Curiosidades e tolkienices de quem esteve roverandando

Rosana Rios

Faço parte de uma tribo que leu as obras fundamentais de Tolkien em traduções de Portugal, porque no Brasil ainda não existiam. O pior, na época, era não ter com quem comentar… Porém, vivíamos os primórdios da Internet (como se costuma dizer por aí, quando cheguei era tudo mato) e, por felicidade, logo começaram a surgir grupos que se comunicavam on-line, como o Conselho Branco e a Heren Hyarmeno. Assim descobri outros doidos que, como eu, se encantavam com aquelas narrativas.

De lá para cá, muito aconteceu. Primeiro, o fandom inchou com o advento dos filmes de Jackson e, depois, várias traduções brazucas surgiram — embora algumas até já tenham desaparecido — mas nós, os fiéis, continuamos buscando os tesouros escondidos nas entrelinhas e lendo o máximo que conseguíamos da obra do Professor, comparando traduções.

Para coroar anos de leituras, em 2005 tive a alegria de perambular junto a alguns amigos do CB: comparecemos aos festejos da Tolkien Society original, comemorando os 50 anos da publicação de The Return of the King. Foi na cidade de Birmingham, no Reino Unido; fizemos os tradicionais passeios tolkienistas (entre outras aventuras, fotografamos a casa em que a família Tolkien morou, fomos à igreja em que o padre Morgan oficiava, viajamos a Oxford para visitar o Christ Church College e almoçar no The Eagle & Child).

Em Birmingham, vimos a abertura do evento com fala de Priscilla Tolkien, seguida por palestras incríveis (adorei a do Tom Shippey) e a confraternização com fãs de todo o mundo — todos usavam crachás com nome e nickname, o que era divertido, pois as pessoas arregalavam os olhos e davam um passinho para trás ao lerem o meu, Shelob —, além de conseguirmos autógrafos dos ilustradores. Ted Nasmith já era meu amigo desde que veio ao Brasil pela primeira vez e fui designada para ser sua intérprete. Na Inglaterra, ele apresentou Alan Lee ao nosso grupo. Que dia!

No entanto, para mim, o momento crucial dessa viagem foi a participação em um evento que, no programa do encontro, constava como “Leitura Internacional do Poema do Anel”. Numa sala de aula da Aston University, que sediava as palestras, começou a chegar tanta gente que o espaço ficou pequeno — ninguém imaginava que aquele ponto da programação atrairia tanto público. Um coordenador atônito decidiu perguntar a cada um dos presentes qual a sua procedência e a anotar nomes de países no quadro-negro. O resultado foi haver ali pessoas de mais de 30 países, falantes de 30 línguas diferentes — se considerarmos as diferenças entre o Inglês britânico e o norte-americano, assim como entre o Português lusitano e o brasileiro…

Um representante de cada país foi convidado a ir lá na frente e ler o Poema do Anel em sua língua pátria. Foi emocionante, não só por ver que vários declamavam o poema de cor — mas porque entendíamos tudo, já que cada um de nós, membros do fandom, conhecia cada linha do poema.

Era sensacional perceber como as palavras se parecem, ter alguns insights de como as linguagens são constituídas e notar as especificidades sintáticas exigidas pelas diversas versões. Eu só pensava que, se alguma parte de todo o evento pudesse atrair a atenção de Tolkien em espírito (onde quer que ele estivesse, em 2005), seria aquele encontro.

O encontro deveria ter acabado aí, porém as pessoas não queriam ir embora. Um dos presentes disse que tinha levado uma versão em latim. Por que não lermos também em línguas mortas? Ah, foi outra festa. Havia publicações alternativas que exibiam traduções do Poema em línguas saxã, celta, grega arcaica e nem me lembro mais o quê. E, quando não havia mais desculpas para estarmos ali, nós, os leitores e fãs de tudo que é canto do planeta, uma garota sugeriu:

O penúltimo a se apresentar foi um rapaz chinês. Explicou que em seu país não existiam traduções para O Senhor dos Anéis, mas que ele lera em inglês e havia traduzido, por conta própria, o poema para o mandarim. Foi aplaudidíssimo. Porém não tanto quanto o último, um norte-americano, que não declamou nosso conhecido “One Ring to rule them all”… Ele foi lá para a frente, tirou a camiseta e virou-se. O Poema do Anel estava tatuado inteiro em suas costas.

— Falta lermos na língua em que ele foi criado… A Língua Negra de Mordor.

Silêncio total.

Todo mundo ali pensou a mesma coisa: aquilo era arriscado. Poderíamos conjurar “vocês-sabem-quem”! Mas um sujeito corajoso não esperou convite, adiantou-se, foi lá e recitou:

Ash nazg durbatulûk, ash nazg gimbatul

De volta ao Brasil, continuei lendo o que aparecia da obra do Professor, até que fui apresentada à sua obra infantil. Eu já escrevia para crianças desde 1986 e não pensava que minhas paixões leitoras se aproximariam dos meus estudos e da ficção especializada nos pequenos leitores. Mas ali estavam as deliciosas obras “Letters from Father Christmas” e “Roverandom”… As Cartas consegui na Strand Book Store, livraria de rua em Nova York (uma edição lindíssima com fac-símile das cartinhas colocadas em envelopes, embora não contivesse todos os textos), e as aventuras de Rover li quando publicaram a primeira tradução para o Português.

Na época, tínhamos no Conselho Branco um projeto de contação de histórias chamado “Casa de Vairë”; pesquisávamos mitos e lendas para recontar entre nós, mas também resumíamos alguns textos de Tolkien para fazer narrações em eventos de literatura fantástica e RPG. E, em duas ocasiões, juntamos a turma ir para contar história a crianças em um hospital de Sampa.

