Mara Lúcia Ribeiro de Sousa
Muito foi dito sobre as visões de Tolkien a respeito de a modernidade e a destruição causada pela industrialização, o desmatamento das florestas nativas inglesas e o crescente uso de veículos que poluíam o ambiente e geravam tanto desconforto no autor. Humphrey Carpenter, seu biógrafo oficial, relata a raiva que o professor de Oxford sentia ao passar por ambientes como os muitos trechos do vilarejo de Sarehole em que morou quando criança e ver que estavam então dominados por bondes e feias casinhas de subúrbio (CARPENTER, 2018, p. 217). “Nessa época da vida ele dizia que não restara uma única floresta ou encosta intacta no país e que, se ainda existisse, ele se recusaria a visitá-la por temer encontrá-la contaminada pelo lixo.” (CARPENTER, 2018, p. 173)
Carpenter também compilou e editou as correspondências trocadas por Tolkien e amigos, fãs, editores e familiares ao longo de sua vida, o que ajuda o leitor a perceber elementos do homem, além do escritor de renome, como a já citada aversão pela modernidade e a industrialização. Na carta de número 64, de abril de 1944, enviada para o filho Christopher Tolkien na guerra, temos, por exemplo, um Tolkien desabafando sobre o trânsito insuportável na frente de sua casa; completando, de forma bastante pessimista, que a vida moderna era apenas barulho e sujeira (CARPENTER, 2012, p. 87).
Já a carta 181, de fevereiro de 1956, traz, entre variados assuntos tratados com o editor Michael Straight, a revelação de Tolkien de que Mordor representa uma situação e não um país em específico. Mordor era a destruição da natureza e o avanço da modernidade cruel: “[…] apesar do espírito de Isengard, se não de Mordor, estar sempre aparecendo. O plano presente de destruir Oxford para acomodar mais carros é um exemplo” (CARPENTER, 2012, p. 252).
No entanto, uma das análises possíveis a respeito da aversão de Tolkien pela modernidade e a industrialização é sua relação com o conservadorismo clássico inglês, parte da cultura do país no final do século XIX e início do XX, precisamente o período de crescente industrialização do país e momento em que Tolkien nasceu e viveu.
Para compreender a relação de Tolkien, o conservadorismo e a pauta ambiental, vale contextualizar o que foi o conservadorismo clássico, que vê a tradição, as instituições, a família e a religião como os princípios que levam a uma sociedade mais plena. Todos esses princípios foram defendidos e preservados por Tolkien ao longo de sua vida (como a valorização da família, seu respeito pela fé católica e admiração pela instituição monárquica inglesa). Para o conservador, a “tradição é sagrada; por meio dela as reais tendências sociais da Providência são exibidas; portanto, a tradição deve ser nossa guia” (MILLS, 2000, p. 284). Roger Scruton, filósofo conservador, afirma que para compreender o pensamento conservador é importante perceber que a tradição e as instituições são os seus pilares fundamentais: é a partir da tradição que a sociedade compreende o papel de cada indivíduo e são as instituições as responsáveis por ordenar a sociedade civil.
Tolkien demonstrava opiniões semelhantes, ao defender as distinções sociais na sociedade inglesa: “Sua visão de mundo, segundo a qual cada homem ocupava ou deveria ocupar uma ‘posição’ específica, fosse alta ou baixa, implica, por um lado, que era um conservador” (CARPENTER, 2018, p. 177).
Se o conservador clássico valoriza a tradição, ele valoriza também o passado como busca de modelos para o presente. Nasce daí o desprezo desse grupo por tudo que é moderno, como observado em Tolkien, que via com pessimismo o progresso do capitalismo e a destruição da natureza: “há outras coisas mais sombrias e terríveis das quais fugir do que o barulho, o fedor, a crueldade e a extravagância do motor de combustão interna. Há fome, sede, pobreza, dor, tristeza, injustiça, morte” (TOLKIEN, 2020, p. 62).
Tolkien, assim como muitos ingleses, tinha o que o historiador Peter Burke afirma ser um “conservadorismo aberto e convicto” (BURKE, 2016, p. 20), o que justifica esse apelo por preservar não só as instituições e tradições do passado, mas também a natureza inalterada, visto que a modernidade e a industrialização haviam manchado a beleza, antes intocável, do campo. O pensador David Lowenthal (2015, p. 44 e p. 106) debate como o inglês tradicional tinha orgulho de seus antepassados, do seu passado rural, aristocrático e medieval; criando um sentimento nostálgico por tudo que fosse antigo e imaculado.
