Fernanda Correia
J.R.R. Tolkien tornou-se autor ao longo de sua vida, misturando suas referências de infância com seus estudos acadêmicos e sua própria experiência pessoal. Se o sucesso de seus livros publicados quando ainda estava vivo fizeram com que ele pudesse se dedicar à escrita, a produção de O Silmarillion embrenha-se com a história de sua vida.

Mesmo que de forma não consciente, já na sua juventude, a ideia de um mundo que fosse não necessariamente mágico, mas no qual houvesse magia, habitado por seres desconhecidos do homem comum, espreitava em sua mente. Desde a infância, teve contato com um mundo de histórias e imaginação, quando lia seus livros infantis, cujos títulos incluíam todos os textos como contos de fadas, mas que, muitas vezes, traziam mitos de outros povos como mera história para crianças. Eram grandes coleções que traziam os clássicos infantis, mas também a história de Sigurd, o herdeiro dos deuses nórdicos.
A mitologia para a sua história começou a tomar forma enquanto ele se recuperava dos ferimentos da Primeira Guerra, mesmo que não fosse parte de um plano consciente, ao menos não nesse período. Assim, ainda que de forma indireta, a guerra teve influência em seus escritos. Foi nos tempos livres antes das batalhas nas trincheiras e depois na recuperação no hospital, que ele começou a escrita. Quase como uma necessidade física de colocar no papel o que espreitava em sua mente.
Estes textos que um dia dariam forma ao seu livro mitológico eram rascunhos feitos em um caderno barato que o Professor havia comprado e escrito na capa “O Livro dos Contos Perdidos”, o que também se tornaria um título póstumos com escritos que não entraram em O Silmarillion, seja por não estarem completos, seja por não se integrarem totalmente à narrativa. O primeiro conto completo deste compilado de rascunhos foi “A Queda de Gondolin”, com alguns personagens ainda diferentes do texto que podemos encontrar na edição publicada.
As mudanças ocorrem principalmente porque Tolkien trabalhou nesses textos durante toda a sua vida, sempre retomando o que escrevera anos antes e observando com novos olhos, fazia mudanças, que eram inspiradas e modificadas de acordo com o que vivia. Além dos episódios pessoais que o influenciaram, muitas de suas ideias tomaram forma quando, ainda na faculdade, decidiu se dedicar ao estudo de línguas. Porém conhecer as línguas parecia pouco para o jovem, que começou a se interessar pela estrutura delas e de onde elas surgiram. Tolkien começou a ir mais a fundo, procurando pelas bases, por aquilo que havia de comum em todas as línguas e, principalmente como cada língua se relacionava com a cultura do povo que a utilizava, como explica seu biógrafo Humphrey Carpenter (1977, p. 54).
Nesse estudo mais aprofundado, entrou em contato com textos mitológicos. Por serem línguas antigas, só é possível analisá-las por meio dos registros de época de seus povos. Com exceção dos celtas, que acreditavam apenas na tradição oral, estes escritos tratavam das bases das religiões dos povos falantes, seu panteão mitológico e suas lendas heroicas.

O que incomodava principalmente a Tolkien era o fato de a Inglaterra não apresentar nada tão estruturado como o encontrado nos países nórdicos. Os deuses que criaram o mundo e cujas aventuras influenciavam diretamente os acontecimentos das vidas mortais, lendas que explicassem suas tradições e grandes heróis herdeiros desse mundo divino não eram encontrados em seu país. O mais próximo a isso eram as lendas do Rei Artur, as quais não agradavam plenamente o desejo do jovem estudante, principalmente pelo fato de elas não serem inglesas e se referirem à Grã-Bretanha, especialmente às regiões de Gales e Escócia neste caso, que foram influenciadas pela corte francesa.
De maneira geral, podemos dizer que os principais territórios habitados por essa gente eram, em termos modernos: a França (na Antiguidade, a Gália, terra dos gauleses, o povo de Asterix e Obelix), partes do sul da Alemanha, a Áustria, a Suíça, o norte da Itália, Portugal, a Espanha, todo o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales, Irlanda do Norte) e Irlanda — embora, é bom que se diga, os habitantes da Grã-Bretanha e da Irlanda não fossem designados como celtas pelos antigos gregos e romanos, apesar das semelhanças de costumes e nomes entre eles e seus primos do continente. Algumas tribos chegaram até a se aventurar na Ásia Menor (atual Turquia), ficando conhecidas como gálatas (foi para descendentes delas convertidos ao cristianismo que o apóstolo Paulo escreveu a Epistola aos Gálatas, importante texto do Novo Testamento) (LOPES, 2017, p. 136).
