Cristina Casagrande
Nos outros textos sobre Lúthien em comparação a personagens do contos de fadas, como a Branca de Neve e a Rapunzel, já vimos o fator simbólico da aparência de Lúthien que reflete seu caráter e destino, e sua maneira de lidar com os fatores externos impostos sobre ela, ao relatarmos a sua fuga ativa do cativeiro. A seguir, falaremos de sua atitude perante o desconhecido, o perigo e os vilões que surgem em sua jornada, atravessando a floresta.
Encontramos em uma conhecida personagem de contos de fadas essa relação da menina, que vivencia a fase de deixar a infância, com o lobo escondido na floresta que tenta atacá-la de forma manipuladora. “Chapeuzinho Vermelho” é um dos contos de fadas mais analisados no seu campo mítico-simbólico, em que a protagonista passa da condição de menina para a mulher. A cor de seu chapeuzinho de veludo, vermelha, que ela ganhou da avó, é interpretada por muitos como característica determinante na representação simbólica da menarca da moça. Enquanto a avó estaria passando pela fase da menopausa, deu a vez a menina que atingia a plenitude de mulher.
Para cruzar esse limiar da infância para a puberdade, Chapeuzinho precisa atravessar a floresta, até chegar na casa da sua avó. Aliás, a floresta é um elemento presente nos quatro contos aqui analisados: “Beren e Lúthien”, “Branca de Neve”, “Rapunzel” e “Chapeuzinho Vermelho”. Em todos eles, a selva traz a simbologia do perigo, do mistério, da solidão das protagonistas — sempre vulneráveis.
Todas elas precisam passar pela floresta para se firmarem como indivíduas, para amadurecerem e se provarem heroínas. Contudo, Lúthien não encontra apenas perigo na floresta, mas também um grande amor: Beren. Nesse sentido, o próprio filho de Barahir pode ser interpretado, por Lúthien, como uma espécie de “lobo”, a priori. Isso porque ele é não apenas um desconhecido, mas alguém que lhe desperta seu lado selvagem, seu lado Tinúviel, o rouxinol que lhe dará a vida por amor.
Entretanto, na floresta, Lúthien encontra também seus lobos propriamente ditos. A começar pelos filhos de Fëanor, Curufin e Celegorm. Este se apaixonou por Lúthien e desejou tomá-la para si e, simulando ajudá-la na busca por Beren, acabou colocando-a em um cativeiro em Nargothrond. Com a ajuda de Huan, o Mastim de Valinor que tinha sido dado ao Elfo Celegorm por Oromë, o Vala Caçador, Lúthien consegue escapar.
Ao chegar à Ilha dos Lobisomens, a fortaleza de Sauron, Lúthien enfrentou o perigo de ser atacada por vários lobos a mando de Sauron, mas todos eram abatidos por Huan, até mesmo o terrível senhor dos lobisomens Draugluin fora derrotado por Huan, escapando ferido até morrer aos pés de seu senhor Sauron. A própria Lúthien irá enfrentar e derrotar o Lobo-Sauron, com a ajuda de Huan, o Cão de Valinor. Ela rende o inimigo, ameaçando-o enviá-lo para junto de Morgoth e ser escarnecido por ele, a menos que ele cedesse a ela o comando de sua torre. E assim, o tenente de Morgoth cede à princesa élfica sua torre e foge na forma de vampiro, partindo para a Taur-nu-Fuin.
Então Lúthien se postou sobre a ponte, e declarou seu poder: e soltou-se o feitiço que juntava pedra a pedra, e os portões foram derrubados, e as muralhas, abertas, e as covas, desnudadas; e muitos servos e cativos vieram para fora em assombro e temor, protegendo os olhos da pálida luz da lua, pois tinham jazido longamente na escuridão de Sauron. (TOLKIEN, 2019, p. 240).
Vê-se, já nessa passagem, que a missão de Lúthien vai muito além de concretizar uma bela história de amor, pois suas qualidades precipitarão muitas forças malignas e transmitirão as bênçãos da Terra Abençoada que corre no seu sangue a todos os seus descentes, elfos e homens. Mas ela demonstrará ainda mais seu poder, mantendo suas qualidades mágicas e femininas: enfrentando Morgoth, o mais poderoso, astuto e temível inimigo da Terra-média e além de toda Arda.
