Orques e a composição ontológica

Por Diego Klautau

Uma das coisas mais interessantes ao se estudar Tolkien é a maneira pela qual sua literatura fantástica nos leva a descobrir alguns tesouros filosóficos e teológicos. Por exemplo, é possível investigar como os orques podem nos ajudar a entender o ente (ens) como estrutura ontológica básica em São Tomás de Aquino, especialmente em sua composição feita de essência (essentia) e ser (esse).

Como sabemos, Tolkien postulava que a subcriação literária não deveria somente ser uma alegoria, uma transposição simples de conteúdos objetivos para novas roupagens diretas, como o famoso exemplo de seu grande amigo C.S. Lewis, que fez Aslan, o leão, como Jesus Cristo. Por esse motivo, Tolkien ficava bastante aborrecido quando identificavam o Um Anel exclusivamente como a bomba atômica, ou Sauron como Hitler. Ao mesmo tempo, Tolkien gostava de construir sua fantasia unindo várias qualidades de fontes diferentes, fossem bíblicas, nórdicas, celtas ou gregas, configurando entes ficcionais únicos, mas que, ao mesmo tempo, participavam de formas universais, fossem virtudes ou características de outros entes materiais, imaginários ou espirituais.

O leão Aslan de As Crônicas de Nárnia é considerado uma alegoria de Jesus Cristo.

Um exemplo disso são os Valar. São comumente associados pelos cristãos aos anjos, enquanto admiradores de outras mitologias os identificam como os deuses dos diversos panteões politeístas, como germânicos, gregos, egípcios ou celtas. De fato, eles não se encaixam diretamente nem na categoria de anjos nem de deuses costumeiramente conhecidos do politeísmo. O próprio Tolkien se refere a características deles tanto como àquelas de poderes angélicos quanto as de deuses nos moldes pagãos. Assim, não são meras alegorias nem de um nem de outro. São entes ficcionais únicos, embora compartilhem formas acidentais e essenciais com anjos e deuses mitológicos.

De fato, eles estão submetidos a um Deus único criador, fonte de todo ser, da matéria e das formas, reconhecido por todos como Aquele que concede a existência por pura bondade e vontade. Isso é estranho ao politeísmo, justamente porque Eru não é apenas um demiurgo, um artesão divino que opera em formas contempladas e matéria disponível, ambas não criadas por ele, como na narrativa de criação do mundo no diálogo platônico Timeu.

Por outro lado, os Valar não são apenas passivos a Eru e contemplativos da Criação Divina, como os anjos da teologia cristã, mas participam ativamente de sua concepção, elaborando formas novas, manipulando estruturas do cosmos e operando na realidade de uma forma que nenhum anjo bíblico, nem de perto, consegue agir. Nesse sentido, são eles mesmos que possuem certos poderes demiúrgicos como no mito platônico. Assim, para compreendermos a natureza dos Valar, devemos fazer o exercício imaginário de integrar analogicamente os anjos bíblicos, os deuses pagãos e o demiurgo do mito filosófico de Platão.

Outra característica essencial dos Valar é sua ligação com o mundo físico. Devido à sua própria escolha, estão atados ao mundo material até o seu fim, sendo privados de sua memória completa e do conhecimento inteiro que tinham quando estavam entre os Ainur, no mundo espiritual e na mente de Eru. Dessa maneira assumem formas corpóreas, seja em figuras humanas, animais ou elementos naturais, como água, fogo, ar e terra. Quanto aos poderes demiúrgicos dos Valar, estes podem ser chamados de subcriativos, posto que contribuíram com a própria configuração de Arda e do Universo, quando cantaram a grande canção proposta por Eru e contemplaram a grande Visão oferecida por ele, resultado de seus próprios pensamentos e desígnios, com uma liberdade inclusive de contribuição particular para a Criação de Eru.

Dentre essas contribuições, está a subcriação de essências próprias, que aparentemente não estavam na vontade original de Eru. Algo muito distante do que qualquer anjo cristão poderia conceber. Nesse sentido, Jonathan McIntosh, em seu livro The Flame Imperishable: Tolkien, St. Thomas and the Metaphysics of Faërie, afirma que os Valar estão para os anjos como os elfos estão para os humanos, num lugar diferente na grande cadeia do ser. Da mesma maneira que os elfos estão num lugar próprio entre os homens e os anjos, os Valar estão nesse intermédio específico entre os anjos e Deus.