Foram quase quarenta anos trabalhando paralelamente em O Silmarillion. Em princípio apenas uma distração, mas o sucesso de O Hobbit o obrigou a imaginar novas histórias e imediatamente seus escritos lhe chamaram atenção. Ao conceber O Senhor dos Anéis, via a saga do Um Anel como apenas um episódio de algo muito maior que só então ele percebera que vinha criando por toda a sua vida. Os contos desconexos começaram a fazer sentido entre eles e pequenas referências às eras antigas, deuses e feitos heroicos eram mencionados em seu texto.
Foi então que a produção dessas narrativas foi somada à sua frustração por não encontrar um equivalente inglês da mitologia nórdica. Se antes havia um simples incômodo pelo fato de a Inglaterra não possuir algo que pudesse considerar tão notável quanto os textos nórdicos, agora o desejo era o de que ele mesmo pudesse suprir essa lacuna por meio de sua imaginação, ainda que tivesse consciência do quão ambicioso era seu projeto.
Seus rascunhos tornaram-se um plano querido e pessoal e, por ter emprestado ideias à trama da Guerra do Anel, era visto como uma parte indissociável de O Senhor dos Anéis. A concepção original era que os dois livros fossem lançados juntos. Os editores viram o potencial do texto, mas o acharam confuso e complexo demais para uma simples continuação de uma história para crianças. Assim, a publicação de O Silmarillion foi adiada.
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O sucesso imediato da trilogia a respeito do hobbit que atravessava a Terra-média para destruir o maligno Um Anel garantiu que a publicação do livro de mitologias de Tolkien finalmente aconteceria. Agora que o professor já estava aposentado de Oxford e recebia o lucro das vendas de seu livro, seria possível enfim finalizá-lo e, com o sucesso de seus outros livros, seria indiscutivelmente publicado. O principal inimigo agora era seu gênio perfeccionista e a necessidade que tinha de escrever e reescrever tudo o que produzia.
No entanto, como resultado dessa eterna revisão que o texto sofria, Tolkien jamais conseguiu finalizar o livro e morreu antes que este estivesse concluído em 2 de setembro de 1973, aos 81 anos. Seu filho Christopher Tolkien assumiu a tarefa de publicar a obra tão querida de seu pai. Seguindo as anotações deixadas por ele, Christopher organizou os textos e procurou as versões mais recentes, muitas vezes, mesclando textos, seja porque uns estavam mais claros do que os outros, seja porque uns continham mais informação. O trabalho durou quatro anos e O Silmarillion chegou às livrarias em 15 de setembro de 1977.
O Silmarillion: uma mitologia imaginada para a Inglaterra
Quando ainda estudante universitário em Oxford, Tolkien começou a se aprofundar nas origens de sua própria língua. Ao entrar em contato com o anglo-saxão, além da carreira acadêmica, acabaria traçando também sua carreira literária. Estudando este ramo linguístico, Tolkien voltou-se para o inglês arcaico e o inglês médio. Em seus estudos, deparou-se com textos clássicos utilizados como fonte de estudo. Entre eles estava Beowulf, texto em versos que narra a trajetória do guerreiro antigo que dá nome à obra. Curiosamente, a tradução havia sido lida por Tolkien ainda em sua época de colégio e, agora, podia lê-lo de forma integral e no original.

É importante perceber que a estrutura de Beowulf, um texto que retrata os tempos pagãos que dialogava perfeitamente com as crenças cristãs de Tolkien, é emulada futuramente ao escrever O Silmarillion, no qual se observa a inspiração nórdica sem abandonar a estrutura bíblica. O fascínio acerca do texto, além de acadêmico, é entendido por aquilo que o diferencia das lendas arturianas: a presença não tão direta do cristianismo mesclada com o fantástico e por se tratar de um texto escrito em inglês antigo, sem as influências celtas de Artur.