Os olhos dele não a intimidaram; e ela lhe disse seu nome verdadeiro e ofereceu seus serviços para cantar diante dele, a maneira de um menestrel. Então Morgoth, contemplando sua beleza, concebeu em seu pensamento uma luxuria maligna e um desígnio mais sombrio do que qualquer outro que lhe tivesse vindo ao coração desde que fugira de Valinor. Assim, foi iludido por sua própria malícia, pois ele a observava, deixando-a livre por algum tempo, e tendo prazer secreto em seu pensamento. Então, subitamente, ela escapou de sua vista e, das sombras, começou uma canção de doçura tão suprema e de poder tão cegante que lhe era forçoso escutar; e sobreveio a ele uma cegueira, enquanto seus olhos iam de cá para lá a procura dela. (Ibidem, p. 247).
Vemos, nesses excertos, alguns pontos que evidenciam as qualidades de Lúthien. Primeiro, ela não se intimida com os olhos do demônio de Angband. Como ela tem o sangue Maia, herdado da mãe, Melian, ela traz consigo o poder dos Ainur, ainda que de menor forca que Morgoth, que era equivalente a um Vala, ou seja, um Ainu de maior poder.
Outro ponto a ser destacado é que ela não só não se intimida como se apresenta, dando o seu próprio nome, tal como é, e toda a ascendência que há por trás dela. Em Tolkien’s Theology of Beauty, Lisa Coutras atenta para essa questão do nome em Tolkien:
Para Tolkien, o “verdadeiro nome” de alguém tem uma relação inteligível com o seu próprio ser. A declaração de Lúthien sobre identidade e uma declaração do seu ser. Ao “nomear seu próprio nome” ela então usa a música como o mais completo poder expressivo de seu ser, cantando “uma canção de poder” para lançar um encantamento. (2016, p. 108).
Com aquele canto, Morgoth contempla sua beleza, que transcende a sua aparência física, pois é demonstrada em sua arte, pela música que sai de sua voz. Mas a contemplação de Morgoth o leva a “planos sinistros”, que pode significar tomá-la para si, independente do consentimento dela, para realizar seus desejos, movidos pela luxúria, e aumentar seu poder. Dessa forma, ele é traído por sua própria perversão, e os artifícios de Lúthien o levaram a um estado de sono e perda de consciência.
Lúthien utiliza-se de forças mais tipicamente femininas para combater o Mal: a sensualidade, o encanto, a beleza. Com isso, ela conseguiu feitos jamais vistos na história de sua raça, entre elfos e elfas. Alguns podem argumentar que os trunfos de Lúthien se valem da magia, e isso diminuiria a sua validade. Quanto a isso, Coutras contra-argumenta: “descrever Lúthien como uma mulher indefesa e sua força como mera magia é mal interpretar o contexto narrativo e a estrutura metafísica em que ele foi escrito” (2016, p. 198).
Não podemos esquecer que Lúthien está em um contexto de contos de fadas e que, naquele universo, a magia é natural e possível, embora não seja algo banalizado. Vale lembrar que ela enfrenta inimigos que demonstram sua forca também pela magia, como Sauron e Morgoth. Além disso, tais características podem ser aplicadas ao contexto do nosso Mundo Primário, pelo artifício da metáfora, denotando e valorizando assim a forca da mulher em suas características intrinsicamente femininas.
Em Angband, a terra de Morgoth, Lúthien, Beren e Huan tiveram de enfrentar uma fera ainda mais terrível: Carcharoth, o Goela Vermelha, o Lobo de Angband. Descendente de Draugluin, fora criado e alimentado pelo próprio Morgoth. Por causa dele, Beren perdeu sua própria mão, que segurava a Silmaril conquistada, e, por isso, passou a ser chamado o “Uma mão”.
Antes de chegar ao trono de Morgoth e submeter o Senhor do Escuro a um sono que fez com que Beren pudesse tirar a Silmaril de sua coroa, Lúthien com seu encantamento, colocou Carcharoth para dormir. Diferente de Chapeuzinho, a própria Lúthien conseguiu enfrentar seus “lobos” — mas, muitas vezes, contou com ajuda de Huan, que, mais tarde duela, com Carcharoth, derrotando a fera terrível e fazendo com que Beren recupere a Silmaril, mas essa luta custa também a vida do nobre e corajoso Mastim de Valinor.
