De Jardineiro a Mestre: o arco do herói de Samwise Gamgi

Cristina Casagrande

Muitos debatem quem é o herói de O Senhor dos Anéis, gerando algumas discussões que culminam em uma série de conclusões, desde estudos literários aprofundados até uma fábrica de memes. Mas a verdade é que essa busca pelo grande e verdadeiro herói da saga do Anel até hoje chegou a apenas uma resposta segura: não há. Claro, há heróis, mas não apenas um. Já falamos sobre isso anteriormente no texto que abordava a magnanimidade de Frodo (também apresentado no YouTube).

O filólogo e professor de Oxford que tanto primava pelo medievalismo e o saber dos antigos também tinha uma série de características modernas — e diria até mesmo pós-modernas — em sua literatura, dentre elas, a multiplicidade de heróis. Em sua sabedoria calcada no realismo filosófico, Tolkien sabia que não é possível encontrar em uma mera criatura todo o poder de salvar o mundo, ainda que em apenas um recorte dele, delimitado no tempo e no espaço — a Terra-média, ao final da Terceira Era.

Mas, na concepção de seu leitor mais especializado (o próprio autor), existe um herói principal, não exclusivo, mas o que recebe uma relevância um pouco maior que os outros. Ele não aborda isso com muito destaque, mas diz en passant na famosa Carta 131, dirigida a Milton Waldman, então editor da Collins:

Creio que o amor simples e “rústico” de Sam e sua Rosinha (não elaborado em parte alguma) é absolutamente essencial ao estudo de seu caráter (do herói principal) e ao tema da relação entre a vida comum (respirar, comer, trabalhar, gerar) e as buscas, o sacrifício, as causas e o “ansiar pelos Elfos”, e a beleza absoluta. (2010, p. 156, grifo nosso)

Sam traz consigo a praticidade da vida ligada à natureza e, com ela, desenvolve-se do ponto de vista cultural e até mesmo espiritual. O simples jardineiro, empregado de Frodo Bolseiro, cresce enquanto indivíduo e desenvolve a sua heroicidade ao longo da jornada, em busca da destruição do Anel. É justamente na simplicidade do homem comum, calcada na humildade, que Sam demonstra a sua grandeza, para além das posições sociais.

Em As Duas Torres, Quando Sam e Frodo estão em Minas Morgul, subindo as escadarias de Cirith Ungol, os hobbits têm um diálogo revelador sobre o próprio enredo, seus papéis naquela história e o sentido da jornada. Sam discorre:

“[…] acho que muitas vezes é desse jeito. As coisas corajosas nas velhas histórias e canções[…]. Eu costumava pensar que eram coisas que a gente maravilhosa das histórias saía para procurar porque queriam elas, porque elas eram emocionantes, e a vida era um pouquinho tediosa, uma espécie de esporte, poderíamos dizer. Mas esse não é o jeito das histórias que realmente importavam […]. Normalmente parece que as pessoas simplesmente caíram dentro […]. Mas acho que eles tiveram montes de oportunidades, assim como nós, de darem meia­-volta, só que não deram. E se tivessem dado, nós não iríamos saber, porque eles estariam esquecidos. Nós ouvimos falar dos que simplesmente foram em frente […]. Eu me pergunto em que espécie de história nós caímos”. (2019, p. 1016)

O desabafo de Sam traz a consciência de sua importância e, ao mesmo tempo, suscetibilidade na narrativa. Ao entrar naquela história e não desistir dela, faz com que suas linhas sejam registradas para a posteridade, doa a quem doer, com ou sem final feliz. Além disso, seu próprio caráter está sujeito a mudanças, para o bem ou para o mal.

Stairs Cirith Ungol/Peter Xavier Price

Ele é um hobbit jovem e rústico, bem diferente de Frodo que era um pouco mais velho e havia recebido uma educação mais erudita, aprendendo boa parte da sabedoria dos elfos. Mas Sam também é idealista e encantado pelas histórias que aprendeu com Bilbo e Frodo sobre elfos, dragões e tudo o que despertava a magia do além-Condado. Pelo fato de os hobbits viverem alheios ao restante da Terra-média, a vida deles era mais próxima da nossa, no Mundo Primário: trivial, corriqueira, concreta. Sair do Condado significava, então, sair do mundo não imaginário e entrar no Secundário, da fantasia (que, no contexto da história, não é um conto de fadas, mas uma realidade desconhecida dos hobbits) — e, caso voltasse, não seria mais o mesmo.

