Eduardo Boheme
Este texto é uma adaptação da segunda parte deste artigo.
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Pensar em Tolkien como calígrafo é afastar-se um pouco das grandes questões que ocupam os também grandes tolkienistas e olhar detidamente para um grau muito pequeno de sua obra: a forma de uma única letra, particularmente aquelas que dão indícios de intenção e execução esteticamente orientada; a letra “bonita”, por assim dizer. Isto que vem a seguir é só um fragmento (para não enfastiar vocês) de um artigo publicado em outro lugar e trato aqui brevemente de apenas um assunto: as letras insulares.
Tolkien, como todos sabem, era filólogo e notável estudioso da Idade Média inglesa. Trabalhar com manuscritos medievais era, portanto, parte de seu trabalho e exigia dele uma dose de conhecimento numa ciência afim da Filologia, a Paleografia, que se dedica ao estudo das escritas antigas e medievais em suportes macios, como papiro, pergaminho e papel. Derek Pearsall (1984: 122), falando não sobre inglês antigo, mas inglês médio, faz uma observação espirituosa acerca desses profissionais:
Historicamente, o papel do paleógrafo nos estudos do inglês médio não era elevado: o mais das vezes ele era convocado por um editor para aprovar a descrição técnica de um manuscrito, fornecer uma data para a escrita e depois era dispensado para poder voltar ao seu vil e misterioso ofício.
“Editor”, nessa frase, está sendo usado com o sentido de “editor crítico/filólogo”. Tolkien era, sim, editor, mas não paleógrafo: segundo Holmes (2006: 80), ele se considerava apenas diletante nessa ciência. Contudo, as evidências demonstram que ele tinha um olho muito apurado para quem não era um praticante desse “vil e misterioso ofício”. E, ademais, Tolkien era desses que não se contentavam em simplesmente olhar as letras de perto: colocava a mão na massa e fazia manuscritos extraordinários, uma prática que começou bem cedo, ainda criança.
Muitos desses manuscritos foram feitos com letras “insulares” e, com isso, quero dizer que ele procurava imitar as letras típicas de um sistema de escritas que se iniciou na Irlanda do século V. Não preciso entrar em muitos detalhes aqui sobre a extremamente complexa hierarquia desse sistema, bastando dizer que, na Irlanda, essa escrita evoluiu em dois tipos básicos: uma maiúscula insular e, a partir dela, uma minúscula insular. Levadas por missionários irlandeses para o norte da Inglaterra, as escritas insulares (assim chamadas por terem se desenvolvido naquelas ilhas) encontraram ali solo fértil para crescer e adquirir feições autóctones.

É extremamente fácil ver por que Tolkien se interessava por letras insulares: são elas que dão vida a alguns dos códices anglo-saxônicos mais importantes contendo textos cruciais para o escritor. Por exemplo, o manuscrito de Beowulf e o Exeter Book — no qual estão as adivinhas que de algum modo inspiraram as d’O Hobbit — foram escritos com letras insulares.

No exemplo abaixo (não caligráfico, mas instrutivo), vemos Tolkien imitando algumas minúsculas insulares: perceba o exótico g; o s rebaixado; o d com suas costas arqueadas, contrastando com a postura reta do e, que se alça para cima da linha mediana e tem a língua bem pronunciada; as serifas trabalhadas nas ascendentes de b, l e h. Talvez mais importante, o t (a mais tolkieniana das letras) com a haste curva que ele adotou para sua própria assinatura.
Se isso não é prova o suficiente de que Tolkien estava muito, muito atento às formas insulares das letras, basta olharmos outras de suas peças caligráficas:
Atente-se para letras-chave, como e, g, t e também para o a minúsculo de Taurobel [Tavrobel], Farm e Caerthilian, forma essa que Tolkien usou também em outros manuscritos (por exemplo em The Corrigan I, incluído em The Lay of Aotrou & Itroun; e em algumas cartas do Papai Noel).
Essa letra demonstra bem como o olhar de Tolkien absorvia as escritas e sua mão as imitava. Note a incomum barra arredondada do a. É possível que Tolkien a tenha desenvolvido de maneira independente? Sim, mas como ela frequentemente aparece justo quando Tolkien fazia letras insulares, é mais proveitoso buscar para ela uma linhagem semelhante. Essa origem talvez esteja em uma fonte tipográfica (a rigor um “tipo”) inspirada nas minúsculas insulares. Criado na Irlanda por George Petrie, esse tipo foi chamado por Dermot McGuinne (2010: 120) de Newman Irish Type, pois foi o hoje santo John Henry Newman quem o encomendou a George Petrie.

