Por Cristina Casagrande
Dentre os diversos críticos de J.R.R. Tolkien, estão aqueles que têm pouco apreço pelos seus poemas. Em uma carta, disse o professor de Oxford:
Minha “poesia” recebeu poucos elogios — até os comentários de alguns admiradores geralmente eram desdenhosos (me refiro às críticas de sujeitos de estilo literário próprio). Talvez em boa parte porque na atmosfera contemporânea — na qual a “poesia” deve apenas refletir as agonias pessoais de mente ou espírito do indivíduo e coisas externas só são avaliadas pelas próprias “reações” do indivíduo — parece que dificilmente se reconhece que os versos em O S.A. são todos dramáticos: eles não expressam as buscas espirituais do pobre e velho professor, mas são adequadas em estilo e conteúdos aos personagens da história que os cantam ou recitam e às situações nela… (2010, p. 374)
Desse modo, percebemos que a poesia de Tolkien, especialmente em seu legendarium (legendário), não estava necessariamente atrelada ao lirismo do mais profundo drama humano, tal como faziam os românticos, mas buscava representar a identidade e a tradição de cada povo. Assim, aqueles de linhagem mais tradicional, como os elfos, fariam poemas mais eruditos, enquanto a comunidade hobbitesca, simples e prosaica, daria voz a poemas mais condizentes com sua cultura rústica, ainda que os hobbits buscassem imitar as formas poéticas dos elfos.
Contudo, mesmo os poemas mais simples do Professor não significavam falta de cuidado ou técnica. Tudo tinha um porquê de estar ali e daquele jeito: o vocabulário escolhido, a métrica ou a falta dela, as rimas internas e finais, as aliterações, o ritmo entre sílabas átonas e tônicas, entre outros.
Neste texto, contudo, não pretendemos fazer um estudo pormenorizado dos poemas de Tolkien, o que levaria a uma pesquisa mais extensa e em outro meio. O objetivo, na verdade, é fazer um breve — mas não pouco trabalhoso — exercício de traduzir poemas tolkienianos.
Na minha modesta experiência em tradução, percebi, na prática, como se ganha intimidade com um texto ao tentar traduzi-lo. Por isso, trago um ensaio da tradução de dois textos tolkienianos: o primeiro é um trecho de The Lay of Aotrou and Itroun e o outro é o poema “Cat”, presente na coletânea de As Aventuras de Tom Bombadil. A intenção é justamente fazer com que eu e você ganhemos intimidade com os textos e, é claro, ensaiar um pouco a árdua tarefa de um tradutor de poemas. Em uma instância mais ousada, esse exercício tem a pretensão de fazer com que as pessoas se interessem mais por ler poesia.

Esses poemas foram escolhidos por serem muito distintos entre si. Aotrou e Itroun (permitam-me a simplificação do nome) é uma obra fora do legendário de Arda, e tem uma estrutura de poema bretão, popular no inglês médio do século XII. Aotrou e Itroun, querem dizer “senhor” e “senhora” em bretão respectivamente, e os versos contam a tocante história de um nobre casal bretão que sofre por não conseguir ter um filho. Para resolver o problema, o marido pede ajuda a uma bruxa, mas, depois de realizar o seu desejo, ela revela sua verdadeira identidade, pedindo a ele um alto preço, que o colocaria entre a sua honra de cavaleiro e os seus valores cristãos. Vejamos os primeiros versos:
In Britain’s land beyond the seas
the wind blows ever through the trees;
in Britain’s land beyond the waves
are stony shores and stony caves.
There stands a ruined toft now green
where lords and ladies once were seen,
where towers were piled above the trees
and watchmen scanned the sailing seas.
Of old a lord in arched hall
with standing stones yet grey and tall
there dwelt, till dark his doom befell,
as still the Briton harpers tell.
Notamos que o poema é dividido em oito sílabas métricas: em inglês são chamados tetrâmetros iâmbicos, com quatro sílabas átonas e quatro tônicas, alternadamente: In/ Bri/tain’s/ land/ be/yond/ the/ seas.
Em português, uma opção para tradução seria dividir os versos em octossílabos, e, caso a intenção seja preservar o ritmo do original, seria interessante manter a alternância entre sílaba átona e tônica, além de preservar as rimas nos finais dos versos e, se possível, as internas e suas aliterações também. Além disso, seria importante, é claro, conservar, o máximo possível o sentido do texto original. Vejamos como ficariam os primeiros versos sem considerar a métrica, ritmo, rima ou aliteração do poema:
Em terras da Bretanha além dos mares
o vento sopra sempre através das árvores;
em terras da Bretanha além das ondas
estão costas pedregosas e cavernas pedregosas.
Não é difícil de entender que a tradução atrelada estritamente ao sentido perde a intenção poética do original. Neste poema em específico, a métrica, a rima e o ritmo são essenciais à composição. Se procurarmos preterir desses elementos formais, transformaremos o poema em prosa, e ele perderá seu caráter e sua essência. No entanto, é preciso ser compreensivo com o tradutor. Não estamos falando de recriação na mesma língua, mas de uma tradução de uma língua para outra totalmente diferente, cada qual com estruturas morfológicas e sintáticas muitas vezes bastante distintas umas das outras, como é o caso do inglês e do português.
Portanto, o tradutor deve fazer suas opções: manter o número de sílabas poéticas ou aumentá-las para ficar mais confortável com a estrutura da língua local — o português costuma ter palavras maiores que o inglês —; conservar o ritmo, com a alternância de sílabas átonas e tônicas, ou abdicar dele; preservar ou não as rimas internas entre os versos etc. São vários fatores envolvidos, até os mais exigentes — como procurar preservar as rimas ricas (entre palavras de classes gramaticais diferentes) quando elas aparecerem —, e o tradutor não será “obrigado” a seguir todos, compreendendo que são dois sistemas de línguas diferentes.
No entanto, essa tradutora que vos fala procurou manter todos esses elementos, como uma camisa de força — por sorte, ainda não fui parar no sanatório. Vejamos como ficaram as primeiras estrofes, procurando preservar o máximo de condições possíveis entre forma e conteúdo:

Notamos que a fórmula “In Britain’s land beyond” é repetida no primeiro e no terceiro versos, daí a repetição de “em chão bretão além” nos respectivos versos traduzidos. A marcação das sílabas fracas e fortes está demonstrada pelo sublinhado nas fortes, e observamos as rimas nos pares de versos seas/trees, waves/caves, traduzidas por mar/soprar e vagas/fragas. No quarto verso, houve a repetição de “stony”, resultando na repetição de “pétreas” na tradução correspondente.

Na segunda estrofe, vemos a repetição de “where” no segundo e terceiro verso, o que justifica a presença duplicada do “ali” na tradução. No sexto e no sétimo versos, vemos aliterações com standing/stones e dwelt/dark/doom, resultando em seixo acinzentado e situou/escura/sina na tradução (aqui, o sublinhado marca a aliteração, não a tônica).
Além dessas, algumas outras encruzilhadas aparecem nessa busca da “tradução perfeita” que, eu insisto, é algo impossível de se atingir, e não deveria ser obrigação do tradutor manter todas as exigências. Afinal, o que custou dez segundos para o leitor ler, sentir e se distrair, por vezes, demorou mais de uma hora para o tradutor chegar àquela solução. Isso não significa, é claro, que o tradutor não deva se esmerar para fazer o melhor, pois quanto mais coerente ficar a sua tradução, mais beleza ela vai trazer, não só pela fidelidade ao original, mas pela própria proposta de texto que se apresenta.
O outro exemplo, o poema “Cat” tem uma estrutura e um propósito bastante diferentes de The Lay of Aotrou e Itroun. Presente em As Aventuras de Tom Bombadil, ele é colocado como parte do legendário, no Livro Vermelho do Marco Ocidental. Basicamente escrito por hobbits, ele seria um dos poemas chamados de “marginália”, ou seja, conforme explica Tolkien, “escritos negligentemente nas margens e nos espaços em branco” (2018, p. 39). Vejamos o poema completo no original:
The fat cat on the mat
may seem to dream
of nice mice that suffice
for him, or cream;
but he free, maybe,
walks in thought
unbowed, proud, where loud
roared and fought
his kin, lean and slim,
or deep in den
in the East feasted on beasts
and tender men.
The giant lion with iron
claw in paw,
and huge ruthless tooth
in gory jaw;
the pard,dark-starred,
fleet upon feet,
that oft soft from aloft
leaps on his meat
where woods loom in gloom
far now they be,
fierce and free,
and tamed is he;
but fat cat on the mat
kept as a pet,
he does not forget.

Por ter sido composto provavelmente por um simples hobbit, dificilmente se poderia esperar uma métrica rigorosa (à exceção de um hobbit culto como Bilbo), havendo apenas uma alternância entre versos menores e maiores. Tampouco aparecem palavras muito eruditas. Isso deve se refletir no texto traduzido de alguma forma, ainda que não necessariamente de modo rígido em cada palavra, mas havendo alguma correspondência com a essência do original no todo. Em relação às rimas, em um primeiro momento, não se apresenta nada tão óbvio, mas, com um olhar um pouco mais atento, vemos que elas aparecem internamente e ficam mais evidentes, de forma alternada, nos finais dos versos. Confiram uma proposta de tradução:

Diferente de Aotrou e Itroun, a dificuldade está justamente em manter a simplicidade na tradução, em outras palavras, nem sempre dá para apelar para o dicionário de sinônimos e pegar uma palavra equivalente que se encaixe, pois esta pode não ser algo que sairia de um simples vocabulário de um hobbit — embora nem todas as palavras do poema em questão sejam tão simples assim. Outra diferença importante, é que, nessa tradução, eu optei por abandonar uma equivalência rígida em relação ao sentido do original e primar pela cadência leve e de versos relativamente curtos do poema.
Notem que o gato deixou de ser gordo e passou a ser pacato, e o tapete virou trapo que faz uma rima meia-boca com gato (nesse momento, meu editor pede compreensão comigo mesma).
O poema “Cat” já foi traduzido por Ronald Kyrmse e William Lagos para a Editora Martins Fontes, e Ersílio Cardoso e Fernanda Pinto Rodrigues, para a editora Europa América de Portugal. O jornalista Jorge Pontual também fez a sua versão, confira:
Neste breve ensaio, conseguimos perceber um pouco mais as nuances e sutilezas da construção de um poema, bem como o fato de seu propósito ter uma ligação com sua forma artística. Quem sabe, assim, conseguimos aguçar um pouco mais o nosso interesse por um gênero textual tão caro a Tolkien e tão importante na linguagem e arte humanas.
Obras Citadas
CARPENTER, H. (Org.); TOLKIEN, C. (Assist.). As Cartas de J.R.R. Tolkien. Tradução: Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte e Letra, 2010.
TOLKIEN, J.R.R. As Aventuras de Tom Bombadil. Tradução: Ronald Kyrmse. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
TOLKIEN, J.R.R. The Lay of Aotroun and Itroun. Ed.: Verlyn Flieger. Londres: HarperCollins, 2019.

Tão rude é do tradutor a sina!
Redige sua escrita com tormentos,
Alheia ideia à língua sua afina,
Do outro busca ouvir os pensamentos:
Uns já mantém, os outros elimina,
Tem élfica destreza ou brada aos ventos.
O verso ajusta e reproduz, pernóstico,
Rima e métrica, quiçá acróstico.
Penoso é do tradutor o ofício
Que métrica e rima vai verter;
Transmite do autor todo o edifício
Sem ao sentido desobedecer.
Bem vale a pena esse sacrifício
Se o leitor consegue enternecer.
Tem mais valor que toda a honra e glória
Poder contar a ele a sua história.
Grata pelo honroso comentário
Sinto dizer de modo tão simplório
Tal paga é mais que satisfatória
Vale mais que fama, ouro ou glória. 🙇🏻♀️
(sem acróstico, devido a ansiedade em responder logo!)
É sempre uma surpresa e um prazer ver você falando de qualquer aspecto da lenda bretã de Aotrou e Itroun. E digo, mais fico deveras contente de perceber que ao procurar manter os elementos dos versos citados “como uma camisa de força” não só a tradutora não foi parar no sanatório como conseguiu captar bem os elementos tradicionais da lenda, principalmente a relação entre a sina feita por escolhas em lugares escuros e misteriosos, sem contar o caráter feérico do mistério inicial das terras além mar.
É sempre uma surpresa e um prazer ver você falando de qualquer aspecto da lenda bretã de Aotrou e Itroun. E digo mais, fico deveras contente de perceber que ao procurar manter os elementos dos versos citados “como uma camisa de força” não só a tradutora não foi parar no sanatório como conseguiu captar bem os elementos tradicionais da lenda, principalmente a relação entre a sina feita por escolhas em lugares escuros e misteriosos, sem contar o caráter feérico do mistério inicial das terras além mar.
Obrigada, mestre hobbit! Repito: é uma alegria e uma honra receber o apoio dos especialistas! 💚🧝🏻♀️
Muito bom o texto, como sempre! Já li e ouvi uma série de declarações do Reinaldo e do Ronald sobre as peculiaridades de se traduzir os textos poéticos de Tolkien e como este tipo de adaptação é sempre pautada em escolhas do que se preserva e do que perde ao vertê-los para outra língua. Este texto porém, traz um luz especialmente elucidadora à questão, enquanto exercício prático do processo de tradução (ainda esperamos o Aotroun and Itroun nacional, Cris; vai rolar uma continuidade na tradução do poema? Rs). E como tudo que é bom, ainda pode melhorar; temos este lindo poema no comentário do Mestre. Ele é seu Ronald? Obrigado mais uma vez!
Obrigada, Viccenzo! Fico feliz em trazer mais elementos pra discussão sobre os poemas. Seria maravilhoso que nós déssemos mais valor a eles, mas acho que isso é mais fácil de acontecer quando “trabalhamos” com eles. Daí a ideia do post. E sim! O poema-comentário é do mestre! Não somos privilegiados? 😊🥰
Foi importante sua matéria pois é importante e difícil traduzir poemas,já que é fazer uma escolha de como traduzir de acordo com o tamanho dos versos as rimas, através dessa tradução entre idiomas. Olhando sílaba tônica. Pessoalmente eu adoro os poemas de Tolkien, inclusive as Aventuras de Tom Bombadil que muitos não gostam. No livro A história de Kullervo tem poemas que são em prosa,contando uma história o que acho meio raro de aparecer na obra de Tolkien.
Obrigada pelo seu comentário, Patrick! 😊😊😊