Alguns conceitos metafísicos

Aqui vale a pena nos determos em algumas definições metafísicas, ou seja, do estudo sobre o ser em sua totalidade. Nessa tradição, o nome dado em termos gerais para cada coisa ou indivíduo material, lógico, ficcional ou espiritual é ente (ens), que significa aquilo que está sendo, que existe no sentido de que é algo. Ora, cada ente possui uma essência (essentia), ou seja, sua estrutura inteligível que forma sua realidade individual, compartilhada por outros de sua espécie, ou seja, sua universalidade. Além da essência, o ente também é formado pelo ser (esse), que discutiremos mais adiante. Assim, a composição ontológica de cada ente é essência mais ato de ser.

No caso dos homens, a essência condiciona e orienta a constituição conjunta tanto da dimensão corporal e material quanto da dimensão racional e espiritual. Todos os homens possuem a mesma essência e, grosso modo, podemos usar também a palavra natureza, que individualiza na sua formação concreta, estabelecendo seu ente singular. Essa configuração que define as possibilidades estruturais internas de uma classe de um ente é chamada de essência. O livro de São Tomás, O Ente e a Essência, desenvolve essas ideias de maneira sistemática com seu rigor habitual.

O poder subcriativo dos Valar é como se um anjo pudesse subcriar uma essência (essentia) de entes (ens) que não nasceram da vontade original de Eru, o que não significa necessariamente que não estavam previstos, pois tudo o que foi criado foi cantado na mente de Eru antes do tempo e da existência material. Da mesma forma, tais essências subcriadas ainda teriam que obedecer aos princípios primeiros da ordenação cósmica feita por Eru. Em termos analógicos, seria como se alguns anjos pudessem formar essências de seres sencientes ou mesmo inteligentes. Isso não significa, contudo, que no mundo de Tolkien os Valar participem da essência ou natureza de Deus, pois são entes que possuem sua própria essência, sendo criaturas de modo absoluto, ainda que com poderes maiores que os coros de anjos medievais. O fato de eles poderem subcriar essências não implica na participação da natureza de Eru.

Ora, embora esse poder subcriativo seja muito além do que a Bíblia ou a teologia permitem conceber aos anjos, é bastante comum que os deuses politeístas criem seus próprios povos e adoradores, como na cadeia ontológica degenerativa da mitologia grega, em que os titãs são os pais primeiro dos deuses e depois criam os homens, ou como a narrativa da criação dos homens pelos deuses nórdicos, que foram feitos a partir de madeira, mesmo que esta não tenha sido feita pelos próprios deuses. Todavia, diferente dos deuses desses panteões, os Valar não poderiam fazer com que essas essências viessem a ser (esse) de forma plena, pois somente Eru poderia conceder que tais essências pudessem realmente transformar-se em entes reais, substâncias que seriam de forma individual, por si e em si.

É justamente a exclusividade em conferir o ato de ser (actus essendi) de forma pura que une Eru com o Deus Bíblico, segundo a metafísica de São Tomás de Aquino. Segundo o mestre escolástico, a composição ontológica de um ente (ens), uma substância individual que existe efetivamente, é dupla: essência (essentia) mais o ser (esse). A essência só se realiza verdadeiramente quando se une ao que chamamos de ato de ser, o atributo que garante que essa essência não seja apenas uma virtualidade. É essa mesma qualidade que diferencia o Deus Bíblico dos poderes demiúrgicos descritos por Platão, pois o artesão cósmico descrito pelo mito filosófico apenas configura uma matéria indeterminada, incriada, a partir de formas que ele mesmo contempla no mundo da Ideias, também eternas. A criação ex nihilo, do nada, que abarca a feitura tanto da matéria quanto das formas, é uma qualidade do monoteísmo bíblico.