Newman era, à época, reitor da Universidade Católica da Irlanda, um contraponto na cidade ao protestante Trinity College da Universidade de Dublin. O belo Newman Irish Type foi amplamente usado na impressão de livros em língua irlandesa e Tolkien possuía pelo menos um dicionário irlandês/inglês que emprega esse tipo de cabo a rabo. Veja, pela figura acima, como o a de Tolkien é parecido com o do Newman Irish Type.
No meu artigo anterior, falei um pouco sobre o discurso de Jeremiah Hogan à ocasião da outorga do título de Doutor honoris causa a Tolkien pelo University College Dublin, antiga Universidade Católica da Irlanda, e hoje constituinte da Universidade Nacional da Irlanda. Se você abriu o discurso original, deve ter reparado no cabeçalho, escrito em irlandês:
Compare letra por letra desse cabeçalho com o Newman Type. Parecido, não é? Parecido, mas não igual. A única diferença é justamente o ângulo da letra A, o suficiente para constituir outra fonte tipográfica chamada de Later Figgins Type (McGuinne 2010: 126), evidentemente clonada do Newman Type.
Além disso, seria improvável que Tolkien tenha tido contato com o Newman Type, no Oratório de Birmingham onde cresceu, o qual foi fundado por Newman? Acho que não, mas não tenho ainda resposta para essa pergunta. Mas é fato que havia um punhado de livros na biblioteca do Oratório!
É evidente que, nesses exemplos, Tolkien não estava criando letras do nada, mas recuperando-as e imprimindo-lhes sua marca, como fazia frequentemente em sua literatura: imitou a forma poética da Edda Maior, surrupiou e reelaborou a história de Kullervo; incorporou algo de Beowulf em O Hobbit; imitava a si mesmo quando retrabalhava antigos textos (por exemplo, o poema Errantry que foi dar na complexa canção de Eärendil). Essa maneira muito característica de inovar e renovar se vê também na sua caligrafia. Confronte, por exemplo, as escritas que ele criou (como as Tengwar) e as que ele resgatou (como a escrita insular) e veja se encontra semelhanças.
A obra de Tolkien, das pequenas letras às grandiosas narrativas, não surgiu ex nihilo. É por isso que muitos tolkienistas se dedicam a buscar e explicar as origens dessa majestosa subcriação. Quando feito com cuidado, o exercício é esclarecedor e até divertido. O interesse do autor por caligrafia demonstra, em um nível elementar, que Tolkien era um grande observador e erudito antes de ser um grande escritor: tirava a camada de azinhavre de coisas muito antigas, fazendo o cobre reluzir como novo em sua obra. Que bom para nós!
Obras citadas
HOLMES, John R. 2006. ‘Art and Illustrations by Tolkien’, in Michael D.C. Drout (ed.). J.R.R. Tolkien Encyclopedia: Scholarship and Critical Assessment (London and New York: Routledge) pp. 27–32
MCGUINNE, Dermot. 2010. Irish Type Design: A History of Printing Types in the Irish Character, 2nd edn (Dublin: National Print Museum)
PEARSALL, Derek. 1984. ‘Texts, Textual Criticism, and Fifteenth Century Manuscript Production’, in Robert F. Yeager (ed.). Fifteenth-Century Studies: Recent Essays (Hamden, CT: Archon Books) pp. 121–36
As imagens (com exceção das do Livro de Kells, do Exeter Book e do cabeçalho do discurso de Jeremiah Hogan) foram retiradas, respectivamente, dos livros Tolkien: Life and Legend (Judith Priestman), p. 46; Tolkien: Maker of Middle-earth (Catherine McIlwaine), p. 213 e 202; Tolkien: Artist & Illustrator (Wayne G. Hammond e Christina Scull), p. 24; Irish Type Design (Dermot McGuinne), p. 132; The Worlds of J.R.R. Tolkien (John Garth), p. 148. Capa: Tolkien: Maker of Middle-earth (Catherine McIlwaine), p. 143.