Sam é apresentado na primeira parte do livro, em A Sociedade do Anel, de uma forma bem cotidiana no Condado, em conversa com seus colegas na taverna Dragão Verde. No diálogo, ele demonstra o seu fascínio por um mundo fora de seu reduto, permeado de seres mágicos. Por outro lado, Ted Ruivão, o típico hobbit de mente limitada, zomba dos sonhos do filho do Feitor:

Sam Gamgi estava sentado a um canto, perto do fogo, e à sua frente estava Ted Ruivão […].
“Coisas esquisitas a gente ouve esses dias, com certeza”, disse Sam.
“Ah”, respondeu Ted, “ouve mesmo se escutar. Mas eu posso ouvir contos ao pé do fogo e histórias infantis em casa se quiser.”
“Sem dúvida que pode,” retorquiu Sam, “e imagino que tem mais verdade em algumas delas do que você pensa. E depois, quem inventou as histórias? Veja os dragões, por exemplo.”
“Não, obrigado”, respondeu Ted. “Não vou ver. Ouvi falar deles quando era menino, mas agora não tem por que acreditar neles. Só tem um Dragão em Beirágua, que é Verde”, disse ele, obtendo uma risada geral. (2019, p. 94, grifo nosso)

Nesse excerto, já percebemos algumas características marcantes do nosso dileto jardineiro. Primeiro, uma observação no âmbito simbólico. O hobbit aparece junto ao fogo, um elemento carregado de muitos significados para além do plano físico. O fogo traz consigo a luz e, com ela, o conhecimento; e também o calor e, com ele, o amor. Em O Fogo e o Relato, Giorgio Agamben traça um paralelo entre o fogo — como fonte primária do conhecimento — e a arte literária, uma espécie de paráfrase derivada de uma interpretação desse fogo, basicamente a função da mitologia em tempos antigos. Diz Agamben:

A humanidade, ao longo de sua história, afasta-se cada vez mais das fontes do mistério e perde, pouco a pouco, a lembrança daquilo que a tradição lhe ensinara sobre o fogo, o lugar e a fórmula – mas disso tudo os homens ainda podem narrar a história. (2018, p. 28)

Na mitologia de Tolkien, esse elemento é especialmente significativo. Gandalf, vindo das Terras Imortais, porta Narya, o Anel de Fogo, e exclama ao enfrentar o Balrog (um maia também feito de fogo, mas não vindo da luz e, sim, da escuridão): “Sou servidor do Fogo Secreto, bran­dindo a chama de Anor”. Podemos interpretar, em nosso direito de aplicabilidade do leitor, que Sam, de forma inconsciente, tem a alma voltada para as verdades infinitas da Chama Imperecível, o Poder Criador de Eru Ilúvatar. E essas verdades trazem consigo, muito além da realidade concreta, o imaginário, aquilo que liga o nosso entendimento ao mundo extramental.

O outro ponto que destacamos é como Ted Ruivão considera o mundo das fadas: meras “histórias infantis”. Essas “coisas esquisitas” (queer things), nas palavras de Sam, ou seja, alheias ao mundo hobbitesco, são, para o senso comum dos Pequenos, típicas das crianças, mas não devem ser levadas a sério pelos adultos. Como diz Tolkien, em seu ensaio Sobre Estórias de Fadas:

[…] estórias de fadas, no mundo moderno letrado, têm sido relegadas ao berçário, assim como a mobília desmazelada e antiquada é relegada ao quarto de brinquedos, principalmente porque os adultos não a querem e não se importam se ela é maltratada. (p. 45)

Para Ruivão, essas histórias não passam de invencionices engraçadinhas para distrair as crianças e mantê-las ocupadas. Mas Sam traz uma visão mais sábia: “tem mais verdade em algumas delas do que você pensa”. Gamgi conserva a mente voltada às coisas práticas e concretas como Ted e dos demais hobbits, mas cultiva também um mundo para além da realidade em que vive: ele aprendeu com Bilbo quando pequeno sobre as histórias de fadas e nunca mais conseguiu se desvencilhar delas em seu coração. Ao contrário do senso comum, sair de casa em busca dos elfos, para Sam, é justamente abandonar seu universo acomodado e sair em busca de seu crescimento pessoal.