Nesse sentido, no mundo de Tolkien somente Deus/Eru pode conceder o ser (esse) aos entes (ens) concretos, sencientes e inteligentes, realizando-os como substâncias individuais que têm alma, liberdade, consciência e vontade. Tais criaturas possuem o ser de forma análoga, na participação (participatio) de Deus/Eru, pois somente ele é em si mesmo e por si mesmo de forma simplesmente plena (ipsum esse subsistens), condicionando e sustentado todos os outros entes, que são apenas de forma análoga ao próprio Deus, sendo dependentes dele de maneira absoluta. Assim, como dissemos antes, nenhuma criatura, nem mesmo os Valar, participa da essência divina, mas todas as criaturas, até mesmo os Valar, só são porque participam do ato puro de ser, que subsiste por si e em si de forma própria e absoluta (ipsum esse subsistens), ou seja, o próprio Deus/Eru. Esse princípio de participação no ser de Deus é completamente alheio a qualquer mitologia politeísta, sendo a característica própria e distinta do monoteísmo.

Ainulindalë Harmony, Anna Kulisz

É como se os deuses politeístas só pudessem conceber virtualmente a forma de suas subcriações sencientes e inteligentes e, quando fossem materializá-las na madeira, segundo o exemplo dos nórdicos, faltasse algo, seu espírito, sua vontade, seu coração. Seriam como autômatos, estátuas feitas de pedra, carne ou plantas, somente animadas pela vontade de seus subcriadores. Esse atributo único de Eru, o actus essendi, é a Chama Imperecível ou o Fogo Secreto ao qual O Silmarillion faz referência, que Melkor tanto invejava, mas que estava com — ou era ele mesmo — o próprio Eru.

O surgimento dos orques

E aqui chegamos, enfim, aos orques como o princípio desencadeador dessa especulação. Sim, é apenas uma divagação. Estamos tratando de literatura, daquilo que existe somente em termos ficcionais. Entes de razão, sem existência material, é bom sempre lembrar. No mesmo sentido, é um exercício livre e muito divertido, de especulação sem uma comprovação inquestionável no próprio legendário tolkieniano.

O relato em O Silmarillion demonstra essa particularidade de Eru como ato puro de ser. Quando caiu para a matéria, Melkor foi denominado Morgoth — a princípio por Fëanor e seus seguidores — e decidiu zombar de Eru, transformando elfos e homens em orques. Ora, sua incapacidade de criar seres malignos por natureza já demonstra sua incapacidade diante do ser, pois somente poderia alterar as criaturas de Eru e não criar, ex nihilo, criaturas más.

A questão que quero ressaltar é a operação metafísica feita por Morgoth na subcriação dos orques enquanto corrupção e deformação. De fato, a própria essência dos homens e elfos foi a base para a formação de uma nova espécie. Não foi apenas um experimento biológico, no qual os bebês orques nasceriam como homens ou elfos e seriam torturados desde a infância para crescerem como orques. Da mesma forma, não é o caso de que se um orque se redimisse e voltasse à obediência aos Valar e a Eru ele voltaria a ser um homem ou um elfo. Mas Morgoth, usando o poder subcriativo dos Valar, fez uma nova essência, a natureza órquica.

Justamente porque lhe faltava a Chama Imperecível, o ato de ser, era necessário subcriar a partir de algo de natureza já senciente e inteligente de forma plena, como homens e elfos. De outra forma, seriam apenas os tais autômatos, como eram os anãos quando Aulë os subcriou, pois a eles o Ferreiro só deu a essência (essentia), ou seja, a organização estrutural entre forma e matéria, mas não deu o ser (esse), pois é algo que somente Eru poderia conceder, como de fato fez depois que Aulë reconheceu seu erro, pediu perdão e, por isso, teve seus filhos plenamente constituídos no ser, com liberdade e razão.

Aulë and the Seven Fathers, Ted Nasmith.

Se os orques fossem apenas subcriações do próprio Morgoth, nunca poderiam ser (esse) de fato, pois Eru não o concederia. Assim, o Inimigo teve que usar como base homens e elfos, pois esses entes (ens) já participavam (participatio) do ser em Eru. Já possuíam, analogamente, o ser (esse), e esse mesmo ser que foi usado de suporte para a reconfiguração da essência (essentia) de homens ou elfos para a natureza órquica, garantindo a plena existência dos orques, com inteligência, sensibilidade e vontade, mesmo sem o desejo de Eru, que ainda assim os sustentou no ser, mesmo sendo aberrações, pois derivaram de criaturas, elfos e homens, que já eram antes de serem transformados em orques. É justamente nesse sentido que a subcriação dos Valar, inclusive das essências, é muito mais um fazer no sentido de rearranjo a partir de realidades preexistentes do que um criar no sentido próprio, no sentido de vir do nada, capacidade exclusiva de Eru.