Beowulf é considerado o maior poema épico escrito em inglês arcaico, datado por volta de 700 d.C., sem que se possa precisar a data tampouco seu autor, desconhecido, uma vez que antes de ser registrado fora contado oralmente por muito tempo antes. Ou seja, também não se pode precisar qual versão é a registrada. O texto é ainda mais complexo de se identificar por apresentar temas cristãos juntos a figuras e temas míticos, dificultando perceber se foram escritos já assim ou se foram adições posteriores. Segundo Tolkien (2015, p. 253) seria preciso determinar se a fraseologia cristã estava bem estabelecida quando Beowulf foi escrito, informação que não se tem com certeza.
O texto que chegou até os dias atuais é apenas um manuscrito, o qual também não é possível datar, tendo-se aproximado a sua idade de acordo com o tipo de escrita apresentado: “[…] Beowulf só foi composto na forma como o conhecemos hoje (embora sejam muito antigas algumas das tradições que ele perpetua) depois que muitos versos cristãos já haviam sido escritos […].” (TOLKIEN, 2015, p. 237). Partes dos ensaios apresentados e a tradução feitos por Tolkien foram publicados postumamente. Ele explica:
A “lenda histórica” deriva das tradições sobre homens reais, eventos reais, políticas reais, de terras geográficas verdadeiras, mas passou através das mentes dos poetas. Até que ponto as realidades históricas de personagens e eventos foram preservadas (mais do que alguns supõem, imagino) deste modo é outra questão. O conto de fadas (ou conto folclórico, se preferirem esse nome), de qualquer modo, foi alterado, pois, nesse caso, foi consolidado no interior da “História”. E creio que não foi a primeira vez que nosso poeta fez isso (TOLKIEN, 2015, p. 302).
Não há mais como separar o que é invenção do que realmente aconteceu, sendo, muitas vezes, esses textos as poucas pistas destes tempos. De uma certa forma, Tolkien faz em O Silmarillion o caminho inverso. Ele tinha em mente o tipo de história que gostaria de contar, o passado mítico que seu país não possuía em sua opinião. A criação de uma mitologia é a consolidação de uma historicidade que serve de base para suas narrativas, com a expressão máxima em O Senhor dos Anéis.
Foi com este documento que Tolkien trabalhou sua tradução do anglo-saxão. Encantado com o que encontrou, somado ao que já vinha imaginando para suas próprias histórias, buscou o mesmo tipo de texto em inglês médio para se certificar que a Inglaterra possuía algo que pudesse considerar tão belo e grandioso como o que lia a respeito das tribos escandinavas. Deparou-se com o que senso comum tende a automaticamente julgar como o grande legado mitológico da Inglaterra: as crônicas arturianas. O problema, segundo o próprio, era a dificuldade encontrar um texto base ou mesmo uma origem para estes mitos que o comprovassem realmente ingleses. Tolkien, em carta para Stanley Unwin, de 16 de dezembro de 1937, ao responder um leitor a respeito dos nomes élficos terem inspirados pelos celtas deixa claro o distanciamento que procurava: “desnecessário dizer que eles não são celtas! Nem o são os contos. Conheço coisas célticas (muitas delas em seus idiomas originais, irlandês e galês), e sinto por elas uma certa aversão: em grande parte por sua irracionalidade fundamental” (TOLKIEN, apud CARPENTER, 2006, p. 31).
Apesar dos textos arturianos estarem de acordo religião católica que Tolkien seguia, inclusive chegando a exaltá-la, o escritor acreditava que para uma verdadeira mitologia era preciso algo mais. Era preciso que não fosse tão óbvia a correlação entre religião e história, o que em seus textos sobre Beowulf Tolkien deixava claro considerar a obra anglo-saxônica mais bem balanceada entre os dois temas. Além disso, os dois livros póstumos que tratam do ciclo arturiano, A queda e Artur e Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, fazem com que os textos tratem muito mais do reino das fadas e da magia, fazendo apenas pequenas menções à Igreja, à devoção da corte de Artur a ela e ignorando a busca pelo Graal.