Sam não sabia que aquele desejo guardado em seu íntimo era, na verdade, algo além de suas próprias vontades, uma missão pessoal. O jardineiro respondeu ao seu chamado, por assim dizer, atendendo ao que falava mais alto para si — o fascínio pelas aventuras e a imensa admiração que tinha por Bilbo e, especialmente, por Frodo.

Tolkien escreve um pouco sobre a construção do personagem Samwise Gamgi em uma carta a uma leitora, Sra. Eileen Elgar:

Sam foi pretendido com a intenção de ser adorável e digno de riso. Alguns leitores ele irrita e até mesmo enfurece. Posso entender bem isso. […] Sam pode ser muito “irritante”. Ele é um hobbit mais representativo do que quaisquer outros dos quais temos de aprender muito; e ele consequentemente possui um ingrediente mais forte daquela qualidade que mesmo alguns hobbits às vezes acham difícil suportar: uma vulgaridade — com a qual não quero dizer uma mera “simplicidade” —, uma miopia mental que tem orgulho de si própria, uma presunção (em graus variados) e convencimento, e um imediatismo para avaliar e resumir todas as coisas a partir de uma experiência limitada, largamente confinada a uma sentenciosa “sabedoria” tradicional. (2010, p. 313)

Nesse aspecto, Sam se iguala a Ted Ruivão (que, cá entre nós, se encaixa melhor na descrição acima que o próprio Sam). O significado de nome, Samwise, caracteriza exatamente isso: “simples” ou “meio sábio”. O seu desenvolvimento como personagem durante a jornada da destruição do Anel que nos interessa, a de um indivíduo de mentalidade mediana a alguém sábio e corajoso. Gamgi não tinha ideia, mas ao aceitar fazer parte da Demanda, iniciou o processo de conquista do seu próprio crescimento pessoal: de um simples jovem sonhador e xucro para alguém senhor de si, capaz de tomar decisões deliberadamente e ter um papel determinante na história. O jardineiro camponês prova ser não apenas um companheiro fiel de Frodo, mas um indivíduo complexo e profundo, o que Edward Morgan Forster classificaria como personagem esférico, por “sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente” (1949 apud CANDIDO, 2007, p. 63).

E essa complexidade que o afasta de um mero personagem plano se dá, ao contrário da tônica de boa parte dos personagens romanescos — especialmente de literatura de fantasia contemporânea —, pela virtude e não pelo vício. Virtude esta que, na concepção de Aristóteles, seria o meio-termo entre os extremos do excesso e da falta. O filósofo grego a divide em dois tipos, intelectual e moral: a intelectual “depende muito mais do ensino, quer em sua origem, quer em seu crescimento; […] a virtude moral resulta do hábito” (2016, p. 54).

Sam, de Matthew Stewart

O crescimento de Sam se dá pela virtude moral, muito mais do que a intelectual. Ele desenvolve o hábito da coragem, da generosidade e do domínio de si ao longo do trajeto, além disso, ele cresce em algo que já trazia desde sempre: a fidelidade. Sam mal pensa em si mesmo, mas no bem de seu amigo Frodo. Vê no portador do Anel o mal que poderia carregar em si próprio, caso recebesse esse fardo também; é compreensivo e paciente, não se sobrepõe e não se revolta, confia e permanece em sua missão, cumprindo seu compromisso firmado no Condado.

Do ponto de vista histórico, em suas pesquisas, John Garth associa Sam aos soldados ordenanças com quem Tolkien teve contato. E isso é, de fato, declarado pelo próprio autor em uma de suas cartas, a um leitor chamado Humphrey Cotton Minchin, em 1956, apresentada pelo próprio Garth em seu site:

Meu “Samwise” é de fato (como você notou), em grande parte, um reflexo de um soldado inglês — inserido entre os meninos da aldeia dos tempos passados, a memória de meus soldados rasos e ordenanças que eu conheci na Guerra de 1914 e reconheci como muito superiores a mim.