First orc, Kimberly

Essa é a grande profanação de Morgoth, uma blasfêmia terrível. Assim, os bebês orques já nasciam orques, pois compartilhavam a essência órquica subcriada por Morgoth e porque possuíam o ato de ser concedido por Eru aos homens e elfos, servindo de base para a corrupção original de Morgoth. Isso ocorreria analogamente ao pecado original no mundo primário — embora com o acréscimo da alteração da própria essência dos entes — sendo hereditário de maneira inescapável.

Contudo, essa nova essência, a natureza órquica, não seria má em si mesma, ainda que fosse uma corrupção, no sentido de alteração degenerativa, de homens e elfos. Com efeito, mesmo que um orque abandonasse as tropas de Morgoth ou Sauron e pedisse asilo entre os povos livres e, lentamente, se voltasse para a obediência aos Valar, ele continuaria com seu corpo órquico e com suas características mentais e espirituais de orque, mesmo que desenvolvesse virtudes e refinamento élficos. Sua preferência de habitação em certas áreas do meio natural, sua rusticidade no trato das ferramentas e da medicina, sua forma de amar e de organizar a comunidade ainda seriam mais brutais, embora não necessariamente más.

Existem outras narrativas, inclusive de Maiar em forma de orques, mas quero enfatizar essa versão da corrupção dos homens e elfos em orques, na qual podemos verificar que se confirma a teoria de que os Valar não poderiam criar do nada, como Eru, nem mesmo dar a vida senciente e inteligente a matéria pré-existente, fazendo apenas autômatos sem vontade nem sensibilidade. Por exemplo, na seção Myths Transformed do livro Morgoth’s Ring, da série The History of Middle-earth, existem várias outras narrativas para o surgimento dos orques que divergem da que está em O Silmarillion, como os orques sendo de fato esses autômatos movidos somente pela vontade de Morgoth; ou sendo Maiar corrompidos em forma de orques; ou mesmo derivados de homens e elfos que já eram cruéis se corromperam voluntariamente para Morgoth, cuja perversidade da alma se exprimiu na deformação do corpo.

Obviamente, a escolha de cada uma dessas narrativas quanto a origem precisa do surgimento dos orques altera o resultado desse exercício especulativo metafísico. Porém, o comum em todas elas, e o argumento central desse ensaio, é que os Valar podem de fato subcriar essências, como Aulë fez com os anãos, como Yavanna com os Ents, e Manwë com as águias. Da mesma forma, os Valar são dependentes da graça de Eru para que tais essências sejam agraciadas com o ato de ser. Morgoth, como o Valar mais poderoso, também possuía essa característica da essência “valárica” e, justamente por essa natureza dos Poderes do Mundo não ser divina no sentido próprio, era carente da possibilidade de concessão do ato de ser, uma singularidade de Eru. Assim, Morgoth teve que parasitar criaturas que já eram originalmente, para conceber suas essências subcriadas como uma sobreposição ontológica.

Em O Silmarillion diz-se que Arda é constituída por uma parte da essência de Melkor, assim como a de cada um dos Valar. Desse modo, tal como as águas estão para Ulmo e os ares para Manwë, as chamas vulcânicas destrutivas estão para Morgoth. Novamente, o poder subcriativo dos Valar é inquestionavelmente superior aos angélicos.

De fato, em Morgoth’s Ring o relato da profanação de Morgoth é ainda mais terrível, pois sua encarnação permanente em Arda teria o objetivo de controlar totalmente a matéria, numa tentativa de se identificar com ela, por meio de uma operação similar à que Sauron tentaria mais tarde com o Um Anel. Seu sucesso foi, contudo, parcial. Embora toda matéria em Arda tivesse algum ingrediente de Morgoth, e, por isso, a matéria decaía e apodrecia, essa identificação não era absoluta, já que o próprio Morgoth não tinha criado a matéria, como o próprio Tolkien acentua no texto. Com efeito, certos elementos eram mais propensos a exaltar esse ingrediente de Morgoth, como o ouro, enquanto outros eram mais puros, como a água, que é descrita como praticamente livre da influência de Morgoth.