Em uma carta enviada ao responsável na editora Collins, com quem negociava publicar não somente O Senhor dos Anéis, mas também O Silmarillion juntos como sempre desejara, Tolkien explica como as duas obras se relacionam e por que acredita que devam ser publicadas em conjunto. Em meio à sua explicação, o autor deixa claro quais são suas influências para criar histórias fantásticas, e que estas funcionaram apenas como um ingrediente e não como inspiração direta. Além disso, deixa claro por que o ciclo arturiano não apela a seu gosto, principalmente pelo fato de que as lendas que chegaram até os dias atuais o fizeram vindas pelos franceses que conquistaram o território no qual essas histórias surgiram:
Porém, tive uma paixão igualmente básica ad initio pelo mito (não alegorias!) e pelos contos de fadas e, acima de tudo, pelas lendas heroicas no limiar dos contos de fadas e da história, de que há tão pouco no mundo (acessível a mim) para meu apetite. (…) Contudo, não sou “versado” nas questões de mitos e contos de fadas, pois em tais coisas (até onde sei) sempre estive procurando material, coisas de um certo tom e atmosfera, e não simples conhecimento. Além disso — e aqui espero não soar absurdo —, desde cedo eu era afligido pela pobreza do meu próprio amado país: ele não possuía histórias próprias (relacionadas à sua língua e solo), não da qualidade que eu buscava e encontrei (como um ingrediente) nas lendas de outras terras. Havia gregas, celtas e românicas, germânicas, escandinavas e finlandesas (que muito me influenciou), mas não inglesas, salvo materiais de livros de contos populares empobrecidos. É claro que havia e há todo o mundo arthuriano mas neste, poderoso como o é, foi naturalizado imperfeitamente, associado ao solo britânico mas não inglês; e não substitui o que eu sentia estar faltando. Por um lado, sua “faerie” é demasiado opulenta, fantástica, incoerente e repetitiva. Por outro e de modo mais importante está envolta (e explicitamente contém) a religião cristã.
Por razões que eu não elaborarei, isso parece-me fatal. Mitos e contos de fadas, como toda arte, devem refletir e conter em solução elementos de verdade (ou erro) moral e religiosa, mas não explícitos, não na forma conhecida no mundo “real” primário. (TOLKIEN, apud CARPENTER, 2006, p. 141)
O tom de narrativa que procurava foi encontrado quando, seguindo seus estudos em línguas, debruçou-se sobre o nórdico antigo e redescobriu a história do herói trágico Sigurd, a qual ele também havia lido em sua coleção infantil de contos de fadas — a mesma que o apresentou à Beowulf. Dedicado a esta tarefa e encantado com o que lia, aprofundou-se ainda mais e descobriu as Eddas.

As Eddas são grandes poemas épicos que estão para a cultura escandinava tal qual Homero está para a civilização Ocidental. Além disso, para a mitologia da época, era uma espécie de Velho Testamento. Os textos narram os feitos de poderosos homens que enfrentaram batalhas, deuses e seguiram vitoriosos, dando origem ao povo nórdico. Quem nascia naquela região tinha o sangue dos deuses, diziam estes poemas. Em seus textos teóricos (2010, p. 34), Tolkien explica que:
Quanto à época em que foram escritos, não temos informações senão as reveladas pelo exame dos próprios poemas. Naturalmente as datações diferem, em especial no caso de poemas individuais. Nenhum deles, em termos de composição original, provavelmente é muito mais antigo do que 900 d.C.
Assim como ocorreu com os textos anteriormente citados, a tradição era preservada somente via oralidade e jamais era escrita. Snorri Sturluson é o nome mais conhecido por reunir e organizar as histórias que atualmente compõem a Edda, mas as histórias já estavam registradas, não apenas orais. O catolicismo já alcançara estas “tribos bárbaras” e as catequizara há pelo menos 200 anos, fazendo com que este compilado apresente suas lendas como meras histórias e não algo que devesse ser cultuado. Snorri as escreveu, ou a ele esta tarefa é creditada, mas o fez de modo que parecessem somente lendas, tirando seu caráter religioso e, em alguns momentos, já aproximando as duas tradições.
Não obstante, após 1050, certamente após 1100, a poesia que dependia da tradição pagã estava moribunda ou morta na Escandinávia – e isso quer dizer a poesia escáldica sobre qualquer assunto, tanto quanto baladas que de fato versavam sobre mitos, pois a poesia e a linguagem escáldica dependiam do conhecimento desses mitos pelo escritor e pelo ouvinte, que eram ambos, normalmente, o que chamaríamos de aristocratas – nobres, reis e cortesãos à moda do Norte.