Do ponto de vista literário, Samwise se alinha a fiéis escudeiros, tal qual Sancho Pança em Dom Quixote. Apesar de Frodo não carregar o idealismo insano de la Mancha em seu caráter, a ação Anel o faz perder o domínio de si, chegando a delirar, cada vez mais, à medida que o cumprimento da Demanda avança. E é seu “Sancho Pança”, Samwise Gamgi, que o faz retornar a si, embora não possa cumprir a missão em seu lugar.

Essa fidelidade tão espontânea que faz Sam seguir Frodo em “O Rompimento da Sociedade” e o encoraja a permanecer ao lado do portador do Anel, mesmo com o dissabor de ter de acompanhar Gollum no caminho até Mordor. Mas é diante de Frodo imobilizado pelo ferrão venenoso de Laracna que nasce o divisor de águas de um simples jardineiro a um grandioso mestre.

O poder das escolhas e das decisões

É em Cirith Ungol que Sam enfrenta seu mais aterrorizante inimigo: Laracna, a aranha gigante, última descendente de Ungoliant. Antes disso, o hobbit já tinha seguido bravamente adiante, vencendo inúmeros obstáculos e, assim, já havia fortalecido o seu caráter para a virtude da coragem.

Após uma briga com Gollum, Sam voltou para salvar seu amigo Frodo do temível aracnídeo, mas já era tarde demais. Naquele momento, só restava o hobbit jardineiro e Laracna, e ele decide enfrentá-la com as armas de que dispõe.

Do lado mais próximo [de Frodo] jazia no chão, reluzindo, a sua lâmi­na-élfica, onde lhe havia caído inútil da mão. Sam não esperou para se perguntar o que deveria ser feito, ou se ele era bravo, ou leal, ou repleto de fúria. Saltou para diante com um grito e agarrou a espada do patrão com a mão esquerda. Então ata­cou. Jamais se viu assalto mais violento no mundo selvagem das feras, onde uma criaturinha desesperada, armada com pequenos dentes e sozinha, salta sobre uma torre de chifres e couro que se ergue acima do companheiro tombado.

Sam não teve muito para pensar. Agiu por impulso. Naquele momento, era o ferrão de Laracna contra a Ferroada de (ao menos, por alguns instantes) Sam. Mas sua escolha reflete, em grande parte, as feitas anteriormente. A coragem que dispensou para seguir em frente nas Colinas-dos-Túmulos, ao partir sozinho com Frodo e deixar a Sociedade do Anel para trás, ao encarar os Pântanos Mortos e tantas outras intempéries contribuiu para que Sam tomasse essa decisão rápida, mas corajosa, no calor do momento.

Além de Ferroada, Sam também pegou, num segundo momento, o frasco de Galadriel, que estava com Frodo jazido ali. O frasco continha a luz de Eärendil, consagrada por Elbereth, Varda, a Rainha dos Valar, Senhora da Luz e das Estrelas. O presente da Senhora de Lothlórien a Frodo agora era utilizado por seu amigo para vencer a inimiga maligna, em um sinal claro da providência divina.

Sam vs Shelob, John Howe

Como se seu espírito indômito tivesse posto em movimento a potência dele, o cristal se iluminou de repente como uma tocha branca em sua mão. Flamejou como uma estrela que, sal­tando do firmamento, crestasse o ar escuro com luz intolerável. Nenhum terror assim, vindo dos céus, jamais havia queimado antes na cara de Laracna. […]
Sam avançou. Cambaleava como um bêbado, mas avançou. E Laracna, finalmente intimidada, murcha de derrota, sacudia e estremecia à medida que tentava se afastar dele às pressas. Alcançou a toca e, espremendo-se para baixo, deixando um rastro de muco amarelo-esverdeado, escorregou para dentro no momento em que Sam dava um último golpe em suas pernas que se arrastavam. Então ele caiu ao chão.

A partir de então, com a derrota de Laracna, que se recolheu a se perder seu paradeiro na história, Sam terá de enfrentar um desafio ainda maior: tomar uma decisão diante de seu patrão, que, para ele, parecia ter morrido. Sam, que não aceitava se separar de Frodo em nenhum momento, agora teve de assumir a dolorosa escolha de seguir sem ele.