Essa descrição em Morgoth’s Ring é ousada e se torna aparentemente limítrofe para o monoteísmo, tangenciando a possibilidade de uma interpretação de um deus mal criador, próximo do maniqueísmo. Contudo, Tolkien faz questão de afirmar, nessa versão, que Morgoth não é o criador da matéria na qual buscou se fundir e que seu sucesso foi somente parcial, existindo uma variação de seu grau de influência entre os elementos.

Morgoth, JMKilpatrick

Nesse sentido, em uma característica análoga ao cristianismo, podemos aproximar Morgoth de Satanás, pois o pecado como origem da morte no mundo é uma invenção, ou subcriação, angélica. E embora teologicamente não seja consenso que esse mesmo pecado tenha sido transportado fisicamente para a dimensão material, Satanás é chamado de príncipe deste mundo, assim como São Paulo (Rm 8, 18-25) escreve que a própria Criação foi submetida à vaidade e tem a esperança de ser libertada da escravidão da corrupção. Além disso, na Bíblia, muitos elementos têm significados tanto positivos quanto negativos a depender do contexto, como o exemplo da água, que no legendário de Tolkien é o mais livre da contaminação de Morgoth. Nesse caso, apesar de biblicamente estarem associada a caos e destruição, como no dilúvio, as águas são sobretudo símbolo do batismo e da purificação do homem e da renovação da terra. Assim, na descrição da Terra-média, Tolkien ameniza esse aspecto negativo da água, embora admitindo que possa ser profanada, e acentua seu aspecto purificador e de proximidade com a divindade no sentido próprio de Ilúvatar. Isso se verifica, para além da memória das Ilhas de Númenor e Valinor, nas abundantes descrições de maravilhamento e nostalgia pelo mar em O Senhor dos Anéis.

Redenção para os orques?

Assim, surge a pergunta: os orques teriam redenção? Como dissemos, depende de qual versão de seu surgimento adotamos. Se eles são como nos aparecem em uma das versões de Morgoth’s Ring, apenas seres bestiais animados pela própria vontade maligna de Morgoth, então não são verdadeiramente entes, mas apenas constructos de maldade sem alma espiritual e, assim, obviamente não têm salvação.

Contudo, segundo a versão de O Silmarillion, eles foram criados originalmente como elfos e homens, uma essência compatível com seu ato de ser, que é uma participação analógica no próprio Eru. O mal não pode criar do nada, apenas corromper, e a natureza órquica, embora fruto de uma corrupção transformadora da natureza humana ou élfica, não é má em si mesma, porque possui o ser (esse) participado de Eru. Tanto que os bebês orques deveriam ser torturados e criados em ambiente de brutalização para que fossem adestrados na violência. Os que não se adaptavam provavelmente morriam rapidamente na infância e somente aqueles que se deformavam em violência e maldade conseguiam sobreviver, num processo de seleção artificial demoníaco. Em outro aspecto, os Uruk-hais foram aperfeiçoados a partir dos orques e gestados em crueldade e sofrimento, justamente porque foram moldados em torturas e perversidade.

Finalmente, em O Senhor dos Anéis existe a informação de que Saruman teria cruzado homens e orques, criando os meio-orques, assim como existiam os meio-elfos. Ora, essa possibilidade já manifesta a paridade ontológica entre homens, elfos e orques, considerados em si mesmos como criaturas participantes do ser em Eru que, embora de espécies diferentes, poderiam reproduzir entre si. Numa especulação sobre as relações entre natureza e graça, seria até possível pensar que um meio-orque poderia ter, em termos lógicos metafísicos, a mesma possibilidade, a partir de sua essência, de escolher entre ser um homem ou um orque, assim como os meio-elfos que foram agraciados por essa escolha pelos Valar.

Ademais, os orques não são necessariamente demônios encarnados de forma provisória e, embora profundamente condicionados por Morgoth e Sauron, poderiam, segundo Morgoth’s Ring, se rebelar contra seus mestres e buscar um lugar entre os povos livres. Se isso acontecesse, e Tolkien afirma que essa era a opinião dos sábios, eles não deveriam ser atormentados ou torturados e, se pedissem misericórdia, ela deveria ser concedida. Contudo, o quanto de corrupção em sua inteligência, vontade e sensibilidade deveria ser removida é inimaginável. Talvez, tal como na tradição cristã baseada na narrativa bíblica sobre a abolição do pecado original, somente uma encarnação direta de Eru no mundo material poderia promover tal milagre.

