada. Ao recuperar a ideia, a autora e os outros especialistas que escrevem o livro dão à palavra uma visão mais positiva, de estabelecimento de uma relação fraternal entre as pessoas, mostrando como a imagem do eu também é construída pelo parâmetro de identificação com o outro:
É na circulação horizontal que se cria a possibilidade, para os sujeitos, de desenvolvimento de traços identificatórios secundários (em relação ao traço unário que dá consistência subjetiva ao eu), essenciais para permitir a diversificação das escolhas do destino, em relação às quais o traço unário é insuficiente. (2000, p. 43)
A autora ainda enuncia que as relações horizontais (construídas em detrimento de uma relação vertical e patriarcal) seriam as responsáveis pela modificação e atualização da linguagem e pelas pequenas transgressões realizadas contra figuras institucionais (KEHL, 2000, p. 43), além de serem relações características da democracia moderna, que permite que a troca de saberes e ideias aconteçam por meio de encontros e discussões das pessoas com os seus semelhantes. Ainda neste sentido, a ideia de fratria apresentada por Kehl demonstra que as pessoas possuem uma experiência de pertencimento para além do nicho da família nuclear.
Joel Birman, autor que também escreve no livro de Kehl, discute como a fraternidade e sua representação na contemporaneidade fundamentam uma noção de ética bastante específica. Segundo o autor, a fraternidade só pode acontecer se o sujeito se reconhecer incompleto e precário, encontrando no outro esse mesmo estado de incompletude e percebendo, portanto, que o eu e o outro se encontram em estado igualitário de não suficiência, o que gera identificação. De acordo com o autor, esta ideia de igualdade entre os semelhantes possui respaldo histórico, calcado no conceito de precariedade, que só foi passível de existir junto da modernidade:
O ideário igualitário, que marcou a modernidade, se fundou no pressuposto desta insuficiência subjetiva, criticando mesmo a noção de plenitude. A autossuficiência, como princípio, implica uma hierarquia de base, segundo a qual alguém pode afirmar que pode prescindir os outros, pois se bastaria. (…). Não existiria qualquer igualitarismo possível, enfim, fundando-se neste princípio, já que a lógica da onipotência se imporia desde a origem do sistema em questão. (2000, p. 184)
Essa ideia é colocada em contraste com o ideário de autossuficiência presente nas antigas comunidades aristocráticas, que, de certa forma, ainda está presente no imaginário coletivo e que, no limite, permite que certos indivíduos almejem se colocar em uma posição de poder. Birman ainda afirma que “a solidariedade é a consequência imediata da ética do laço fraterno” (2000, p. 185), pensando em atitudes coletivas que viriam a beneficiar grupos com relações igualitárias.
Voltando a Harry, Rony e Hermione, é possível ver como a relação de amizade construída entre eles é extremamente baseada no conceito de igualdade e de dependência mútua, mas não em um sentido pejorativo. Harry, órfão de pai e mãe e renegado pela família em que está inserido, encontra em Rony e Hermione o amor, o carinho e o apoio necessário para poder cumprir sua jornada dentro do mundo bruxo. Rony, que se sente diminuído em suas relações familiares, consegue encontrar seu próprio valor na vivência com Harry e Hermione. Desta última, muito pouco se fala sobre sua relação com seus familiares e muito se fala de sua relação conflituosa com aqueles que a enxergam como sangue ruim. É com Harry e Rony que Hermione se verá em pé de igualdade, onde ela encontra espaço para dar voz aos seus ideais.
É interessante que as diferenças entre os personagens do trio são salientadas a toda hora na história: é Hermione quem faz a lição de casa para os garotos, é Harry quem sempre vai agir na impulsividade, é Rony quem sempre vai meter os pés pelas mãos. Mas os seus ideais para o futuro acabam sendo os mesmos: derrotar Voldemort. E os três sabem que a tarefa só pode ser feita se eles trabalharem em conjunto. De toda forma, os interesses do trio acabam sendo os mesmos interesses da sociedade bruxa, onde todos, marcados pelas suas diferenças, agem em prol do bem comum.
Neste sentido, a narrativa deixa bastante clara a importância da lealdade e também da fraternidade em momentos de crise, seja ela uma crise social ou uma crise subjetiva. Harry, que é um personagem que tem tendências muito grandes ao heroísmo, tenta persuadir Rony e Hermione a não viajar com ele em sua jornada de destruição de Voldemort. Os amigos já haviam tomado medidas drásticas para esconderem e protegerem suas famílias: Hermione realizou um feitiço em seus pais para que eles perdessem a memória e esquecessem que tinham uma filha e Rony transfigurou um vampiro para que este parecesse com ele próprio, fazendo com que Harry reconhecesse a importância deste grande ato de amizade e coragem:
As medidas que os amigos tinham tomado para protegerem as famílias, mais do que qualquer outra coisa, o convenceram de que iriam acompanhá-lo e que sabiam exatamente o perigo que corriam. Quis manifestar o tanto que isso significava para ele, mas simplesmente não encontrava palavras que fossem expressivas o suficiente. (ROWLING, 2007, p. 82)
Como aludido por Birman e Kehl, a nova valorização do conceito de fratria tem uma motivação histórica forte, marcada pela mudança no imaginário coletivo da contemporaneidade. Harry Potter é uma obra literária contemporânea e, assim como outras, carrega consigo os valores da sociedade em que está inserida. A série não poderia representar melhor a forma da função fraterna nas relações entre seus personagens, que são baseadas em um caráter de igualdade, de respeito, de apoio e de interesses em comum.
Bibliografia
KEHL, Maria Rita (org.). Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
ROWLING, J.K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2001.
_____________. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2007. *Esse texto é derivado da dissertação de mestrado “Leitores e leituras de Harry Potter.
Arte Destacada: AniPokie.deviantart.com