Na Islândia ela sobreviveu durante algum tempo. Ali a mudança (por volta do ano 1000) fora bem mais pacífica e menos amarga (um fato que provavelmente não deixa de estar ligado à remoção e colonização). De fato, a poesia tornou-se uma lucrativa indústria de exportação da Islândia por algum tempo; e somente na Islândia ela jamais foi coletada ou anotada. Mas o antigo conhecimento decaiu depressa. (TOLKIEN, 2010, p. 30–31).
Atualmente, encontram-se duas versões dos textos. A Edda Poética e a Edda em prosa. A primeira trata-se do texto tal como era passado nos primeiros tempos, através de poemas que eram transmitidos cantados e, algumas vezes, interpretados. A segunda é a versão em prosa destas mesmas histórias, muitas vezes apresentando uma versão já cristianizada de muitos trechos.
Agora sabemos, seja como for, que essa coleção de poemas (a Edda antiga) nem deveria ser chamada de Edda. Essa é a perpetuação de um ato de batismo realizado pelo bispo, em que ele agiu ultra vires. A coleção não tinha nenhum título abrangente, até onde saibamos ou o manuscrito nos mostre. Edda é o título de uma das obras de Snorri Sturlson (morto em 1241), uma obra baseada nesses mesmos poemas e em outros semelhantes, agora perdidos, e é o título dessa obra apenas, por direito (…).(TOLKIEN, 2010, p. 34).

Por fim, outra das referências que influenciou Tolkien foi o Kalevala. Assim como os outros, era inicialmente uma tradição oral com mais de dois mil anos. Trata-se da epopeia nacional da Finlândia, que reúne diversas canções e poemas populares, o médico Elias Lönnrot dedicou-se à tarefa de resgatar e registrar estas histórias, publicando sua primeira edição em 1835. Verlyn Flieger, a organizadora de A história de Kulervo (2016, p. XI), edição com a tradução e notas feitas por Tolkien do Kalevala, comenta:
É muito provável que o impacto do Kalevala nos finlandeses como “uma mitologia para a Finlândia” tenha impressionado Tolkien tão profundamente quanto as próprias canções, e desempenhado um importante papel em seu desejo explícito de criar sua chamada “mitologia para a Inglaterra” (…).
No restante da obra, Flieger ressalta pontos importantes que revelam a proximidade do Kalevala à obra de Tolkien e que podem ser estendidos aos outros textos já citados aqui:
A história de Kullervo foi um passo essencial no caminho de Tolkien da adaptação à invenção, que resultou no “Silmarillion”. Foi o precursor e a inspiração de seu épico trágico de Túrin Turambar, um dos três “Grandes Contos” da mitologia fictícia da Terra-média.
[…]
“A história de Kullervo” é o ele faltante da cadeia de transmissão. É a ponte pela qual Tolkien atravessou da Terra dos Heróis para a Terra-média. (p.131-134).
Ou seja, ao trabalhar nesses textos antigos, todos publicados como obras póstumas, fazendo novas traduções e os adaptando ao leitor moderno, Tolkien fazia disso um laboratório, talvez involuntário, para sua própria obra. Christopher Tolkien comenta em sua edição de A queda de Artur que os textos estão incompletos e aparentam terem sido interrompidos quando serviam de inspiração, e Tolkien os deixava de canto para trabalhar em sua própria história, fazendo anotações ou criando pequenos contos.
Qualquer que fosse a intenção imediata de Tolkien com relação à história, e qualquer que seja sua contribuição para a obra posterior, ela é mais bem compreendida, em retrospecto, como peça de ensaio de alguém que está aprendendo seu ofício e imitando conscientemente um material já existente (FLIEGER in: TOLKIEN, 2016, p. 138).
Assim, são reconhecíveis pontos que aproximam os textos trabalhados academicamente por Tolkien, seja em traduções ou ensaios, dos que são produzidos por ele próprio. Dos textos arturianos, alguns temas sobreviveram na obra de Tolkien, tais como o rei que um dia retornará para um período de glória, a rota plana para a ilha do Oeste e grandes semelhanças entre Lancelot navegando solitário para Avalon e Elendil navegando para Valinor. Os textos das Eddas trazem a mitologia nórdica e a tragédia, também presentes em Kalevala, o que permeia os três grandes contos de O Silmarillion: Os filhos de Húrin, Beren e Lúthien e A Queda de Gondolin. Enquanto Beowulf tem pontos que o aproximam de O Hobbit, sua estrutura, que mescla o paganismo e o cristianismo, se aproxima da estrutura de O Silmarillion.