Tal como todos os entes de Arda, segundo as terminologias do próprio Tolkien, a essência órquica era composta de hröa (corpo) e fëa (espírito), mas que deveria ser animada pela Chama Imperecível. De fato, a composição ontológica dos entes em Arda é essência (hröa e fëa) mais ato de ser (Chama Imperecível). Mesmo em outras essências superiores a elfos, homens e orques, como no caso dos Maiar, auxiliares dos Valar, nos quais a natureza ainda inclui a possibilidade do fana, uma estrutura material mais poderosa que os hröa, também se exige a infusão da Chama Imperecível para sua realização no ser. No caso dos Valar, a participação do hröa é quase acidental, mas seu enlace com mundo material exige certa necessidade do componente físico, ainda que dispensável, tal como é da natureza humana usar roupas e ferramentas para sua proteção e expressão cultural.

…os orques […] poderiam […] se rebelar contra seus mestres e buscar um lugar entre os povos livres. Se isso acontecesse, […] eles não deveriam ser atormentados ou torturados e se pedissem misericórdia, ela deveria ser concedida.

A partir dessa perspectiva de a essência de um ente exigir uma dimensão material para sua realização, São Tomás de Aquino explica na Suma Teológica que os próprios anjos só são irremediavelmente malignos porque eles escolheram com base no conhecimento pleno de forma inteligível, sem estar presos às limitações do processo de conhecimento via os sentidos na estrutura corporal, percebendo tudo o que envolvia suas ações. Assim, sua escolha foi única e definitiva. Os homens, ao contrário, por terem corpos e se guiarem por conhecimentos por meio de limitações corporais dos sentidos, não têm conhecimento pleno de suas próprias ações, tendo a possibilidade de serem perdoados e recomeçar.

Ora, até mesmo os Valar estão presos a Arda, em corpos ou em elementos da natureza, como os mares de Ulmo. É dito em O Silmarillion que, quando os Valar desceram a Arda, esqueceram de grande parte do que tinham visto na Mente de Eru, fora do tempo e do espaço, e algumas partes da história que se desenvolvia em Arda eram obscuras mesmo para eles. Assim, estando atados à matéria até o fim do mundo e com memória limitada da Canção e da Visão de Ilúvatar, eles mesmos podiam errar e ser perdoados, como aconteceu no episódio de Aulë e a subcriação da essência dos anãos.

Nesse sentido, em extremo, até mesmo Sauron poderia ser redimido. O único encarnado que já estava perdido era, talvez, Morgoth, pois é dito que ele era o que mantinha o conhecimento da época antes das épocas, da grande música na mente de Eru, pois compreendia um pouco de todos os Ainur, e que mesmo assim mantinha sua posição de rebeldia, até ser banido para o Vazio. Ainda assim, é dito que parte de seu ódio e violência foram deixados como mácula no mundo, e é com esse desatino que ele move a vontade dos povos livres para o mesmo vazio no qual jaz.


Obras consultadas

AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. Tradução: Carlos Arthur do Nascimento. Petrópolis: Vozes, 1995.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Coordenação da tradução: Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira. São Paulo: Loyola, 2001.

MCINTOSH, Jonathan S. The Flame Imperishable: Tolkien, St. Thomas and the Metaphysics of Faërie. Kettering, OH: Angelico Press, 2017.

PLATÃO. Timeu. Tradução: Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012.

TOLKIEN, Christopher (ed.). Morgoth’s Ring. London: HarperCollins, 2002.

TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis. Tradução: Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2019.

TOLKIEN, J.R.R. O Silmarillion. Tradução: Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2019.


Diego Klautau é doutor em ciências da religião e conheceu Tolkien jogando RPG com os amigos.


3 thoughts on “Orques e a composição ontológica

  1. Que texto delicioso,Professor Diego! Como sempre, sua erudição são um norte para mim nestes tempos obscuros.
    Uma questão interessante que ficou na minha cabeça quando li o livro do Henry Gee, The Science of Middle-earth: se orques são elfos torturados, não deveriam nascer bebês élficos? Nesse caso, os milhares de bebês órquicos teriam que sofrer o processo de “orquização”? Seria um tremendo esforço ao longo das Eras!

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