Em um primeiro momento, ele não quis aceitar a aparente morte de Frodo. “‘Frodo, Sr. Frodo!’, chamou ele. ‘Não me deixe aqui sozi­nho!’” (2019, p. 1040).  Mas, vendo que não havia jeito de reanimá-lo, Sam passa por uma longa onda de impasses diante de uma decisão a ser tomada. Sem seu patrão, havia de rever seus valores: mais do que o amor por seu amigo, o filho do feitor Hamfast Gamgi sabia que o seu dever era cumprir a demanda, e nada poderia ser feito em relação a Frodo naquele momento. Para o jardineiro, o herdeiro de Bilbo havia deixado esse mundo.

“O que hei de fazer, o que hei de fazer?”, disse ele. “Vim com ele esse caminho todo para nada?” E então recordou sua pró­pria voz dizendo palavras que naquele momento ele mesmo não entendera, no começo de sua jornada: “Tenho alguma coisa para fazer antes do fim. Preciso resolver isso, senhor, se me entende.” (2019, p. 1040)

Depois de muito relutar, Sam toma uma decisão, a mais dolorosa que jamais imaginara enfrentar na Demanda:

“Se for para eu ir em frente,” disse ele, “então preciso pegar sua espada, com sua licença, Sr. Frodo, mas vou pôr esta outra deitada ao seu lado, assim como esteve ao lado do antigo rei no morro tumular; e o senhor tem seu lindo colete de mithril do velho Sr. Bilbo. E seu cristal-de-estrela, Sr. Frodo, emprestou-o para mim e vou precisar dele, pois agora sempre vou estar no escuro. É bom demais para mim, e a Senhora lhe deu, mas quem sabe ela entenderia. O senhor entende, Sr. Frodo? Preciso ir em frente.” (2019, p. 1040-41)

Mas o processo, que já havia demorado, ainda foi longo para Sam tomar a decisão. Entre o querer e o dever, Sam teve de escolher o segundo, mas não sem muito sofrimento. Além disso, o hobbit não iria apenas abandonar o patrão, a quem prometia fidelidade, mas pegar o Anel para si. Deixá-lo ali não iria fazer com que a Demanda se cumprisse. E nisso, ele passa por mais um longo e doloroso diálogo interno.

“O quê? Eu sozinho ir até a Fenda da Perdição e tudo o mais?” […] “O quê? Eu tirar o Anel dele? O Conselho o deu a ele. […] A guerra come­çou, e muito provavelmente as coisas já estão indo a favor do Inimigo. Não tem chance de voltar com Ele para ter conselho ou permissão. Não, é ficar sentado aqui até eles chegarem, me matarem junto ao corpo do patrão e pegarem Ele; ou apanhar Ele e partir.” Inspirou fundo. “Então é apanhar Ele!” (2019, 1041-42)

À semelhança de Gollum, Sam também trava um diálogo interior. Mas, diferente da criatura metamorfoseada, Gamgi mantém-se íntegro de caráter, porque não busca a si mesmo como um fim, ao contrário, busca o desapego do ego, para abrir-se ao amor, ou seja, o bem de seus amigos e de seu povo. Paradoxalmente, ao esquecer de si mesmo por um ideal nobre, não se divide nem se corrompe como Gollum, ao contrário, cresce.

O ato de Sam é verdadeiro porque é voluntário e porque é uma decisão tomada a partir de uma escolha. Isso só pode ser feito pelo uso da racionalidade, o que incorre no domínio das paixões. E é esse domínio de si que o fortalece e o leva a crescer de um jardineiro a mestre de si mesmo. A questão não está atrelada, evidentemente, na condição de jardineiro, mas no domínio de si, no desenvolvimento pessoal enquanto indivíduo, independente do ofício que ele exerce.  

Mas suas escolhas, ainda que nobres, não são garantias de vitória contra o Anel. Além disso, elas trazem consequências para o próprio novo portador do artefato, ainda que por um curto período. Por algum momento, Sam se vê na posição de um poderoso explorador, mas rapidamente esse desejo é rejeitado.