Foram estes textos que encantaram Tolkien e o fizeram desejar e tomar para si a tarefa de imaginar e criar uma mitologia para a Inglaterra. As histórias do círculo arturiano eram boas, mas não o suficiente para inflamar o espírito como o professor havia sentido ao ler a Edda antiga e a Kalevala, fazendo com que ele se dedicasse também ao mesmo processo de produção.

O resultado final que acabou publicado é um trabalho em conjunto, de pai e filho. Christopher acompanhou a produção do pai e era o primeiro leitor de seus textos desde que o pudera fazer. Em suas correspondências com o filho, nota-se a importância que Tolkien dava aos comentários e impressões deste leitor em particular. Ou seja, o organizador da obra estava em sintonia com intenções de seu pai e assistiu à sua evolução, mas ainda não era o criador das histórias que editara. Não é possível definir o que foi mera escolha de Christopher e o que fora decisão deixada por seu pai.
Por conta do processo criativo de Tolkien, que iniciava o texto e depois o retomava, muitas vezes com anos de intervalo, os textos sofreram modificações também porque o autor que voltava os olhos para o que fora produzido não era mais o mesmo que os escrevera. Nesses intervalos, Tolkien estudava e entrava em contato com novas histórias e lendas que o inspiravam de formas diferentes.
A variedade de textos e épocas diferentes de escrita fazem com a ideia inicial de Tolkien de transformar suas histórias na mitologia da Inglaterra pareça real, pois as narrativas se tornaram algumas vezes conflitantes e confusas, situação explicada pelas intenções de seu autor:
Além do mais, meu pai veio a conceber O Silmarillion como uma compilação, uma narrativa que é um compêndio, produzido muito depois, a partir de fontes de grande diversidade (poemas, anais e contos em forma oral) que sobreviveram numa tradição de eras; e essa concepção tem, de fato, um paralelo com a história real do livro, pois grande quantidade de prosa e poesia anteriores subjazem a ele, e trata-se, até certo ponto, de um compêndio de fato, e não só em teoria. (TOLKIEN, 2019, p. 12).
Este texto é uma versão editada do artigo presente no livro A Subcriação de Mundos, e também corresponde a uma versão editada de um capítulo da dissertação O Primeiro Senhor dos Escuro: Melkor e as Tradições Mitológicas de O Silmarillion, de J.R.R. Tolkien.
Obras citadas
CARPENTER, H. J.R.R. Tolkien: a biography. London: HarperCollins, 1977.
CARPENTER, H. (org.) As cartas de J.R.R. Tolkien. Tradução Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte e Letra, 2006.
ELÍADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016.
LOPES, Reinaldo José. Mitologia nórdica. São Paulo: Abril, 2017.
STURLUSON, Snorri. Edda em prosa: textos da mitologia nórdica. Tradução Marcelo Magalhães Lima. Rio de Janeiro: Númen, 1993.
TOLKIEN, J. R. R. A história de Kullervo. Tradução Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
_______________. A lenda de Sigurd e Gudrún. Tradução Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_______________. A queda de Artur. Tradução Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
______________. Beowulf. Tradução Ronald Eduard Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
______________. O Silmarillion. Tradução Reinaldo José Lopes. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2019.

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Parabéns pelo artigo, é muito bom e fluido de ler. Não sei se seriam de acréscimos, mas li alguns artigos recentes que me ajudaram com a compreensão o livro A queda de Artur: -O Rei Artur através dos séculos:
uma trajetória das lendas arturianas de Fernanda Karovsky Moura e o artigo – A história dos Bretões (C. 800) de Nennius e sua relevância para a construção do mito do Rei Arthur..
Oi Patrick! Muito obrigada pelo elogio e pelas sugestões. Vou procurar os artigos. Abraços!
Potente analise da construção e das influencias que levaram ao Silmarillion, Fernanda. Eu já havia lido seu otimo artigo no e-book da USP e foi muito bacana revisitar o texto editado aqui! Certamente um artigo que recomendarei a quem quiser entender um pouco melhor sobre o caldo que levou o professor Tolkien à criação de sua mitologia. Obrigado e parabéns!!
Muito obrigada, Viccenzo! Sempre um prazer ter sua leitura.