De acordo com Scruton (2012, p.12), a Inglaterra foi palco do movimento ambientalista conservador, nascido como reação à Revolução Industrial. A própria ideia do ambientalismo é “conservar” e manter a ordem social, os costumes, instituições e, principalmente, a natureza. Tolkien não foge dessa visão idealizada da sociedade pré-industrial; já que a destruição do meio ambiente o angustiava. Em seu diário, após uma viagem a Birmingham com sua família (em 1933), Tolkien relata seu desespero ao ver as ruínas da natureza:
“Omito a aflição que senti ao passar por Hall Green — que se tornou um enorme subúrbio dominado por bondes e sem significado, onde cheguei a me perder — e pelo que restou das queridas alamedas de infância, e até mesmo pelo portão do nosso chalé, agora rodeado por um mar de tijolos vermelhos. […] Como invejo aqueles que não tiveram a preciosa paisagem da infância exposta a uma alteração tão violenta e particularmente hedionda”. (citado em CARPENTER, 2018, p. 172–173)
É possível perceber como a pauta conservadora ambientalista está presente na mentalidade e escrita de Tolkien. No prefácio do livro A Sociedade do Anel, o autor retoma imagens do seu passado, como a infância idílica em Sarehole, para lembrar, com nostalgia, como aquelas cenas haviam sido destruídas, no presente, pelo homem moderno (TOLKIEN, 2000, p. xiv).
O próprio Carpenter escreve que Tolkien admirava tanto a natureza e a beleza das árvores que os ents e a Barbárvore seriam a expressão máxima do seu amor e respeito pela natureza (CARPENTER, 2018, p. 266).
Para finalizar, vale lembrar de outro estudioso de Tolkien que retoma a pauta ambientalista presente em sua obra: Alfred Siewers, no livro organizado por Jane Chance, Tolkien’s Modern Middle Ages [A Idades Média Moderna de Tolkien], debate que o filólogo, ao trabalhar temas centralizados na ecologia e no amor à natureza, acabou criando uma obra próxima ao pensamento conservador, sem deixar de atrair, naturalmente, um público muito mais vasto e que vai além de uma única visão política (SIEWERS, 2005, p. 139).
A presença do meio ambiente e o tormento com a sua destruição é parte fundamental para compreender a marca do conservadorismo clássico de Tolkien, preocupado em recuperar um passado sem indústrias e com uma natureza intocável.
Obras citadas
BURKE, Peter; PALLARES-BURKE, Maria L. G. Os Ingleses. São Paulo: Contexto, 2016.
CARPENTER, Humphrey. J.R.R. Tolkien: Uma Biografia. Tradução de Ronald Kyrmse. 1. ed. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2018.
CARPENTER, Humphrey. The Letters of J.R.R. Tolkien: A Selection. London: Harper Collins, 2012.
LOWENTHAL, David. The Past Is a Foreign Country, Revisited. New York: Cambridge University Press, 2015.
MILLS, C. Wright. The Power Elite. New York: Oxford University Press, 2000.
SCRUTON, Roger. Conservadorismo: Um Convite à Grande Tradição. 7. ed. Rio de Janeiro: Record, 2020.
SCRUTON, Roger. How to Think Seriously About the Planet? The Case for an Environmental Conservatism. New York: Oxford University Press, 2012.
SIEWERS, Alfred K. Tolkien’s Cosmic-Christian Ecology: The Medieval Underpinnings. In: CHANCE, Jane (org.). Tolkien’s Modern Middle Ages. New York: Palgrave Macmillan, 2005.
TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: A Sociedade Do Anel. Tradução de Lenita Maria Rimoli Esteves e Almiro Pisetta. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
TOLKIEN, J.R.R. Árvore e Folha. Tradução de Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2020.
Parabéns pelo trabalho! Achei essencial, pois apesar de haver textos em muitos sites abordando o ambientalismo na obra do prof. você foi a única que li até então que investigou esse posicionamento político naquele período histórico: conservadorismo clássico ambientalista o influenciou, já que para o autor o passado deveria ser o modelo par ao futuro. Só senti falta de um poema do tolkien Progress in bimble town publicado em 1931, refletindo os sentimentos de tolkien com relação a Filey.
Olá, Patríck, obrigada pelo comentário!
Sim, bem lembrado do poema e eu só não o analisei no artigo porque fugiria do debate proposto, que é trabalhar o homem político Tolkien para além do campo literário, a partir de correspondências e de sua biografia, mas realmente é uma ótima sugestão para a minha pesquisa (que vai abordar mais a fundo a figura intelectual de Tolkien).