Pois nosso maior sucesso foi justamente contar o resumo da história de Rover para as crianças hospitalizadas e suas mães! Cada vez que um novo cãozinho aparecia na narrativa, eu dizia:

— Vocês nem imaginam qual era o nome daquele cachorro!

E um coro berrava, em pleno hospital: ROVER!

Toda criança perdeu, algum dia, um brinquedo de que gostava; todas conseguem identificar-se com a tristeza de Michael (ou do Menino Dois), após perder seu cachorrinho de brinquedo na praia. E elas entendem a perda, ou aceitam-na, por meio do encantamento que a história traz. Fato que ocorre com toda Literatura, na verdade… Sempre há um bom livro que ajuda nossas perdas a serem suavizadas pela catarse da ficção.

No caso de Rover, descobrimos que o cãozinho não se perdeu, na verdade! Ele foi parar na lua, no fundo do mar, e reencontrou sua casa depois de muitas aventuras — já que era, originalmente, um cachorro de verdade enfeitiçado por um mago muito mal-humorado…

Eu adorava contar essa história às crianças.

Mas nunca, em meus mais loucos sonhos, imaginei que um dia seria convidada a fazer parte da seleta confraria que traduz Tolkien por aqui, nem que me caberia mexer com sua obra infantil, e muito menos com essa deliciosa história.

Quando li Roverandom pela primeira vez em português, notei que a tradução não levava em conta a especificidade que existe quando a gente narra para crianças. Era uma tradução para a leitura adulta. E eu já havia traduzido outros autores infantis clássicos[1] para saber que, às vezes, é preciso fazer algumas transgressões — inverter as expressões e até frases inteiras (não só por conta das normais inversões entre substantivos e adjetivos), mas principalmente para conseguir que o leitor entenda do que estamos falando. É preciso destacar as onomatopeias, amadas pelos jovens ouvintes; e, de vez em quando “quebrar” parágrafos imensos, nos quais os olhos do leitor iniciante perde o fio da meada. Lembrar de enfatizar as pausas, pois em muitas ocasiões a história é lida para os que ainda não foram alfabetizados.

É preciso ainda, quando se publica para o público infantil (como o próprio Professor frisou, ao preparar seu guia para tradutores em O Senhor dos Anéis) verter nomes de personagens e locais para manter vivas certas brincadeiras com a forma e o conteúdo das palavras. E, nunca, nunca mesmo, excluir os vocábulos “difíceis”, que ainda não fazem parte do repertório de determinadas faixas etárias. Afinal, a leitura literária é, antes de tudo, uma abertura para aquilo que ainda não se conhece, e o próprio Tolkien acreditava na importância de ampliar o vocabulário de nossos pequenos (como ele diz textualmente em “On Fairy-stories”).

Claro, há palavras e expressões intraduzíveis, ou cuja tradução acabaria com alguns divertimentos e graças do original. Como, por exemplo, traduzir “Rover”? Sabemos que “to rove” significa vagar, perambular, andar sem destino certo. E “random” refere-se a algo aleatório, um acaso. Como Rover acaba sendo um nome comum para cãezinhos, mesmo no Brasil, optamos por manter o nome assim mesmo, sem transformá-lo em “Andarilho” ou “Vagabundo”. Porém, um trecho da obra trouxe uma ideia nova:

(…) I did nothing but run away from the time I was a puppy; and I kept on running and roving (…)

(…) tudo que fiz, desde que era um filhotinho, foi fugir; vivia correndo e vagando, roverando (…)

Aquele neologismo que acrescentei, “roverando”, era um gerúndio que podia muito bem servir como o nome alternativo do nosso cãozinho. Trazia a sensação de movimento; e era mais fácil para uma criança pronunciar que o anterior, com o “m” no final, já que em português muitas palavras terminadas em “m” acabam por ganhar a terminação “ão”. Já para os magos, a ideia foi manter os nomes, pois Tolkien desejava que fossem sonoros, bizarros e engraçados — em Psamatos apenas tirei o “h” de “Psamathos”, e Artaxerxes ficou assim mesmo. Dignos precursores de Radagast, sempre achei.

Tenho netos: um de 9 anos e um que tem 5. Era neles que pensava ao traduzir “Roverando”, da mesma forma que Tolkien inventou a história para seus próprios meninos (John tinha 9, Michael quase 5 e Christopher menos de um ano). Se os meninos Um, Dois e Três se encantaram, nosso desejo é de que os novos leitores também se encantem, divirtam-se e (quem sabe?) fiquem menos tristes ao perder um brinquedo, imaginando que ele possa, neste momento, estar na lua ou no fundo do mar pela ação de algum mago esquisito…


[1]     Traduzi, por exemplo, o conto “Little Dot” – “Manchinha” – de Diana Wynne Jones, para a obra Firebirds (Org. De Sharyn November – São Paul: DCL, 2008) e “The Tale of Peter Rabbit” – “A História de Pedro Coelho” – de Beatrix Potter (São Paulo: Ed. Barbatana, 2017).


Rosana Rios é autora de Literatura Fantástica, Infantil e Juvenil desde 1986, e lê Tolkien desde 1990.



1 thoughts on “Curiosidades e tolkienices de quem esteve roverandando

  1. Estou bastante ansioso para leitura desta tradução! A Harper que já vinha acertando ao convocar fãs e conhecedores de longa data da obra do professor, deu mais um tiro certíssimo; já que a Rosana Rios congrega seu conhecimento da obra, com larga experiência em ficção para crianças. O trabalho gráfico casado com essa tradução certamente competente, fazem dessa mais um belo livro que temos aqui. Fico somente na expectativa de uma edição “ampliada” considerando o material extra que a mesma possui; mas entendo a opção de retirá-lo de um volume mais voltado para crianças.

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