Contudo, logo Sam percebe que Frodo está vivo, e sua provação passa. Juntos partem para Orodruin para destruir o Anel. E Sam retorna à condição de fiel acompanhante de Frodo, sem questionar. Isso é demonstrado em um dos momentos mais difíceis e cruciais para Frodo, em O Retorno do Rei, quando ele já não consegue mais caminhar até as fendas das do Monte da Perdição. Diante dessa situação, Sam jamais cogita tomar de novo o Anel para si, ao mesmo tempo de que não abre mão de sua promessa de ajudar Bolseiro:

The Road to Doom/Fantasy Fight Games

“Venha, Sr. Frodo!”, exclamou ele. “Não posso carregá-lo pelo senhor, mas posso carregar o senhor e ele também. Então levante-se! Vamos lá, Sr. Frodo, meu querido! Sam vai lhe dar uma carona. Só diga a ele aonde ir e ele irá.” (2019, p. 1347)

Frodo já não consegue mais responder por si mesmo, depende quase que totalmente do amigo. E é nesse ponto que o mestre Frodo dá lugar ao mestre Sam. Afirma John Garth em seu website:

Então, a hierarquia é amplamente invertida. Frodo se move para uma dependência infantil; ele apresenta os problemas, Sam, as soluções. Na Primeira Guerra Mundial, esse processo estava longe de ser atípico. Oficiais receberam comissões por razões de classe, não porque eram soldados experientes ou líderes; enquanto os soldados rasos e os ordenanças tinham idade, experiência e sabedoria que faltavam em seus superiores.

É assim que se dá o crescimento de Samwise Gamgi: esquecendo-se de si, focado em sua missão, tornou-se mestre de si mesmo, o principal herói da história. O Senhor dos Anéis, que, segundo o autor, tem como mote a edificação dos humildes, escolhe o jardineiro dos Bolseiros para coroar esse ideal. Sam volta ao Condado e é amado por todos, torna-se prefeito sete vezes, casa-se com Rosinha, tendo muitos filhos com ela, deixando seu legado para a posteridade.

Na continuação do diálogo nas escadarias de Cirith Ungol, enquanto os hobbits divagam sobre o seu papel dentro da história, vemos a admiração mútua dos hobbits e reconhecimento de Frodo declarado em suas palavras, a começar por Sam:

Todos os grandes planos importantes não são para gente como eu. Ainda assim eu me pergunto se alguma vez vão nos pôr em canções ou histórias. Estamos numa, claro; mas quero dizer: postos em palavras […]. E as pessoas vão dizer: ‘Vamos ouvir sobre Frodo e o Anel!’ E vão dizer: ‘Sim, essa é uma das minhas histórias prediletas. Frodo era muito valente, não era, papai?’ ‘Sim, meu rapaz, o mais famoso dos hobbits, e isso quer dizer muita coisa.’” […]
“Ora, Sam,” prosseguiu ele [Frodo], “de alguma forma ouvir você me deixa tão feliz como se a história já estivesse escrita. Mas você deixou de fora um dos personagens principais: Samwise, o destemido. ‘Quero ouvir mais sobre Sam, papai. Por que não incluíram mais falas dele, papai? É disso que gosto, me faz rir. E Frodo não teria ido longe sem Sam, não é mesmo, papai?’”
“Ora, Sr. Frodo,” disse Sam, “não devia fazer graça. Eu estava falando sério.”
“Eu também estava”, respondeu Frodo, “e ainda estou.


Este texto é uma parte editada e modificada do livro A Amizade em O Senhor dos Anéis.


Referências

AGAMBEN, G. O Fogo e o Relato. Tradução: Andrea Santurbano e Patricia Pertele. São Paulo: Boitempo, 2018.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução: Luciano Ferreiro de Souza. São Paulo: Martin Claret, 2016.

CANDIDO, A. “A Personagem do Romance. In.: A Personagem de Ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 63.

CASAGRANDE, C. A Amizade em O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martin Claret, 2019.

GARTH, J. “Sam Gamgee and Tolkien’s Batmen”. Disponível em: https://johngarth.wordpress.com/2014/02/13/sam-gamgee-and-tolkiens-batmen. Acesso em 29 jan. 2021.

TOLKIEN, J.R.R. Árvore e Folha. Tradução: Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: As Duas Torres. Tradução: Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei. Tradução: Ronald Kyrmse. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.


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Cristina Casagrande é autora do livro A Amizade em O Senhor dos Anéis

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