Estés afirma que “os cães são mágicos do universo. Com sua simples presença, eles transformam o mau humor em sorrisos, as pessoas tristes em pessoas menos tristes. Eles geram relacionamentos” (2016, p. 146). Mais adiante, ela reforça a semelhança dos cães com os lobos, mas aqueles “são mais civilizados” (Ibidem). Assim e Huan, que, como qualquer cão doméstico, traz alegria e ternura a vida de Lúthien, mas como um Cão da Terra Abençoada, e forte, valente, protetor e altruísta até a morte, mesmo se comparado à poderosa donzela élfica.
— lembrando que o próprio Beren se lançou-se na frente de Lúthien para evitar uma flechada de Curufin que se direcionava a ela. Mas ela também faz o papel de caçadora com Beren, salvando o seu amado dos perigos contra Sauron e Morgoth. Na realidade, juntos, Beren e Lúthien demonstram sua valentia, nobreza e desprendimento de si mesmos em prol do amor um do outro. Juntos, vão amadurecer, tornar-se o que deveriam ser diante de seus desafios, cada um preservando suas características próprias de suas naturezas masculina e feminina, sem se curvarem diante dos perigos.
Uma característica comum dos contos de fadas e a sua moralidade. A lição moral de Chapeuzinho Vermelho está na obediência. Ao enfrentar a barriga do Lobo Mau e, felizmente, ser salva pelo caçador faz com que ela repense seus conceitos, ganhe experiência e reconheça que a obediência à mãe é o caminho virtuoso que ela deve percorrer. O caso de Lúthien é diferente. Ela já percorreu tantos perigos por Beren e ao lado dele, que até considera não voltar mais para Doriath e receber a bênção de seus pais para a união dos dois.
Lúthien, de fato, estava disposta a vagar pelos ermos sem retornar, esquecendo sua casa, e seu povo, e toda a glória dos reinos-élficos; e por algum tempo Beren esteve contente; mas não podia por muito tempo esquecer seu juramento de retornar a Menegroth, nem impediria que Lúthien visse Thingol para sempre. Pois seguia a lei dos Homens, julgando perigoso não respeitar em nada a vontade do pai, salvo em última necessidade; e lhe parecia também indigno que alguém tão regia e bela quanto Lúthien tivesse de viver sempre nas matas, como os rudes caçadores entre os Homens, sem lar, nem honra, nem as belas coisas que são o deleite das rainhas dos Eldalië. Portanto, depois de algum tempo, persuadiu-a, e seus passos abandonaram as terras sem morada; e ele entrou em Doriath, levando Lúthien a seu lar. Assim queria a sina deles. (TOLKIEN, 2019, p. 250)
A vontade dos elfos quanto à união costuma ser mais forte e definitiva do que a dos homens. Para Lúthien, basta a sua palavra para que fiquem juntos. É claro que a palavra de Beren tem peso equivalente em relação ao amor que sente por Lúthien, mas a lei dos homens conta com o rito social e o consentimento da primeira família para a formação de uma nova. A elfa segue sua consciência e seu coração, mas junto com Beren passa a cultivar mais a ponderação e a racionalidade, controlando seus ímpetos, valorizando e honrando o amor de seus pais.
Referências bibliográficas
COUTRAS, L. Tolkien’s Theology of Beauty — majesty, splendor and transcedence
in Middle-earth. New York: Palgrave Macmillan, 2016.
ESTÉS, C. P. Mulheres que Correm com Lobos — mitos e histórias do arquétipo
da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
FERBER, M. A Dictionary of Literary Symbols. Cambridge at University Press,
2007.
GRIMM, GRIMM. Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
SCHANOES, V. L. Fairy Tales, Myth, and Psychoanalytic Theory. Dorchester:
Ashgate, 2014.
TOLKIEN, J. R. R. Beren e Lúthien. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018.
TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.
Este texto é parte de um artigo mais amplo, “A mais linda de todos os Filhos de Ilúvatar: Lúthien e o feminino nos contos de fadas”, presente no e-book: “Narrativas e enigmas da arte: fios da memória, frestas e arredores da ficção”.
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